A marcha do Impiedoso
Pierre ordenou ao seu exército que avançasse.
Os batedores francos vieram lhe relatar que os saxões já esperavam pela investida. A movimentação nas florestas e aldeias ao longo das fronteiras, indicava que estavam se preparando para defender suas posições. Pierre já tinha previsto o movimento. Sorriu, refletindo sobre a ingenuidade de Sunna e seus espiões.
Os bravos guerreiros saxões obviamente tinham consciência de sua desvantagem. No entanto, Pierre especulava de si para si sobre as "engrenagens" daquelas mentes pagãs. Os saxões confiavam em seus deuses, e que a bravura seria suficiente para angariar a simpatia divina. Não se importavam em morrer lutando – desde que carregassem com eles muitos inimigos francos. Além disso, os saxões eram, por natureza e tradição, tribos militarizadas; acostumadas às estratégias de guerra – e versados em tais estratégias! A guerra era um modo de vida para os saxões que vendiam seus serviços para outros reinos. Frequentemente agiam como mercenários, conquistando terras de tribos mais fracas.
Para os saxões, enfim, restava aguardar que o leão penetrasse na cova do lobo... Ambos os lados acabariam por descobrir se deuses ou os santos dariam a vitória a um ou outro contendor...
Não desejando tornar-se óbvio em sua estratégia de ataque, Pierre ordenou a seus homens que margeassem o Reno e atacassem primeiramente Colônia. O objetivo era enfraquecer o poder de Bremen, quebrando o contato entre os clãs, isolando-os, e capturando o povo local.
Ele estava ciente de que ocorreriam emboscadas ao longo do trajeto, não havia dúvidas quanto a isso; os saxões esperavam que os francos pensassem que eles estavam se rendendo placidamente – e assim, baixassem a guarda. Pierre optou por deixar que o inimigo acreditasse ter a vantagem da surpresa.
Ao longo da marcha, o rei capturou vários líderes rebeldes locais, dominando várias aldeias e vilarejos; conseguiu, assim, isolar Bremen quase completamente. Contudo, durante a travessia do rio, alguns dos seus soldados foram capturados por tropas remanescentes, numa emboscada ousada e inesperada.
Quando Pierre retornou com os batedores ao acampamento, encontrou os soldados da primeira divisão de sua cavalaria, bem como o seu homem de confiança, mortalmente feridos.
***
O Duque Leon de Mont Blanc, o homem de confiança de Pierre, era seu amigo desde a infância; e se encontrava entre a vida e a morte por culpa de uma emboscada. Pierre registrou a seguinte situação, assim que chegou ao acampamento: os saxões haviam espantado boa parte dos cavalos, pilhado os mantimentos, destruído as barracas e levado as armas reservas. Por conta disso, o rei teve de adiar a invasão iminente da Colônia - sem a primeira divisão, ficaria muito difícil garantir uma vitória.
Mas, analisando friamente a situação, Pierre mandou seus batedores em duas missões distintas: recuperar os cavalos e vasculhar a região em busca de um lugar onde pudessem estabelecer o perímetro do novo quartel-general. Só então, quando o perímetro de segurança estivesse estabelecido, poderiam providenciar o tratamento dos feridos.
Não tardou para que os soldados retornassem, informando que havia uma aldeia saxã próxima dali.
A ideia de conseguir alimento e pernoite foi se formando na mente de Pierre; se pudesse encontrar no povoado algum curandeiro, haveria uma chance de sobrevivência para os soldados feridos. Caso os aldeões não quisessem colaborar, ou não conseguissem fazer nada pela vida de seus homens, em retaliação, ele iria dizimá-los. Era uma troca justa, supôs Pierre, já que os saxões foram os responsáveis pelas suas baixas.
***
A sacerdotisa do clã de Bremen era famosa pela sua bondade e conhecimento das "ervas que curam". A jovem mulher era sensível ao sofrimento humano, especialmente dos desvalidos. O resto do que se dizia sobre a filha do honorável Christoph Schümer, não passava de fofoca e crendice popular. Todos os conhecimentos que Lenora obteve sobre as plantas e seus efeitos medicinais foram motivados pelo interesse em ajudar o seu povo. Ela já vira muitos pobres morrerem de doenças diagnosticadas como fruto de magia negra, supostamente orquestrada por entidades malévolas.
Naturalmente, Lenora respeitava as dimensões além da mortalidade. Fora iniciada em tais caminhos. Acreditava, porém, que a maioria das doenças podia ser combatida e vencida pelo poder do conhecimento ancestral.
A prática médica a fez descobrir que muitas das soluções encontradas para tratar a peste - e outras doenças consideradas fatais - consistia em rituais simbólicos ineficazes; supostamente mágicos porque o mago/curandeiro encetava negociação com os deuses por meio de oferendas e promessas. No entanto, o poder de cura estava em direcionar o conhecimento dos deuses sobre o poder das plantas, das pedras, da água, e dos metais. Salvo em casos extraordinários, quando tais elementos demonstravam pouco efeito diante de forças ocultas, sempre se podia contar com os espíritos elementais evocados pelos misteriosos monges-obreiros, que eventualmente passavam por Bremen.
Lenora sabia que eles também atuavam na Saxônia, investigando eventos extraordinários. Ela não sabia como contatá-los, mas nem era preciso, pois eles sabiam como encontrá-la.
***
A dedicação de Lenora aos pobres e doentes conquistou a afeição do povo. Entretanto, embora sensível e devotada, ela era dona de um espírito indomável e voluntarioso. Algo que recrudesceu, posto que, para curar as doenças por meio de suas poções, era necessário confrontar com frequência os curandeiros e os chefes patriarcais; ainda mais quando estes consideravam as mulheres da nobreza, em geral, completas tolas.
Exceto o seu pai.
Christoph Schümer sempre dizia que poucos homens conseguiriam domar sua filha mais velha, até que um Oberland apareceu em seu destino. Todos sabiam que o primogênito do clã aliado tinha o temperamento irascível e rancoroso. Como resultado deste matrimônio forçado, o choque entre os cônjuges foi uma constante.
De início, ela foi obrigada a abandonar o lar paterno para viver no castelo dos Oberland – guerreiros considerados imbatíveis, cujas façanhas deram início ao lema: "os homens da 'terra alta' protegem os seus...".
A origem do clã confunde-se, pois, com a construção da fortificação, no alto do platô que domina a região norte de Colônia. O castelo era a grande sentinela para além do pequeno povoado – circundado por quilômetros e mais quilômetros de floresta fechada. Sem dúvida, um local propício e estratégico para encetarem emboscadas contra seus inimigos.
As guerras de outras épocas ensinaram aos saxões a se tornarem especialistas nesse tipo de combate, a guerrilha, tirando proveito da situação geográfica para decidir os conflitos a seu favor.
***
Tal como o pai, e o pai de seu pai, Sunna Oberland foi um grande guerreiro. Mas como todo homem de seu tempo, não nutria consideração pelo sexo oposto. Já nos primeiros tempos de casados, ele espancava Lenora com frequência; até que, finalmente, ela aprendeu a utilizar os subterfúgios femininos para realizar as próprias vontades em detrimento das opiniões do marido. Mas ela só conseguia manipulá-lo até certo ponto.
Infelizmente, ela própria reconhecia, o aprendizado matrimonial veio tarde. As desavenças iniciais fizeram com que ela o desprezasse irremediavelmente, embora fingisse dedicar-lhe plena devoção (apenas para agradar ao pai, que não esperava dela menos que isso).
No íntimo, Lenora sabia que seus sentimentos não se alterariam, mesmo que o marido mudasse as atitudes; algo que poderia ter germinado, morreu - deixando para trás um terreno árido e estéril. Ela jamais poderia amá-lo.
À bem da verdade, não fosse sua índole, Lenora já o teria envenenado. Sunna talvez até temesse que ela fizesse isso - já que sabia manipular qualquer tipo de planta da região. Por isso, ele a proibiu de exercer suas atividades de cura – privando centenas de pessoas deste benefício. Mas, apesar da proibição, ela prosseguiu na clandestinidade.
A vida conjugal tornou-se mais flexível quando ela deu à luz o filho do casal, que recebeu o nome de Lothar Sunna, em homenagem ao destemido pai.
***
Com a ameaça franca, Sunna decidiu transportar todas as mulheres do clã, bem como o filho, para Bremen. Tendo se desincumbido de cuidar delas, o chefe Oberland partiu para engrossar as fileiras rebeldes que combatiam a dominação franca.
Os combates entre dominadores e dominados ocasionou centenas de vítimas. Camponeses foram julgados por atos de traição e enforcados; outros tantos se viram presos em masmorras esquecidas por Deus (e pelo Diabo); as mulheres passaram a se prostituir para alimentar os filhos órfãos de pais. O povo se via maltratado pelos seus tanto quanto pelos inimigos.
Contrariando as recomendações do pai, Lenora escapou do castelo e retornou à Colônia, acompanhada por uma pequena escolta; estava preocupada com a possibilidade de os pobres aldeões serem massacrados pelos francos. Por isso, sua primeira parada foi o povoado de Oberland, onde assumiu a tarefa de orientar os camponeses e auxiliar as mulheres grávidas. Ela sempre fizera os partos do lugarejo; e não deixaria de prestar assistência justamente agora, que sabia haver uma jovem prestes a dar à luz, com o bebê virado no útero. Para isso, deixou seu filho Sunna sob a proteção do avô paterno e aos cuidados de sua ama de leite. Ela estava certa de que ele estaria em segurança dentro do forte Bremen.
O que Lenora não poderia prever é que o cerco à aldeia seria rápido e letal. Ela imaginava que os francos colidiriam com os rebeldes saxões, numa batalha nos arredores de Colônia. Só que os inimigos fizeram uma manobra estratégica, quando foram surpreendidos pelas primeiras emboscadas, e avançaram diretamente para a aldeia de Oberland.
Impotente, ela assistiu os saxões tentarem impedir os francos e serem mortos (inclusive os homens de sua escolta); as mulheres, por sua vez, foram aprisionadas em um cercado - outrora utilizado para abrigar porcos e cavalos. Os soldados francos se aglomeraram ao redor, acotovelando-se com euforia para escolher as mulheres que usariam como suas escravas sexuais.
Quanto a isso, Lenora nada podia fazer. Estava ocupada em concluir com êxito a tarefa de puxar o bebê do útero de sua mãe. Ele passava com dificuldade, centímetro por centímetro. Fora uma noite muito longa, depois de várias tentativas frustradas para desenrolar o cordão umbilical e desvirar a criança. Há duas horas, tudo indicava que mãe e filho pereceriam. Mas, agora, ela estava conseguindo trazer o pequenino à luz e seu coração se enchia de esperança. A mãe da criança agradecia entre um gemido e outro. Lenora tentava acalmá-la, murmurando:
-Eu prometi que voltaria para ajudá-la, Helga! Que não te deixaria em tua hora! Tu tens que continuar lutando, querida! – Ela ergueu o rosto para o céu, fechando os olhos por um momento. - Que Mani atenda as minhas súplicas e permita que mãe e filho sobrevivam!
A aia de Lenora, vendo a movimentação lá fora, começou a puxá-la pela túnica, pedindo que deixasse a mulher e fugisse com ela para a mata. Ainda havia tempo. Afinal, os francos não tinham revistado todas as barracas. Lídia perdeu a paciência e ordenou que ela ficasse do lado de fora. Não poderia permitir que um parto se convertesse em dois funerais.
***
Um jovem soldado franco chegou até o grupo de feridos, onde Pierre dava de beber ao amigo moribundo. O rapaz apontou para uma das cabanas e informou ao rei sobre sua tentativa de tirar três mulheres lá de dentro.
-Fui atacado por uma velha enraivecida que se plantou do lado de fora – disse ele. - Quando percebi que uma delas estava dando à luz, com sangue por todo o lado, não soube o que fazer.
Pierre, ao invés de responder o que achava de sua covardia, rumou na direção indicada. O rapaz veio em seus calcanhares.
Uma senhora gritou da porta, e tentou atacar os dois, mais foi contida por um terceiro homem. Pierre nem titubeou, avançando cabana adentro. Então, ele se deparou com uma bela mulher, de cabelos negros como a noite, segurando um embrulho nos braços. Era um bebê recém-nascido. Ao lado, outra mulher, envolta em panos manchados de sangue, estendia os braços, visivelmente exaurida. A que estava em pé tinha uma pose orgulhosa e aproximou-se sutilmente de uma faca abandonada sobre a mesa. Num relancear de olhos, Pierre percebeu sua intenção e avisou:
-Se eu fosse a senhora, não tentaria...
A mulher comprimiu os lábios e entregou o bebê à outra. O corpo em posição de defesa.
-Era ela quem fazia o parto? - Ele voltou-se para o jovem soldado, que assentiu. – Então devo presumir que tu sejas a parteira... Vem comigo!
Apesar do tom de comando, a mulher nem se mexeu. Fingiu não entender a língua dos francos. Artimanha que não retardaria o inevitável, Lenora bem o sabia. Do lado de fora, a idosa aia continuava gritando e tentando desesperadamente passar pelos soldados:
-Deixem minha menina em paz! – a acompanhante da sacerdotisa repetia, em sua língua nativa.
Pierre ignorou a aia, e agarrou o braço da sacerdotisa. Surpreendentemente, ela não se alterou. Sua postura e compleição física delicada o distraíram por um instante, antes de arrastá-la para fora, sob as gargalhadas espalhafatosas dos soldados.
Lenora foi levada aos tropeções até um grupo de homens feridos. O cenário era de morte; com o cheiro de sangue lhe dizendo que alguns deles estavam nos últimos suspiros. Pierre apontou para Leon.
-Espero que, além de parteira, tenhas conhecimento para tratar ferimentos de combate. Do contrário, não me serves para nada – seus olhos se estreitaram - a não ser para entreter meus homens.
Ele a encarou, enquanto os soldados faziam comentários obscenos diante da perspectiva de disputarem o corpo de uma mulher tão bela e, obviamente, oriunda da nobreza. Apenas Pierre percebeu que Lenora estremecia ligeiramente. Contudo, a moça manteve-se inexpressiva.
-Ele deve ser muito importante para vós, ou não teríeis todo o trabalho de ameaçar mulheres – ela comentou, abrangendo com um gesto o perímetro estabelecido pelo rei franco.
O silêncio se fez entre os homens. Ela falava a língua deles, afinal. Pierre torceu os lábios.
-Se desejais que ele viva, vós ireis respeitar este povoado – ela apontou para Leon, e depois para as mulheres aterrorizadas, presas no cercado. Perante seu tom e postura régios, os soldados recuaram, temendo que lhes lançasse alguma maldição pagã.
Pierre agarrou a gola de seu vestido, mas ela prosseguiu de forma imperturbável:
-Nós, saxões, estamos preparados para morrer com um sorriso nos lábios diante dos porcos francos. E vossa majestade? Vós estais preparado para perder vosso amigo?
Lenora caiu no chão, quando ele a soltou abruptamente.
Pierre não podia acreditar no que ouvia; a mulher estava barganhando com ele! Num átimo, ele percebeu que estava diante de uma criatura astuta e valente. Encararam-se como adversários no campo de batalha, até que Pierre começou a falar bem devagar, sem tirar os olhos dela.
-Ninguém tocará em nenhum morador desta aldeia – elevou a voz sobre os murmúrios dos soldados – Libertem as mulheres e as crianças que foram colocadas no cercado.
Embora aturdidos, os homens obedeceram. E entre gritos e gemidos, as aldeãs correram para suas cabanas, arrastando as crianças atrás de si. Os homens saxões sobreviventes foram amarrados e colocados juntos, bem no centro do povoado.
Pierre, em seguida, voltou os olhos cinzentos para a mulher aos seus pés. Observou atenta e friamente aqueles encantadores olhos verdes; os lábios cheios e convidativos, comprimidos em atitude de desafio; as mãos pequenas, espalmadas sobre o chão pedregoso... Sim, ela era valorosa. Sentiu por ela uma súbita admiração, como nunca sentiu por nenhuma outra criatura do seu sexo. No entanto, isso não significava que ele lhe faria concessões.
-Quanto a ti, se deixares meus homens morrerem, terás o mesmo destino que eles; daí, então, não terei nenhuma piedade para com os saxões deste povoado. Mas, se fizeres com que meus homens sobrevivam, eu deixarei este lugar em paz, e escolherei um castigo melhor que a morte para a tua ultrajante audácia.
Se Pierre esperava que ela se encolhesse de medo, enganou-se. A mulher levantou-se com dificuldade, mas sem dar atenção aos decretos do rei.
-Diga o teu nome... – ele ordenou.
Silêncio.
Pierre esticou a mão e puxou com violência o medalhão que pendia do pescoço da jovem. A corrente quase lhe cortou a pele delicada devido a rudeza do gesto, mas a jovem suprimiu um gemido.
Olhando para o medalhão, um sorriso malicioso se formou nos lábios dele.
-Ora, ora... Lenora de Bremen.
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