A coragem te fará justiça

Durante os anos que se seguiram, Pierre garantiu a segurança de Lenora e de seu herdeiro, que crescia forte, saudável e muito amado por seus pais e por aqueles que o rodeavam.

Ele confiou a Leon de Mont Blanc o treinamento da guarda do castelo e da escolta pessoal da refém – boa parte, cuidadosamente escolhida entre estrangeiros e francos fiéis à Casa do falecido pai de Pierre. Alguns tinham em comum o fato de servirem-no desde que era um menino. Outros eram leais a Lenora; saxões cuidadosamente escolhidos na província, entre aqueles que veneravam a figura da sacerdotisa e seu legado.

Tanto Leon, quanto Pierre, sabiam que Hilda jamais desistiria de destruir a ameaça que a saxã e o filho representavam as suas filhas e ao seu status de rainha. Estaria sempre vigilante para, havendo uma brecha, infiltrar alguém na corte de Aachen. Bastava algumas gotas de veneno atiradas em uma cesta de frutas, ou em um cálice de vinho... E seu problema facilmente estaria resolvido. Hilda era conhecedora dos mais variados venenos. Suas composições, usos, e efeitos por associação química com outros elementos presentes na natureza.

Ela poderia fazer com que a saxã e o filho bastardo amanhecessem mortos, sem nada que a vinculasse ao crime.

Medidas de precaução foram tomadas. Leon de Mont Blanc investigou e selecionou toda a criadagem do castelo, formando um quadro de apoio confiável. Começou mandando embora os criados leais a Hilda e mantendo os leais a Pierre - com exceção daqueles que odiavam fervorosamente os saxões. Os procedimentos de entrada e saída do castelo de Aachen sofreram sérias modificações. Pessoas, bagagens e alimentos passaram a ser rigorosamente inspecionados todos os dias.

Sem que se desse conta, o Duque rapidamente assumiu as funções mais poderosas que um nobre poderia exercer junto ao rei - as de prefeito do palácio. Não era algo que ele apreciasse. Leon achava que seu lugar era no campo de batalha e não na corte, sentindo os tentáculos da burocracia envolvendo-o, asfixiando-o lenta e inexoravelmente até o túmulo. Para Leon - sir cavaleiro por vocação e por direito de nascimento, a vida na corte quebrava o espírito de um homem de verdade. Ele desconfiava da honestidade dos cortesões, pois, invariavelmente, eram políticos com interesses maliciosos - cultivando panças e vícios, enquanto se agarravam ao acúmulo de suas fortunas.

Mas as ordens do rei estavam acima de sua vontade pessoal. Além do quê, ele desejava garantir a segurança da sacerdotisa antes de partir para seus afazeres, nas fronteiras do império.

Suas novas responsabilidades como prefeito acabaram somando-se aos habituais encargos como comandante das tropas de Pierre. Os dias e noites do Duque sucederam-se numa rotina extenuante. Ele agradeceu por isso. Queria executar as ordens do rei a contento e, se fosse honesto consigo mesmo, desejava ocupar-se a ponto de esquecer o louco sentimento que crescia em seu peito.

Leon havia se casado muito cedo, mas a esposa falecera jovem, vitimada pela peste. Não tiveram filhos. Desde então, Leon usufruía da companhia feminina disponível, evitando amarrar-se outra vez... Ele se contentava em dividir as sobras de Pierre ou fornecer ao rei as suas... Até que aconteceu Lenora.

Um amor impossível tinha o poder de ser imortal. Era um sentimento perfeito. Não era real. Mas, mesmo assim, ele ansiava pelo que não podia ter. As cinzas cavalheirescas do romantismo que Leon julgava morto, em seu íntimo, foram acesas desde que acordou dos mortos e descobriu que um anjo salvou sua vida.

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Leon adentrou o salão oval e se deparou com as costas largas de Pierre. O rei contemplava a vista além da janela aberta, que dava para os jardins. O salão estava vazio. Havia apenas o rei e dois cavaleiros postados em cada lado da porta de dupla face. Ele lhe pareceu pensativo, preocupado, enquanto apoiava os punhos fechados sobre o patamar da janela. Lá fora, os jardins bem cuidados verdejavam ao sol vespertino.

O rei nem ao menos se virou, quando começou a falar:

-Estou partindo para Paris, em breve.

Leon esperou que ele se dispusesse a prosseguir.

-Tu sempre foste leal, sir cavaleiro - Pierre suspirou, endireitando a coluna. - E agora, mais que nunca, vou precisar de tua lealdade.

Quando Pierre voltou-se para encará-lo, Leon ajoelhou-se, colocando a espada diante do corpo.

–Farei o que determinar, majestade!

Pierre sorriu, sem humor. Nunca duvidou da lealdade de Mont Blanc. Se duvidasse... Se não tivesse certeza de que ele jamais tentaria possuir algo que era seu... Seu melhor amigo já estaria morto.

-A partir de agora, quero que prestes um juramente de lealdade para com Lenora da Saxônia. Deverás protegê-la com tua própria vida, até o fim de teus dias.

Se ficou espantado, Mont Blanc não deu mostras. Pronunciou o juramento sem hesitação, mantendo o olhar fixo nos olhos do rei.

-Tu a amas... – Pierre observou com tranquilidade. – Mas também sei que a tua lealdade é indubitável. Jamais tentarás apoderar-te do que é meu.

- Jamais! – Leon fez um movimento brusco com a cabeça.

Impassível, Pierre colocou as mãos cruzadas atrás das costas e pôs-se a caminhar num círculo amplo.

-Lenora não deverá deixar o castelo. Tudo e todos que entrarem ou saírem daqui prestarão contas a ti, pois a segurança dela dependerá de teus excelentes serviços. A vida dela - ele parou de andar e lançou-lhe um olhar grave por sobre o ombro - estará em tuas mãos como a tua está nas minhas.

Ele fez uma pausa. Leon não gostou da ameaça, pois não precisava ser ameaçado para cumprir seus compromissos como cavaleiro. E Pierre deveria saber disso. Era amigos. Talvez, Pierre estivesse tão acostumado ao poder que sequer conseguisse despir a aura de ameaça que cercava a sua figura. Talvez ele achasse que ser o impiedoso durante todo o tempo fosse a única forma de governar. Leon só esperava que Guilhem não se espelhasse na atitude do pai, quando crescesse. A pele política de Pierre já não podia mais ser arrancada, mas o garoto... Ainda havia esperança para o garoto.

-Os asseclas de Hilda não irão sossegar enquanto não conseguirem eliminar Lenora. Por isso, tu deverás permanecer aqui, ao seu lado.

Leon baixou a cabeça, compreendendo a enormidade da missão que lhe estava sendo confiada. Ouvira dizer que Pierre iria submeter-se ao Conselho das tribos, composto por um líder ancião de cada clã. As reuniões do Conselho eram os momentos em que os francos sálicos e ripuários se reuniam, sem desavenças, para decidir os destinos das tribos que compunham o reino franco.

Pierre era um imperador. Julgava-se onipotente. Curvava-se apenas ao Papa. Mas, se estava disposto a manter viva a tradição e passar pelo antigo Conselho, era porque realmente tinha consciência de que para se manter no poder, precisava do apoio dos Grão-duques. Também era uma prova de que ele realmente amava Lenora. Submeter-se ao Conselho era uma forma de deixá-la de fora da política. Mas existindo um herdeiro, isso seria impossível. A não ser que...

-Sei o que está pensando. – Os lábios do rei torceram-se ligeiramente. – De fato, eu a amo... E vou protegê-la a qualquer custo. Prometi que o faria, quando a forcei a me acompanhar até aqui. No entanto, minha decisão é motivada também pela necessidade de proteger a herança de meu filho. Preciso levá-lo comigo à Paris. Só assim, assegurarei sua ascensão ao trono.

Então, as suspeitas de Leon eram verdadeiras. Pierre pretendia apresentar o filho ao Conselho para, quem sabe, angariar a simpatia dos Grão-duques - os que ainda eram aliados de sua Casa... Leon sabia que o momento requeria cautela e uma escolha adequada de palavras. Caso contrário, melhor ficar calado.

Ele decidiu arriscar, valendo-se dos anos de camaradagem a seu favor.

-Majestade... Acreditais, de fato, que os clãs permitirão um príncipe bastardo, ainda por cima meio saxão, no trono dos francos? - A pergunta era ousada, e custaria a vida de qualquer imprudente que a tivesse formulado. Mas, Leon não era qualquer um.

Pierre encarou o amigo e respondeu, com simplicidade:

-Não esqueça que Guilhem é meio franco. Se ele herdou metade do carisma da mãe e da minha astúcia, será duas vezes melhor do que qualquer um naquela corte. Quanto aos clãs, já me encarreguei deles e dos arranjos políticos apropriados. Portanto...

As sobrancelhas de Pierre se ergueram sugestivamente.

-Hilda terá uma desagradável surpresa ao descobrir que intrigas e conspirações não são privilégios dela.

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A despedida entre Pierre e Lenora foi explosiva, carregada de recriminações (por parte dela), e um silêncio controlado (por parte dele). Pierre esteve calmo durante todo o confronto; o que a deixou mais enraivecida.

-Vós tirais-me Lothar Sunna, meu primogênito! – Ela socou a pequena mão contra o peito do rei. - E agora quereis Guilhem? Não podeis tirá-lo de mim!

Afastou-se com um soluço abafado. - Não outra vez!

Pierre esforçou-se para ignorar a culpa que começava a afligi-lo. Não podia ceder.

-Nosso filho – frisou ele, em tom indiferente – estará em segurança comigo. Ao passo que, se ficar aqui, Aachen tornar-se-á alvo constante dos conspiradores. Daí, nem tu ou Guilhem estarão seguros.

-O que quereis dizer com isso? – Ela enxugou as lágrimas teimosas com a manga do vestido. Percebeu-se observada e tratou de devolver um olhar desafiante.

-Existem entre os francos aqueles que odeiam os estrangeiros, - ele começou a falar mansamente, ciente da delicadeza do momento - especialmente, os pagãos. Há fanáticos entre o meu povo, que chamam os pagãos de hereges. Muitos deles atualmente gostariam de me ver pelas costas, bem como toda a minha linhagem.

-Mas vós sois o estandarte da Igreja! – Ela o lembrou, com voz carregada de ironia.

Meneando a cabeça, ele deu um passo em sua direção.

-Mas não sou nem fanático, nem controlável. O Papa sabe disso.

Com um suspiro, ele passeou o dedo indicador pelo contorno do maxilar de Lenora. As sobrancelhas masculinas altearam; os olhos de Pierre abandonaram a linha sedutora do pescoço dela para encará-la nos olhos.

-Na corte, entre meus súditos mais chegados, considerados leais e à prova de qualquer intriga... Ou que deveriam sê-lo por um senso de dever e honra... Sempre há quem se venda às ofertas mais tentadoras. – Fez uma pausa, pensando em Hilda. – Esse tipo de gente tem seus problemas resolvidos com mais facilidade se encontrar dois alvos no mesmo lugar.

-Dividir para conquistar? - ela questionou, incrédula.

-Mais ou menos isso... Tu estarás protegida em Aachen, ao passo que Guilhem assumirá o lugar dele por direito. Guilhem será criado entre os francos mais valorosos. Quando tiver conquistado o respeito dos clãs, será difícil para os conspiradores tentarem eliminá-lo, pois ele já terá visibilidade perante os Grão-duques e perante o povo.

-Guilhem deve ficar comigo! Aqui, ele estará em segurança – ela revidou. –Se vós o levais à Paris, estareis jogando vosso filho direto à cova do leoa.

Ela se referia a Hilda, e Pierre não fingiu que não entendeu.

-Engana-te, querida... Se Guilhem ficar e algo me acontecer, ele não terá ninguém a quem possa apelar, em Paris. O trono está em Paris - repetiu ele, devagar. - Tu também estarás ameaçada. Estando na corte, sob as minhas vistas, eu me encarregarei de que Guilhem conquiste aliados e se torne cada vez mais forte, politicamente.

-E se não conquistar?

-Ele é nosso filho! Tem a minha força e a tua teimosia. Garanto que vai conseguir. - Ele tentou acariciar sua face, mas ela o repeliu.

Pierre respirou fundo.

-Muito bem... – Lenora ergueu o queixo. - Levai nosso filho. Tendes o costume de tirar as pessoas que amo de perto de mim. Já se foram meu pai, meu filho, e agora, meu outro filho. Saibais que, a partir de hoje, tereis de arcar com o ônus de vossas decisões. Nunca mais tereis o meu corpo. Não, de livre e espontânea vontade.

O semblante de Pierre ficou sombrio. Não admitia receber ultimatos e perdeu o controle sobre o próprio temperamento.

-Então, que seja pela força! – Ele a agarrou, rasgou-lhe o vestido e a possuiu com fúria.

Depois, arrependido, vestiu-se, sem dizer palavra. Com mãos trêmulas, pegou a espada, mas não olhou para trás – rumou direto para o pátio do castelo. Seus homens, já montados em seus cavalos, esperavam o comando para iniciar a longa jornada até Paris.

Uma última vez, Pierre permitiu-se olhar para a janela de seu quarto. Avistou Lenora. Sentiu, mais do que viu, a dor e as lágrimas, as quais deslizavam pelo rosto descomposto da amante. Ele não a tinha machucado, mas a humilhação provocada pelo ato forçado foi pior do que se a tivesse espancado.

E ele estava separando um filho de uma mãe. Que Deus o perdoasse por isso.

Desviou o olhar, para não cair na tentação de correr para ela e lhe pedir perdão de joelhos. Não podia demonstrar vulnerabilidade. Pierre sofria, antecipando a saudade que sentiria de seu gracioso falcão. Encarou Leon com raiva, porque ele, sim, iria desfrutar da companhia de Lenora.

Movido pelo humor sombrio, ordenou-lhe bruscamente:

-Confio-te a vida de minha mulher, dos súditos que aqui residem para servi-la, e a integridade de meu castelo – relanceou o olhar ao redor e acrescentou a ninguém em particular: - Aachen sempre será o lar do meu coração.

Leon fez uma reverência, enquanto a aia saxã aproximou-se, aos prantos, com uma criança nos braços. Foi auxiliada a subir na liteira por um dos soldados mais próximos.

Um grito ecoou pelos jardins. Era Lenora, que corria em direção ao filho com o vestido amarfanhado. Ela se atirou sobre a liteira, tentando agarrar Guilhem.

Foi detida por Leon, que a segurou com firmeza pelos braços.

Pierre fez um sinal com a cabeça, ordenando aos seus homens o início da marcha. O desespero de Lenora era tamanho, que ele desviou o olhar para não vê-la mais. Leon continuou segurando-a, mas deixou que se aproximasse o suficiente para que depositasse um beijo nos cabelos negros de Guilhem, Ela pronunciou algumas palavras em saxão:

-Os deuses te protegerão; a virtude te conduzirá; e a coragem te fará justiça.

Pierre não reagiu às palavras pagãs. Há muito deixara de tentar cristianizar sua mulher. Ele a amava como era, e se o falcão gostasse de se dedicar a outras forças, só lhe restava juntar-se a ela, em oração, pela proteção do pequeno Guilhem.

Deus misericordioso, que eu tenha tomado a decisão certa!

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Leon empenhou-se em manter o funcionamento do palácio de Aachen como se fosse o seu próprio lar. E era seu lar, desde a partida de Pierre.

Cuidou de Lenora com devoção e, ao longo dos anos, essa dedicação fez com que ela também passasse a amá-lo como ele a amava. Pierre tornou-se uma mera lembrança - reavivada uma ou duas vezes ao ano, no curto período que ele permanecia em Aachen. Tais cuidados eram necessários para que a corte franca não voltasse sua ira contra a saxã herege.

Se Pierre percebia os sentimentos de Lenora por Leon, não demonstrava. No fundo, ele sabia que a escolha que fizera, ao levar o filho deles para ser criado em Paris, fora a causa derradeira de seu distanciamento. Desde que ela o servisse na cama, o rei se contentava com o que podia ter.

Lenora cedia o corpo, sabendo que se não o fizesse, o rei poderia se tornar terrível. No entanto, seu coração pertencia irremediavelmente a Leon, mesmo que jamais consumassem fisicamente esse amor. Eles o experimentavam de outras formas, igualmente sublimes: pequenos gestos; conversas edificantes; e até mesmo através do silêncio compreensivo. Tratava-se de um genuíno amor cavalheiresco, como acontecia nos romances de cavalaria narrados pelos menestréis, durante os banquetes da corte.

A saxã tinha conhecimento do juramento de Leon, e que ele nunca trairia o rei, portanto, não se deitaria com ela. Mas, não precisava da união carnal para amá-lo. A vida lhe oferecera dose extra de contato físico com o sexo oposto – primeiro com o marido e depois, com o rei. Mas nenhum deles a fez feliz. O companheirismo e a solicitude de Leon valiam muito mais do que qualquer satisfação carnal.

Através do devotado Duque, Lenora mantinha-se informada sobre o desenvolvimento do filho, na corte de Paris. Leon providenciou para que Guilhem estivesse cercado por pessoas de suas relações e conhecimentos – primeiro, a aia saxã. Posteriormente, a pedido de Lenora, Leon enviou à corte de Paris um guerreiro, cuja vida foi salva graças aos cuidados da sacerdotisa; um dos poucos que lhe permaneceu leal e que integrava sua escolta.

Avraed era o seu nome. Chegou ao palácio de Aachen já despertando interesse por parte dos criados francos, pois nunca tinham visto um homem tão alto e tão forte. Leon encarregou-se de lhe ensinar os costumes locais e a falar a língua franca; o suficiente para passar por um habitante da fronteira. Ninguém deveria desconfiar de que ele era um guerreiro saxão de carreira.

Lenora acreditava que não havia plano melhor do que manter um saxão infiltrado na corte para proteger seu filho. Após ser colocado a par da missão, Avraed partiu para Paris, levando consigo instruções muito específicas.

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Pierre deu o xeque-mate na esposa, ao adentrar Paris com o filho bastardo nos braços. Todos sabiam que o rei tinha poder de declarar Hilda inapta para o posto de rainha, já que não tinha gerado um filho do sexo masculino. Após várias costuras políticas, os conselheiros reais e os líderes dos clãs entenderam que o rei precisou "plantar sua semente em outro receptáculo", a fim de garantir a sucessão ao trono.

As festividades que se seguiram ao retorno do rei, desviaram a atenção do povo sobre o fato de Guilhem de Craon ser meio saxão.

Hilda ainda tentou conquistar o apoio dos clãs. Contudo, Pierre alegou que o nascimento de Craon era a oportunidade perfeita para pôr fim aos conflitos com a Saxônia, ressaltando o lado positivo de o herdeiro ter, em parte, o sangue do odiado inimigo. A nação conquistada veria o seu sangue no trono que a governa, e se regozijaria. Tal argumento pôs fim às tentativas da rainha para expulsar a sacerdotisa e seu filho bastardo do reino (ou melhor, a execução sumária de ambos, que é o que sucederia na calada da noite).

(Rainha Hilda - Imagem extraída do Capítulo Mulheres Medievais, do livro "Imagens para Capas", de @vanessagnessa  )

Os planos de Hilda seriam adiados indefinidamente, até que se apresentasse oportunidade melhor para eliminá-los. Mas, a rainha tinha a promessa de seu jovem e maquiavélico amante, o conde Alan de La Chapelle, de que a ameaça representada pelo bastardo seria eliminada de uma vez por todas. Ela só precisava ter um pouco de paciência e confiar nele... Em troca de seus serviços, na cama e fora dela, Hilda prometeu conceder-lhe o tão sonhado ducado.

O rei todavia também contava com aliados de peso, especialmente o Grão-duque Isidoro du Saint-Martin – detentor de grande reputação na corte e nos campos de batalha. Isidoro era amigo de seu pai, e continuou como conselheiro político de Pierre.

O que Pierre não sabia, era que uma disputa antiga ainda estava em andamento, sem solução à vista, entre as Casas de La Chapelle e Saint-Martin. Envolvia crimes de morte não solucionados e a usurpação de bens disputados entre ambas as famílias. A questão havia manchado o nome dos La Chapelle no passado. Portanto, Alan tinha a necessidade obsessiva de igualar seu título ao de Isidoro, como parte de seus planos pessoais de vingança. Algo que Hilda poderia lhe conceder. Por isso, ele naturalmente se colocou ao lado da rainha, na disputa pela sucessão ao trono, já que Isidoro era aliado do rei.

Nessa contenda entre o rei e a rainha, forças e ameaças pairavam sobre a figura de Guilhem de Craon. Seu crescimento, em Paris, não foi um período feliz. E, quanto a isso, ele teria de "agradecer" eternamente ao empenho de sua madrasta. E a Pierre, que fez questão de deixá-la encarregada de sua criação.

O pai acreditava que ao tornar a rainha responsável por Guilhem, iria obrigá-la a recuar em qualquer ação que fosse dirigida contra o herdeiro. Ela seria executada caso descumprisse suas ordens. Mas, se Hilda não podia eliminá-lo, certamente, podia e faria a vida do garoto um inferno.

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Novos levantes se seguiram por parte dos territórios anexados, entre saxões, lombardos, sarracenos e ávaros, obrigando Pierre a partir com seu exército para defender as fronteiras do império. Por essa razão, ele passava muito tempo longe de Paris, deixando homens e mulheres de confiança em torno do filho. O que não impediu Hilda de transferir os pertences do bastardo do quarto real para as cocheiras.

Ela proibiu que lhe dessem trajes apropriados a sua posição; impediu que brincasse com as meias irmãs - suas filhas - ou com qualquer criança nobre da corte; e jamais permitiu ao tutor das filhas que alfabetizasse e instruísse o garoto.

A cada regresso de Pierre, porém, Hilda providenciava para que Craon fosse limpo, medicado, e alojado num dos quartos do corredor real. O menino, desacostumado de qualquer atenção fraterna, fugia sempre que o pai se aproximava.

Apesar de informado das vilanias de sua mulher, Pierre evitava confrontá-la diretamente, acreditando que os maus tratos fossem menos nocivos ao garoto do que uma tentativa de assassinato.

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Hilda foi agradavelmente surpreendida pela notícia de que o imperador havia sido gravemente ferido em batalha, na Marca de Espanha. O mensageiro não soube dizer se estava entre a vida e a morte. Mas a notícia era favorável aos seus interesses. Incentivada pela longa ausência de Pierre e a incerteza de sua sobrevivência, ela intensificou os maus tratos ao filho bastardo do marido.

Craon cresceu convivendo com cavalariços, criados, e soldados. Corria descalço e imundo pelos subterrâneos do palácio; conhecia todos os seus recantos. A pessoa com quem tinha mais contato era o grandalhão chamado Avraed, que ele soube ser o guarda encarregado das masmorras. Havia, ainda, a aia chamada Denise, que cuidara dele desde a infância, e que sempre descia às escondidas para lhe trazer algumas guloseimas.

O menino não era tolo. Ouvia as histórias a seu respeito - cochichadas pelos corredores - e sabia que não era filho de Hilda. Embora esta, nas raras vezes em que o mandava trazer à sua presença, obrigava-o a tratá-la por "mamán", levando-o a acreditar que era o único culpado, com seu comportamento selvagem, pelo tratamento diferenciado que recebia em relação às meias irmãs.

Certo dia, ele a interpelou sobre a verdade de seu nascimento. Então, Hilda viu-se obrigada a confessar que não era sua mãe.

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O menino logo virou um adolescente robusto. O porte orgulhoso do jovem Craon, suas maneiras arrojadas, e o brilho frio do olhar, intensificou a raiva de Hilda. Como queria ter gerado aquela criatura que, sem dúvida, seria um grande homem "se" chegasse à fase adulta (algo que ela não iria permitir).

Pensando assim, a rainha decidiu descarregar todo o seu ardil. Convidou o rapaz para a corte, mandou trajes apropriados para que participasse do banquete, no salão principal, e quando ele chegou, esperançoso, ela anunciou diante de todos a presença do príncipe mestiço. Humilhou-o diante de toda corte. Disse-lhe que era indigno de assumir qualquer lugar na família, por conta de seu sangue saxão e impuro.

Hilda foi aplaudida pelos cortesões fanáticos e nacionalistas. Ela aproveitou o momento para deixar claro que ele era inferior aos outros nobres, por isso, não podia conviver com os francos da corte.

Guilhem observou-a com um olhar tão parecido com o do pai que lhe causou um arrepio. Naquele noite, ele se tornou seu inimigo. Deixou o salão para jamais  por os pés outra vez.

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Com o passar do tempo, as dúvidas começaram a fervilhar na cabeça do jovem príncipe, e se agravaram pela falta de respostas. Havia muito que não via o pai. O ódio cresceu dentro dele; um sentimento dirigido contra a mãe saxã, que ele julgava tê-lo abandonado, e contra o pai, que desapareceu da face da terra.

Quem teria sido a mulher desumana que o gerou e o entregou de tão boa vontade aos cuidados de uma megera como Hilda? Só podia ser alguém pior do que a própria rainha. Hilda, ao menos, dedicava afeição às filhas. Algo que Craon reconhecia e invejava.

Cada vez mais, ele se isolou de qualquer contato civilizado. Foi se tornando realmente um adolescente selvagem, como Hilda o classificara. Parecia uma fera circulando silenciosamente pelos corredores do imenso palácio. Os outros adolescentes nobres tinham medo dele, e não se aproximavam porque seus pais diziam ser o príncipe, uma cria do demônio.

Os filhos dos empregados não o temiam, mas também não o respeitavam. Com eles, o menino sentia-se mais à vontade para brigar – pois sabia que seria uma luta justa. No mais, era esquivo; e as únicas pessoas que conseguiam encontrá-lo - porque ele assim o permitia - eram Denise e Avraed.

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Hilda sentiu que o momento ideal para eliminar o garoto havia chegado. Só que, enquanto ela tecia planos junto ao conde de La Chapelle, não podia imaginar que Pierre ainda estava vivo, em território basco, onde o exército franco havia derrotado os sarracenos.

Mas, ele não estava em condições de ser transportado de volta às Gálias.Temendo que sua vida finalmente estivesse chegando ao fim, o imperador mandou chamar o Grão-duque Isidoro, e ordenou-lhe que providenciasse novas medidas de segurança em relação ao garoto e à Lenora.

Isidoro tornou-se oficialmente a palavra do imperador. Partiu do País Basco com o seu destacamento para cumprir as últimas ordens de Pierre, quando um mensageiro do acampamento o alcançou para avisá-lo de que Pierre, o Impiedoso, havia falecido.

Chocado, Isidoro deu-se conta de que essa era uma notícia que não poderia chegar à Paris tão cedo.

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