Capítulo 7

Ainda são sete da manhã quando saio da cama e visto minha roupa de corrida. É cedo e o dia está um pouco frio, com um sol se insinuando por trás das nuvens, por isso coloco o casaco de ginástica e fecho o zíper um pouco acima dos seios. Silenciosamente dou uma passada no quarto de Jackie. Ela está sorrindo em seu sonho e me arranca também um sorriso com essa visão. Afago seus cabelos e beijo sua bochecha de leve para não acordá-la.

Passo alguns minutos me alongando do lado de fora de casa e, à medida que começo a descer a rua, vou cumprimentando alguns vizinhos que aparecem na porta com seus roupões de dormir e uma xícara de café nas mãos.

— Bom dia, Sr. Peabody!

Ele acena com a cabeça, sisudo e vigilante quando me vê correndo num ritmo moderado na calçada em frente à sua exuberante casa de três andares.

— Bom dia, Ellie.

O Sr. Peabody tem aproximadamente uns 150 anos. Brincadeira, é claro. Nunca parei realmente para perguntar sua idade, porque não me parece educado e muito menos sensato abordar o rabugento e assustador Wilbur Peabody. Quero dizer, o cara já foi fuzileiro naval e atualmente é aposentado, e apenas com seu olhar duro e atento consigo dizer que o homem seria capaz de me dar umas boas palmadas educativas na bunda se soubesse as besteiras que fiz na vida.

Depois que a esposa morreu alguns meses atrás, o Sr. Peabody se mudou para este bairro quieto e agradável em busca de refúgio para suas mágoas e sofrimento em silêncio. Ao menos foi o que os fofoqueiros de plantão me contaram. À primeira vista, dá para notar: não temos nada a ver um com o outro. Eu entendo bem de luto, perda e dor, e isso de certa forma é o elo que nos une e nos qualifica como duas pessoas com grande potencial para sermos amigos. Só ele que ainda não sabe.

Mas mudanças virão. Algo me diz que esse dia está chegando.

Minha desenvoltura com as pessoas não me permite ter grandes problemas com os moradores do bairro. Geralmente converso com todo mundo e até mesmo me chamam para ir a aniversários de parentes. Posso não ficar em casa por muito tempo por causa trabalho, mas o fim de semana é o período da semana mais badalado no bairro.

Continuo com meu ritmo até chegar à trilha de corrida meio cheia no parque, então coloco os fones de ouvido, aperto o play no meu Ipod e acelero a corrida com meus pulmões enchendo e esvaziando em plena atividade. Eu corro porque me sinto forte e cheia de energia, capaz de fazer coisas para as quais não tive coragem, e isso inclui... pensar naquele assunto de novo. Jerome. Já faz muito tempo... Me forço a colocar a mente para trabalhar sobre a ideia da visita ao cemitério e a despedida que tenho procurado evitar com todas as minhas forças.

Eu quero. Preciso fazer isso. Está na hora.

A música alta não consegue se sobrepor aos meus pensamentos. Eles são fortes e intensos demais para se deixarem vencer por qualquer coisa que não tenha a mesma magnitude de importância. Qualquer coisa sobre Jerome é intensa. Ele foi a coisa mais impetuosa, intrépida e destemida que aconteceu na minha vida e que igualmente mudou todo o curso dela. Suas atitudes, escolhas, força de vontade e ousadia para lutar foram as qualidades que me fizeram cair aos seus pés, apaixonada, fazendo promessas em troca de um pouco da atenção e carinho que ele queria me dar.

Eu recebi mais, no entanto. Muito mais do que poderia pedir.

Respiro. Cada inspiração é uma puxada vigorosa e a expiração é uma baforada forte de ar que se perde no meio do caminho enquanto estou correndo o restante dos quilômetros habituais, lentamente sendo tomada pela dor de ter que encarar o que estive procrastinando sofrer. Só porque não choro mais quando menciono seu nome não quer dizer que meu coração fique destroçado a cada vez que o simples ato de citá-lo constrói um desenho de seu rosto em minha mente.

Diminuo os passos até voltar a caminhar normalmente, minhas pernas reclamando tanto da dor que quase penso em desmoronar em qualquer canto e me deixar ser levada pelo vento que sopra as folhas secas do outono.

— Oi!

— Aah! — dou um grito e salto para o lado, sobressaltada com a presença que apareceu do nada. Retiro os fones dos ouvidos e olho. Tracy. Ela mora nas proximidades e de vez em quando marcamos uma corrida juntas. Mas definitivamente não hoje. — Tracy, você me assustou! — reclamo, mas estou rindo junto com ela.

— Eu sei. — Tracy pisca matreiramente para mim. Ela é apenas um ano mais velha do que eu, mas tem uma energia e vitalidade invejáveis. — Pensou sobre o evento beneficente? Eu avisei que daria um jeito de conseguir um convite extra para fazê-la entrar. Juro que não vou parar de pegar no seu pé até você dizer que vai comigo.

— Assim você não me deixa muita escolha. — Faço um muxoxo. — Isso não é justo. Sabe que não estou a fim de conhecer os homens que está querendo empurrar para mim. Eles só querem sexo casual, você sabe.

— Ah, qual é, Ellie! — ela fala brincalhona, porém com um leve toque de repreensão, como se eu fosse uma criança que precisasse de umas sacudidas nos ombros por estar sendo tão antissocial.

Continuamos percorrendo a trilha, lado a lado, fazendo cooper e fofocando.

— Uma coisa é certa: você precisa se livrar dessa teia de aranha de tantos anos e recuperar o brilho da antiga. Socializar não faz mal, sabia?

— Mas eu já socializo. — Ela lança-me um olhar dúbio. — Com os meus vizinhos — completo. — E os amiguinhos de Jackie são pessoas ótimas também — lembro, pensativa.

Tracy gira os olhos, agitada ao meu lado.

— Meu Deus, Ellie, você está se ouvindo? Desde quando conversar com criança é o mesmo que passar a noite trocando ideias com um homem charmoso, maduro e atraente? Você é uma ótima mãe, ninguém pode negar. Mas, antes de ter casado com Jerome, você também já foi namorada.

Tracy é uma das poucas pessoas que sabem pelo que passei e o relacionamento conturbado que tive com Jerome. Afinal, ela esteve ao meu lado e me deu apoio quando mais precisei.

— Não quero ser namorada de ninguém — murmuro baixinho e fecho a cara.

— Isso pode ter sérias repercussões no seu emocional. Está dedicando tudo de si à Jackie e à Mary Ann, mas está esquecendo de cuidar de si mesma. E isto é uma questão essencial que merece igual atenção.

Eu fico calada, pois suas palavras são tão perfeitamente certeiras que criam um buraco de inquietação dentro de mim, que me fazem lembrar de todas as frustrações noturnas quando eu acabava sozinha na cama, sem ter feito nada para me divertir. Eu só vivo cansada, atarefada e isso me afasta de tantas coisas da minha vida que só agora percebo o descaso que tive para comigo mesma.

— Há quanto tempo você não transa? — É a pergunta-alfinete de Tracy para mim. E eu sei que para ela é tão normal me perguntar algo íntimo porque somos melhores amigas e confidenciamos os nossos segredos mais sórdidos.

Viro o rosto como uma menina malcriada, me recusando a responder.

— Então?

— Tracy... — Eu estou morrendo de vergonha nesse momento e não consigo olhar para ela, porque sei que verá o vermelho morno estabelecido em meu rosto. Meu rubor definitivamente não é algo que dá para esconder.

— Eu vou ter que colocá-la de castigo, mocinha? — ela fala num tom duro e repreensivo, porém sei que está caçoando de mim. — Não é assim que alguma vez falou com Jackie? Esse negócio de ser mãe não é para mim. Não tenho estômago para essas coisas.

Eu rio e então finalmente sustento seu olhar. Aos seus 26 anos, a honorável Tracy Witters está solteira por opção. Com uma lista interminável de conquistas bem-sucedidas e corações quebrados, tudo o que tenho a dizer sobre isso é que sinto muito pelos próximos que ainda virão.

— Eu também costumava pensar assim — confidencio com um sorriso ao me lembrar do rostinho angelical de Jackie. — Mas a maternidade é uma experiência gratificante. Uma pena que só saberá do que estou falando se decidir se doar a isso. Caso contrário, não significa que você seja uma pessoa ruim. Ter um filho não define um traço de caráter, espero que saiba disso.

Tracy me deixa desarmada quando abre um sorriso enorme para mim. Sei bem o que ela deve estar sentindo, pois já conheci seus avós e posso dizer que são duas figuras amigáveis, mas que por vezes deixam Tracy para baixo sem perceberem quando tocam no assunto sobre casamento, estabilidade e os filhos que estão contando que Tracy tenha.

O engraçado é que, por mais que tivéssemos tentado sutilmente explicar a eles sobre a modernidade em que vivemos, ambos não compreenderam que a estabilidade não vem com o casamento, o que não deixa de torná-los pessoas menos amáveis. Apenas evitamos tocar no assunto perto deles. Tracy está trabalhando seu caminho em uma firma e ganha um salário muito saudável, do meu ponto de vista. Ser cobrada porque você é mulher por uma sociedade ainda tradicionalista é uma batalha enfrentada por muitas moças dia após dia, que resistem a valores antigos e arcaicos. Só porque somos mulheres não significa que tenhamos que nos casar e dar filhos ao mundo. É um direito de escolha. Faremos essas coisas se quisermos. Ponto.

— Mas você não me engana com toda essa conversa. — Assim como eu, Tracy está quase sem fôlego da nossa caminhada acelerada. — Ainda não respondeu minha pergunta.

Respiro fundo e solto a bomba com uma careta:

— Seis anos — digo baixinho, inconscientemente tentando evitar uma vergonha maior.

Tracy não me escutou.

— O quê?

— Seis anos — falo mais alto.

Ela está com um sorriso congelado no rosto, como se não estivesse acreditando em mim, e eu a qualquer momento fosse dizer, rindo da cara impagável dela: É pegadinha! Você está sendo filmada! Então, nada disso acontece, e ela parece cair em si mesma e na realidade que é a vida pacata e morna de uma mãe solteira que em algum momento se descuidou dos hábitos saudáveis.

Dois grandes olhos são arregalados para mim, como se eu fosse uma aberração ou algo do tipo.

— Você está há seis anos sem transar? — Sua voz tem aquele timbre involuntariamente alto de surpresa e espanto.

Nós paramos de caminhar.

— Shh! — Faço o sinal de silêncio para ela. Olho ao nosso redor, preocupada que alguém possa ter ouvido que a minha vida sexual atualmente é inexistente. Felizmente ninguém estava perto o bastante para isso. — Se continuarmos assim, todo mundo vai ficar sabendo. Prometa guardar segredo!

Tracy pisca algumas vezes.

— Bem, sim, eu... oh... minha nossa, Ellie. Como uma coisa dessas foi acontecer? Sei que você não é nenhuma puritana para achar que só pode ter sexo depois de um novo casamento. Só porque é viúva não significa que tenha que levar uma vida de freira. Sexo, na verdade, é uma atividade muito saudável para o corpo e a mente, só para o caso de você não saber. Isso está cientificamente comprovado — discursa solenemente.

Aceno com a cabeça, concordando.

— É só que... você sabe, depois da morte de Jerome, não tive ânimo nenhum para tapar o buraco com um novo pretendente. — A melancolia é evidente em minha voz.

A mão de Tracy alcança meu ombro num gesto de apoio.

— Não se trata de tapar o buraco. Estamos falando de um recomeço a que você tem direito, assim como qualquer outra pessoa que perdeu o marido ou a esposa para alguma fatalidade fortuita. Você merece alguém para compartilhar metade do fardo que se prontificou a carregar sem pestanejar. Não importa quantas vezes você me diga o contrário ou quantas vezes tente punir a si mesma com palavras ferinas ao descrever sua autoimagem, eu acredito em segundas chances. E você provou merecer a sua.

Fecho os olhos, meus pulmões ardendo, minhas costelas se cortando para além da dor. Há um sentimento inexorável de impotência, desespero e desalento que me consome. Não havia percebido como um estranho tipo de dormência caiu sobre mim, guiando cada movimento sem graça da minha vida, tornando-me uma pessoa altruísta, mas infeliz e depressiva por dentro, e só agora me dou conta de que tenho sido tão cruel comigo mesma ao me privar propositalmente de uma vida normal como uma punição pessoal. Presa em meu jogo de autotortura. Um castigo para meu corpo e minha mente, proibindo-me de pensar sobre qualquer coisa que não fosse Jerome e a culpa que me cerca.

O engraçado é que, ao tentar superar e deixá-lo ir embora, eu estava indo exatamente contra isso ao me agarrar com tudo às nossas lembranças, como se estas necessariamente devessem ser as razões pelas quais acordo todas as manhãs. Ele não voltará. Ninguém voltará, Ellie. Não sei identificar em que momento minha respiração irregular se transformou em um choro baixinho.

— Eu queria tanto que ele estivesse aqui. — Estou a ponto de cair sobre meus joelhos, as lágrimas se misturando ao meu suor até que não tenho mais certeza de qual é qual. — Tanto, Tracy, que chega a doer. Como se fosse uma nova morte que eu estivesse testemunhando. E talvez seja a minha própria morte, por ainda, mesmo após anos, querer que ele esteja vivo.

Sua mão aperta meu ombro com delicadeza.

— Mas ele não está mais aqui, querida. — Puxa-me para um abraço e, apesar de ser alguns centímetros mais baixa, consegue me acomodar em seus braços sem dificuldade. — Jerome foi a preciosa estrela cadente de muitas pessoas. No momento em que o conheci, percebi que ele não era qualquer tipo normal, desses que não faz diferença se passaram ou não por nossas vidas. Eu pude dizer, assim que fomos apresentados, que uma vez que ele entra em nossas vidas, elas nunca mais serão as mesmas. A minha não foi e aposto que a sua também não. — Estou soluçando com o queixo apoiado em seu ombro. Não tinha ideia de que esses sentimentos ainda estavam guardados dentro de mim. — Ele morreu e infelizmente a história dele acabou com um acidente trágico. Procuro não fazer julgamentos sobre se o que aconteceu foi justo ou injusto. Tudo o que podemos fazer é deixar as boas memórias ficarem e nos perdoarmos pelas coisas ruins.

A abraço termina e ela sorri com benevolência. Eu adoro Tracy. Embora exagerada algumas vezes, eu a amo de paixão. Ela é o ombro amigo com que posso contar nas horas mais difíceis, meu mar de tranquilidade. Ela me oferece paz. E é só disso o que preciso no momento.

— Apesar de tudo o que já viveu, Ellie, você ainda tem uma vida inteira pela frente. Não é traição nem desrespeito à morte de Jerome correr atrás do que a faz feliz. As coisas continuam. Você pode se prender a memórias, contanto que elas não a machuquem, entende?

Tracy sabe o tipo de pessoa que fui em tempos de guerra comigo mesma. Para estar me dizendo essas coisas, então ela deve estar vendo algo em mim que ainda não consigo ver.

Sorrio, sentindo-me um pouco melhor sobre mim mesma. As palavras de Tracy me dão uma força inacreditável que não pensei existir dentro de mim. Agora mesmo eu estou sentindo qualquer coisa, menos a dormência de anos. Eu a obriguei a ir embora, porque está na hora de resolver certas questões inacabadas que estive ignorando, colocando num canto como se não merecessem tanta importância. Estive varrendo a sujeira para debaixo do tapete e agora preciso encarar os acúmulos indesejados de sentimentos retidos.

Sinto uma fagulha de esperança e, por menor que ela seja, eu farei com que isso aumente, se transforme em algo bonito e me guie para ser alguém melhor para mim mesma. Porque eu preciso. Todos precisam de um recomeço. Tracy está certa, não sei porque fui escolhida no lugar de Jerome para continuar vivendo, mas é meu dever fazer bom uso da minha segunda chance.

— Certo. — Limpo minhas lágrimas com a costa da mão. — Você me convenceu. Quando acontecerá esse evento de que estava falando?

O rosto de Tracy se ilumina de pura empolgação. Ela nem mesmo parece caber em si de tanta ansiedade.

— Semana que vem — responde com um sorriso ardiloso.

Voltamos a caminhar pelo parque.

— O que é? — inquiro, desconfiada.

— Precisamos fazer compras? — Ela pergunta como se estivesse riscando alguns itens de sua lista mental.

— Não. Por mais inacreditável que pareça, comprei recentemente alguns vestidos, para eventos relacionados ao trabalho. Eu sempre estou preparada para essas ocasiões, então acho que podemos eliminar maquiagem e cabelo também — explico e eu nunca me senti tão orgulhosa de mim mesma. Acho que estou indo bem.

— Está certo. — Ela faz um barulho com a garganta de como se estivesse pensando. — Você toma a pílula?

Caio na gargalhada e Tracy fica subitamente preocupada, as sobrancelhas formando um vinco na pequena testa.

— Para que tomar pílula se não estou dormindo com ninguém? Nem mesmo tenho alguém! Nem uma paquera inocente — admito com o rosto corado, um pouco frustrada com a negação que sou em termos de flerte.

As coisas comigo e com Jerome sempre foram diretas, sem muitas complicações... morais, digamos assim. E ele foi o psicótico que me perseguiu nas sombras e me abordou e me beijou... e então boom! Aconteceu. É minha vergonha admitir que nossa paixão não teria explodido se não fosse ele insistir em mim até o fim. Até o último minuto, e então eu fui capturada, flechada sem aviso pelo cupido e não teve mais volta.

Ao fitar os olhos de Tracy, encontro-os determinados. Estou em dúvida se devo ficar assustada ou agradecida que ela me adotou como uma espécie de projeto e está levando isso bastante a sério.

— Se eu fosse você, começava a tomar. — Dá uma piscadela sugestiva para mim. — Com a Tracy aqui, sua vida está prestes a mudar, Ellie Banks. Serei sua maldita fada madrinha moderna e vai me agradecer por isso depois. Guarde minhas palavras! — Ela está tão convicta que agora estou realmente pensando na situação em que fui me meter. — Agora vamos falar sobre depilação naquele lugar...

De brincadeira, começo a correr com pressa até o outro lado da trilha e deixo Tracy comendo poeira atrás de mim.

— Ellie! Espere! — Ouço sua voz divertida e ofegante. Ela está às risadas enquanto tenta acertar o passo com o meu. — Não vai fugir de mim assim!

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