Capítulo 5

Faço um intervalo para buscar Jackie na escola. Ela entra no carro toda sorridente, com o rosto iluminado, quando pergunto como foi a apresentação de poemas. Não preciso de mais nada para colocá-la para falar, porque o que se segue é uma enxurrada de palavras ditas com excitação infantil e as bochechas coradas.

Ela me conta de como sua professora a elogiou pelo poema, os coleguinhas que bateram palmas e a maneira contente como ela se sentiu ao voltar a se sentar em sua cadeira. Dia de ouro para alguém.

Chegamos em casa e dou um beijo na bochecha dela, dizendo que ela foi incrível e que eu estava orgulhosa de sua desenvoltura. Seu sorriso se alargou e eu vi que ela não cabia em si de tanta felicidade por sua pequena conquista. Desceu do carro falando que não via a hora de contar para a vovó e se indagando sobre como ela reagiria.

Jackie acena de longe para mim e eu aceno de volta.

Então, estou de volta ao trabalho. Vendas, persuasão e a procura por clientes em potencial para compra. Às vezes as pessoas têm uma maneira errônea de ver a profissão do corretor imobiliário, pois frequentemente pensam que é um trabalho que rende uma grana alta. Bem, isso não posso negar. O grande X da questão é que se você não faz parte daqueles que decoram falsamente discursos com a estética inventada, maquiam defeitos e dizem que um ventilador de teto na cozinha é uma ótima escolha para economizar energia, com fins de vender uma casa, então tenha a certeza de que seu nome não está entre aqueles que constantemente batem os recordes em vendas.

Não é nenhum grande segredo que o dinheiro é o problema de muitas pessoas, e não tenho por que ser diferente delas. Como corretora, eu ganho uma porcentagem em cima do que vendo. E se não vendo nada, então não ganho nada. O que quer dizer que se não vendi nada em alguns meses, logo, não ganhei nada em alguns meses que não fui bem sucedida em fechar contratos.

Essa é a minha atual situação. A corretora falida, Ellie Banks. Essa sou eu. Nem sempre foi assim. Mas, de uns tempos para cá, as coisas têm ficado bem apertadas.

Depois que consegui comprar a casa através de um empréstimo concedido, fiquei endividada até o céu, trabalhando para prover o sustento e pagar todas as minhas pendências financeiras. E minha casa nem é tão grande assim, sabe. Você a reconhece com apenas uma olhada ao acaso no quarteirão, porque ela é a mais humilde naquela rua do bairro. Imagine uma fileira de quadrados padronizados, certinhos e construídos para serem exuberantes e, no meio deles, eis que surge espremida uma forma estranha, torta e desengonçada que faz qualquer um girar o rosto para olhar, horrorizado.

É a minha casa. Não tem erro.

Como qualquer cidadão americano, meu sonho é pagar todas as dívidas e começar a juntar novamente para construir um banheiro em cada quarto. Tenho tudo planejado em minha cabeça, e o do corredor ficaria para eventuais convidados. Até que esse desejo possa ser realizado, teremos de nos contentar com apenas um único banheiro. Melhor do que nada, certo?

Termino meu expediente e, quando estou dentro do carro aliviada por poder finalmente ir para casa, lembro-me de que ainda tem a roupa para lavar. Fecho os olhos e desmorono a cabeça para trás no banco do carro.

Maldita máquina de lavar que me deixou na mão. Está quebrada e nem é tão velha assim, o que me leva a quase crer que alguém lançou uma tremenda maldição em mim, e como resultado dessa magia negra, só tenho atraído coisa ruim ultimamente. Meus pensamentos culpados me levam para Macy e se possivelmente ela viu alguém andando pelas ruas com o tijolo de relógio e o scarpin de onça com os quais me presenteou.

Descarto a hipótese imediatamente. Não, claro que não. Macy é tão ocupada voltando os próprios olhares para si mesma que não tem tempo para ficar notando os outros ao seu redor. Sinceramente, perdi as contas de quantas vezes já a vi admirando com perfeccionismo seu reflexo no espelho do pó compacto. Fico cansada só de olhar para ela fazendo isso.

Faço uma nota mental para chamar alguém para consertar a lavadora de roupas.

— Estou em casa! — anuncio do andar de baixo, e recebo uma resposta de mamãe que está na cozinha preparando o jantar e um cumprimento de Jackie de seu quarto, onde está fazendo o dever de casa, mas em seguida já estou tendo que sair de novo.

Separo as roupas para colocá-las todas em sacos de lixo grandes e pouso os montes no banco de trás do carro.

Em menos de alguns minutos estou na lavanderia mais próxima. É pequena, com um toldo verde e um estacionamento com vagas limitadas na frente, e tem mesas e cadeiras no interior para as pessoas se sentarem. Não é nada glamouroso, claramente precisa de uma manutenção, mas me faz sentir confortável e acolhida desde o momento em que passo pela porta até colocar as moedas e esperar sentada em uma cadeira vazia num canto isolado, enquanto as roupas estão lavando.

Está longe de ser considerado tão tarde da noite, embora o lugar estaria praticamente deserto se não fossem as poucas pessoas ali para quebrarem o silêncio. Um casal sentado no banco perto da saída, conversando, e um garoto aparentando estar nos seus 17 anos escutando música alta nos fones de ouvido.

Eu me inclino para trás, contra a cadeira, pensando. Hoje foi um dia atípico. Eric Myers descobriu parte do meu passado graças à minha grande boca. Me pergunto se ele não querer mais contato comigo teria a ver com o que soube, pois gastei a tarde inteira fazendo ligações inúteis que não foram retornadas.

E lá se vai minha chance de vender alguma coisa.

Vergonha não é o que sinto sobre quem eu um dia fui, mas tenho um receio justificado. Receio de que a informação, quando nas mãos das pessoas erradas, possa desencadear um mal-estar profundo em mim. Conto nos dedos conhecidos próximos que sabem que uma vez fui uma viciada e eu só preciso de uma mão para isso.

As pessoas parecem ter uma incrível propensão em aceitar que esse tipo de coisa, o vício e abuso de substâncias psicoativas, aconteça com homens. Quando defrontam com o abuso feminino de álcool e outras drogas, chamam-nos de estúpida, fraca, prostituta. E conseguem o que querem, porque nos sentimos as piores pessoas do mundo.

Ainda costumo me lembrar de quando a Sra. Carver me chamava pelo carinhoso apelido de prostituta drogada. Para falar a verdade, ela nunca gostou de mim e certamente deve ter pintado um quadro horroroso meu para o resto da família Carver, porque ninguém realmente se importou comigo ou com meu estado emocional e necessitado depois da morte de Jerome, razão pela qual mantive Jackie em segredo. Duvidava que a revelação fosse capaz de mudar alguma coisa. Provavelmente me odiariam ainda mais.

Eu sabia que precisava de ajuda, e tive de ir buscá-la sozinha. Após a alta da clínica, a solução que encontrei foi viver uma vida quieta e em silêncio. Era tudo o que eu queria. Tudo pelo que mais ansiei, uma maneira de viver em paz que permitisse minha regeneração pessoal.

Infelizmente não pude contar que outros respeitassem meu desejo. Fui perseguida, ameaçada de morte e roubada nas ruas pelos meus antigos fornecedores e seus capangas. Me fizeram pagar cada centavo que devia a eles, e isso incluía não dar a mínima se eu precisava do dinheiro ou não. Houve momentos em que alimentar Jackie era mais importante do que me alimentar, momentos em que não me permiti hesitar de forma alguma.

Ouço um barulho de alguém abrindo a porta de vidro transparente e levanto o olhar para perceber que se trata de uma senhora de idade que a está atravessando, segurando um saco preto enorme com roupas.

Meu altruísmo é maior do que meu cansaço da correria do dia e percebo que agora estou me levantando da cadeira para ajudá-la com o carregamento que parece pesado.

— Está quebrada — digo, antes que ela se estabeleça perto de uma máquina de lavar que não funciona. — Use esta aqui, está funcionando. — Aponto para a lavadora ao lado. — Deixe-me ajudá-la. — Ela sorri em agradecimento para mim, mostrando suas rugas nos cantos dos olhos, e eu pego a boca do saco com ambas as mãos, até colocá-lo sobre a bancada de serviço que fica na lateral da fileira de lavadoras de roupas.

Eu a ajudo a separar as peças coloridas das brancas e colocamos tudo em carrinhos para facilitar a mobilidade até a máquina. Em pouco tempo já despejamos todas as peças. Observo a senhora retirar algumas moedas de um pequeno porta-moedas surrado, suas mãos estão tremendo tanto que me ofereço para colocá-las na abertura para dinheiro da lavadora.

— Obrigada, minha filha. Foi muita gentileza sua ajudar esta velha senhora que não sabe nem mesmo mais enfiar uma moeda no buraco! — Ela está rindo, descontraída, e ao mesmo tempo noto que o bom humor não é nada senão um artifício para ocultar sua frustração por não estar dando conta de tarefas básicas em seu dia a dia.

Meu coração se aperta e não sei exatamente o que dizer para deixá-la melhor sobre si mesma.

Nesse momento minha máquina para com a lavagem. Apresso-me em dar a volta no corredor e rapidamente ponho tudo dentro da secadora. Quando termino e olho para trás, encontro a senhora descansando sobre uma cadeira, com a cabeça encostada na parede, os olhos fechados e a boca entreaberta como se já tivesse pegado no sono.

Com os ralos cabelos brancos, a pele mole enrugada e pálida, e a constituição óssea tão pequena e frágil, ninguém nunca me pareceu tão vulnerável quanto ela. Refreio a súbita vontade de tirá-la de seu sono para saber sobre sua vida, perguntar-lhe se mora sozinha ou se tem filhos, e vou me sentar no meu canto isolado.

Você não pode carregar o mundo nas costas.

Fecho os olhos, suspirando perdida nos meus devaneios mais sombrios. Minha mente está completamente tomada por Jerome e os seis anos que não tenho sido sincera comigo mesma ou com ele. Eu apenas espero que um dia, pelo menos que em algum dia, eu vá me perdoar pela vida que eu tão desonrosamente destruí com minhas próprias mãos.

Uma mulher consegue guardar segredos do tamanho da vastidão de um oceano. Eu também tenho os meus. Estou suja pela culpa que me consome e que, se estou sendo honesta, não me tem deixado dormir direito nos últimos seis anos.

Ele morreu por minha causa, isso é um fato. Uma obra maldosa de minha autoria, com minha assinatura escrita em sangue. Eu o levei para o caminho da escuridão a partir do momento em que o deixei se viciar em mim e não fiz absolutamente nada para ir contra isso.

Nós nos afogamos juntos no amor louco e avassalador. Eu nem mesmo podia respirar quando estávamos perto um do outro, presos e amarrados por um laço que fatalmente nunca nos permitiria encontrar o sossego. Ceguei seus olhos, me tornei sua amante mais convicta e insaciável. Tudo era permitido. Deixei-o fazer o que quisesse fazer comigo, contanto que eu também pudesse fazer o que quisesse com ele.

Assim, eu fiz Jerome morrer. Pouco a pouco. Letal e dolorosamente.

Esse é o meu pecado e o expurgamento só está começando.

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