Capítulo 4

Ano de 2005

"Só não ferra com isso, Ellie. Ou mamãe vai me matar, logo depois de matar você."

Com as nada doces palavras de Tracy em mente, visto a calça preta, uma camisa branca que passei mais cedo e dobro meu meio avental com cuidado para colocá-lo na mochila. Por incrível que pareça, considerando todo meu péssimo histórico de trabalho por causa do meu temperamento explosivo, como Tracy diz que tenho, ainda estou pensando se ter aceitado o emprego de garçonete de ricos esnobes foi a melhor decisão que tomei na vida.

Já estive em quase todos os tipos de profissões que alguém poderia imaginar. Balconista, caixa de supermercado, entregadora de jornais, garçonete de lanchonetes, e a lista continua. Nunca fiquei em nenhum por muito tempo. Digamos que... bem, meu último cliente achava que era o dono do mundo e por isso tinha o direito de levantar o tom de voz para gritar comigo quando houve uma confusão com os pedidos. O sangue subiu à minha cabeça. Foi um dia e tanto. Meu punho ficou doendo, e por pouco — muito pouco — não fui denunciada por agressão. Talvez a ameaça de ser fichada foi o que abriu meus olhos para como eu deveria começar a agir, a não ser que quisesse parar na cadeia e ver o sol nascer quadrado pelo resto da vida. Não que eu não saiba como lidar com fregueses, quero dizer, sei exatamente como ser aquela garota doce e legal que arranca elogios e sorrisos divertidos das pessoas ao seu redor. A menina boazinha que segue as regras, baixa a cabeça e dança conforme a música toca. Já vi muitas dessas por aí para saber o que devo fazer para ser igual a elas.

Só que eu não sou essa garota. Nem ao menos sei o que sou, ou que merda ainda estou fazendo aqui, nessa casa, ouvindo mamãe e papai discutindo mais uma vez tão alto que tenho certeza de que toda a vizinhança está ouvindo. Gritos estridentes. Barulhos de coisas quebrando. Vozes tentando se sobrepor uma à outra. Os sons são mais familiares do que poderia querer, porque esse é o tipo de ritual que regularmente toma conta das famílias que moram no prédio, particularmente no período da noite.

Se fizessem um concurso do pior vizinho ali, teríamos um empate de primeira. Não fui a adolescente sorteada para dizer de boca cheia que minha família é a única problemática num raio de dez metros de distância. Há crianças morando naquele prédio caindo aos pedaços, tão assustadas quanto eu.

Faço minha mochila e em seguida passo pela porta, evitando olhar para a cozinha, onde os dois ainda estão no meio de uma discussão acalorada. Isso é tão normal para mim. Para qualquer um daquele bairro. Uma das poucas coisas boas sobre morar no Vale do Inferno é que todo mundo ali compartilha de algum tipo de vulnerabilidade que coloca todos no mesmo patamar. Os moradores podiam me odiar por ser esquisita e mal-humorada, mas não me odiariam por ter uma casa zoada e uma família bagunçada. Isso era meio que um pré-requisito que qualquer pessoa deveria ter se quisesse morar ali.

Antes de fechar a porta, ouço mamãe falando algo sobre drogas encontradas e a nossa TV que sumiu. Perdi as contas de quantas vezes fomos ameaçadas. Ou de quantas vezes ele me fez fumar cigarros para escapar de um castigo e assistiu a tudo rindo. Sinto que estou perdendo essa luta, porque a cada segundo maçante que passa fumar é a primeira coisa à qual quero recorrer.

Não entendo por que mamãe não o abandona de uma vez por todas. Bob virou um viciado depois que foi demitido do emprego. Desde então, as coisas nunca mais foram as mesmas. E quando digo "nunca", quero dizer por muito, muito tempo.

Dizem que o tempo pode deixar você apático diante de situações estressantes.

Concordo em parte.

Quando eu era mais nova, costumava fugir de casa quando as coisas passavam do limite. Tudo começou quando meu pai levantou a mão para minha mãe pela primeira vez. E então depois para mim, quando não o obedecia nos mais estúpidos detalhes. Nunca fui letrada o suficiente para saber quando uma surra educativa passa a ser violência doméstica. Com o tempo, deixei de fugir e passei simplesmente a aceitar tudo como se estivesse em estado catatônico. Perdida dentro de minha cabeça, criando fabulações para escapar do mundo ao meu redor, pensava coisas como: "Tudo vai passar. Tudo iria passar. As coisas vão melhorar." E as coisas realmente passavam. Melhoravam a ponto de eu achar que estava bom demais para ser verdade. Mas então, de um segundo para outro, tudo piorava. Minha vida é essa montanha-russa, com altos e baixos. Não conheço nada diferente disso. Acredito que nenhum daqueles moradores, também.

Agora trabalho meio expediente como garçonete para um bufê. Geralmente isso acontece nos fins de semana à noite, ou quando me chamam. Esse é o grande favor de Tracy, minha melhor amiga, para mim. Reconheço que devo uma grande e gorda xícara do melhor chocolate quente para aquela garota. Tracy adora chocolate. Conheci-a quando fui transferida, no Ensino Médio, para uma escola relativamente longe do bairro. Longe o suficiente para deixar mamãe menos preocupada com minha segurança e educação. A mãe de Tracy, a Sra. Witters, é proprietária do bufê e agora é minha chefe. Dizem que ela é uma ótima chefe. Disciplinada, justa e prestativa. Não tenho dúvidas quanto a isso, pois já tive oportunidade de conhecê-la e a mulher é sensacional. Não estaria tendo essa chance de juntar meu próprio dinheiro, se não fosse pelo voto de confiança depositado em mim.

O centro da cidade é ali perto, então resolvo ir a pé.

Mentira. O hotel ao qual estou indo não é tão perto assim se for andando. Só que não tenho dinheiro para ficar gastando com passagem de ônibus, sem falar que esse ainda é o meu primeiro dia no novo emprego, o que significa que ainda não recebi nem um centavo sequer.

Dinheiro não é uma coisa que tenho visto muito ultimamente. E nem TV. Mesmo assim, na minha cabeça onde crio fábulas, continuo a dizer a mim mesma que caminhar faz bem para a alma. É saudável, ainda que meus pés estejam reclamando de cansaço e dizendo o contrário. Sorrio, porque esse pensamento me faz sentir melhor de alguma maneira, enquanto estou caminhando pelas ruas apinhadas de pessoas falando aos seus celulares de última geração ou qualquer outra tecnologia de merda que inventaram. Sinto-me alguém que não é tão insignificante quando entro pela porta dos fundos do hotel onde acontecerá o evento.

A primeira coisa que sinto quando sigo para o salão, em direção à cozinha logo atrás, é estranheza. Sou uma deslocada no meio de todos aqueles funcionários vestidos com seus uniformes engomados. Observo com certo fascínio a graça com que as moças ajudam a arrumar tudo, percebendo que estão bastante maquiadas para meu gosto. Antes que a Sra. Witters me veja, penteio rapidamente meus cabelos com os dedos e prendo-os para trás em um coque baixo.

Meia hora depois a cozinha está a todo vapor. Conheço uma garota simpática chamada Heather, dona de abundantes cachos loiros e uma risada engraçada. Trocamos uma ideia e outra enquanto montamos as bandejas. Quando ela descobre onde moro, quase penso que vai desmaiar bem ali, no meio da cozinha.

— Jesus Cristo — deixa escapar de seus lábios, os olhos arregalados. — O que você fez de tão ruim para ser mandada para um bairro tão mal falado quanto este?

Dou de ombros, não querendo que o assunto se prolongue. O Vale do Inferno já foi de fato um inferno para seus moradores, mas sinto que as coisas, agora, estão começando a tomar um rumo diferente. Especialmente porque já faz muito tempo que não há briga de gangues, depois que a polícia resolveu a situação com um grupo de encrenqueiros perigosos. Ou talvez seja apenas mais uma daquelas fábulas mentirosas criadas pela minha mente.

— Para alguém que mora no Vale do Inferno vir trabalhar aqui — continua Heather, subitamente empolgada com a informação que descobriu sobre mim, a "garota do gueto" que veio tentar a vida na cidade. —, então você vai adorar este lugar. As pessoas aqui se vestem como verdadeiras celebridades! Depois não diga que não avisei. Vai ser um choque e tanto, garota — ela termina, rindo. Segura uma bandeja sobre a palma da mão, e pisca para mim.

Atravesso o salão oferecendo os petiscos da Sra. Witters aos convidados. Todos estão muito elegantes e bonitos. As mulheres estão usando vestidos de noite longos e os homens vestem smokings impecáveis. Jamais vi algo parecido. Minha primeira reação é ficar fascinada, como uma criancinha que vê o Papai Noel no natal. É tudo muito rico, dourado e... bonito. Nunca vi nada assim antes. A perfeição, a simetria, o brilho e o glamour eram o tipo de coisa que eu só via na TV, até então. Isto é, quando eu ainda tinha uma TV.

Meu Deus, é a primeira vez que saio daquele buraco de inferno para trabalhar no centro da cidade, em um hotel muito famoso, e em pouco tempo que cheguei ali, já estou babando pelo cenário luxuoso.

— Eu disse. — A voz divertida de Heather chega até mim.

Para alguém que mora na parte central da cidade, este tipo de visão deve ser normal. Como abrir o guarda-roupa e ver que as mesmas peças de roupas continuam lá. Mas para alguém que mora no Vale do Inferno, não. Não estou acostumada a isso. Roupas grandes para meu tamanho, calças remendadas e o farrapo ridículo que chamo de mochila — é isto a que estou acostumada.

— Feche a boca, Ellie — Heather brinca comigo.

Pisco, saindo do transe, e fecho a boca antes que pensem que sou retardada. Em uma de minhas voltas no salão, paro a um pequeno grupo, sorrindo, oferecendo guardanapos a todos e estendendo a bandeja. Os convidados pegam o caviar com todo cuidado, que me parece um negócio muito pequeno e horroroso para satisfazer o apetite de alguém, mas estão comendo mesmo assim. Então o que sei sobre a alta sociedade, certo?

Apresso-me em voltar para a cozinha, para encher outra bandeja. Heather está ao meu lado na bancada de aço inoxidável, fazendo o mesmo com sua própria bandeja.

— Como é morar lá? Digo, de verdade? — ela me pergunta, e sinto instantaneamente como se eu fosse uma atração de zoológico.

— Não é boa coisa.

— Mesmo? Por que diz isso?

Eu bufo, uma única risada, e ela deve ter percebido a ironia em meu comportamento.

— Está falando sério? — Paro para olhá-la. Ela não é a primeira a querer saber como é a vida de uma pobretona que mora no Vale do Inferno. — Você certamente assiste TV, lê os jornais e muito provavelmente tem acesso à internet para pesquisar sobre coisas desse tipo.

— Bem, eu... — Ela encolhe os ombros.

— Vá em frente. Me veja como uma atração, um número de espetáculo. Isso não faz de você uma pessoa diferente das outras. Não é legal morar em um lugar como aquele. E não é legal ficar perguntando sobre isso para estranhos!

Viro-me, indo na direção do bar para fugir de qualquer pedido de desculpas superficial que Heather possa querer me dar. É por isso que adoro Tracy, ela me vê como realmente sou e jamais foi idiota como garotas como Heather. Tracy é oriunda de uma família de classe média, com uma mãe divorciada que está batalhando pelo sustento das duas. Não que ela nunca tenha me perguntado como é morar lá, pois o assunto desperta a curiosidade. Mas já éramos amigas, e isso nos dava passe livre para sermos intrusivas uma com a outra.

Estou rodando pelo salão, quase completando a terceira volta, quando avisto um homem que está falando com um grupo de pessoas, aparentemente seus amigos. Ele está de costas para mim, mas mesmo assim posso dizer que seu sorriso é perfeito quando, ao acaso, vira o rosto para olhar o movimento ao seu lado.

Estanco. Sinto como se tivesse sido atingida por um trem de carga.

Há esta força envolvente exercendo seu controle sobre mim.

Ombros largos, olhos pretos insondáveis, a pele cor de oliva e dono de uma fisionomia invejável por qualquer homem que se preze. Por incrível que pareça, ele é um dos poucos que não tem uma mulher pendurada em seu braço.

Minha palma da mão sob a bandeja começa a tremer incontrolavelmente.

Quem é ele? É a primeira vez que vejo tanta beleza reunida em uma só pessoa, e não deixo de ficar embasbacada com isso. Minha vontade é de lhe perguntar seu nome, pedir seu número de telefone, qualquer coisa para ouvir sua voz. Dou alguns passos mecânicos em sua direção, chegando mais perto, e agora realmente consigo ouvi-lo falando.

Que voz... e carrega um leve sotaque britânico. Oh, nossa. Alguém deveria prendê-lo por ser tão sexy. O que eu faço agora? Devo me aproximar? Me afastar? Ele é jovem, apesar dos traços intimidantes que lhe conferem certa austeridade. Provavelmente é oriundo de família rica, também. Quem ali dos convidados não é, afinal?

Minha respiração falha assim que percebo que o grupo deixa de falar quando me nota atrás dele. Seguindo os olhares, ele se vira sem aviso algum e os olhos escuros encontram os meus, por cima de seu ombro.

Em choque por ser descoberta, dou um passo para trás deixando escapar um arquejo, e bato em algo duro atrás de mim que me desequilibra e quase me faz derrubar a bandeja.

— Cuidado com isto, boneca. — Um homem segura minha bandeja antes que ela incline o suficiente sob minha mão e caia no chão.

— Desculpe — murmuro, envergonhada pelo quase desastre. — Eu não quis... Juro que não foi minha...

— Está tudo bem. — Ele pisca para mim.

Ele é alto, cabelos louro-escuros, e está sorrindo para mim. Estou tão agitada que não percebo que o grupo já está ao nosso redor, servindo-se dos caviares da minha bandeja. Sou uma estranha no ninho.

— Por que demorou tanto? — o dono dos olhos pretos pergunta com impaciência, olhando para nós dois.

Perdida, mantenho seu olhar, embaraçada. Não sei se a pergunta foi para mim, que demorou a oferecer a bandeja, ou se para o louro, que aparentemente acabou de chegar ao hotel.

— Jerome, Jerome. Como sempre, impaciente. — Ele está rindo quando cumprimenta o homem igualmente alto, porém com olhos negros tão ameaçadores que me dão calafrios quando nossos olhares se cruzam outra vez. — Depois de tanto tempo na Europa, vejo que não mudou em absolutamente nada. Onde está a Sra. Carver para que eu possa adverti-la sobre o filho impulsivo que tem?

Jerome... Então seu nome é Jerome.

— Engraçadinho — ele fala com um sorriso torto, entrando na brincadeira do amigo. — Ela teve que dar uma saída. Jameson pediu para eu dar o recado de que não viria para a América, comigo, porque está se dedicando aos estudos para os exames finais. No entanto, como bem conhece a durona da Sra. Carver, aquela mulher não ficou satisfeita e agora resolveu que perturbar meu irmão com ligações inoportunas o fará se sentir culpado por não ter vindo visitá-la.

— A velha definitivamente sabe como fazer alguém se sentir arrependido.

Ofereço guardanapo para o louro, que está se servindo do caviar.

— Sabe, sim.

Os dois estão rindo do que parece ser uma piada interna, entretidos demais para notar o restante das pessoas.

— Mas e você? O nobre Jerome Carver não está se dedicando aos exames finais? Que feio.

Jerome dá um sorriso confiante que arranca meu fôlego.

— Tudo o que preciso está aqui. — Ele bate o indicador no lado da cabeça. — Jameson é um ansioso desesperado incurável. Acredita que ele passou a tomar remédios para diminuir a ansiedade? Aquele hipocondríaco! O desespero daquele cara por controle é tão doentio que me deixa com dor de cabeça só de olhar para suas pilhas organizadas de livros.

— Por outro lado, o irmão de Jameson é tão liberal no quesito controle que deve deixá-lo maluco com suas desorganizações...

— Foi exatamente por isso que decidimos que não estava dando certo morarmos sob o mesmo teto. Há uma linha muito tênue nessa coisa de morar junto com a família. — Ele suspira forte como se estivesse cansado. — O perfeccionismo daquele cretino estava me dando nos nervos.

A conversa continua como se fossem amigos de infância e estivessem se reencontrando após muito tempo. Fico por ali tempo suficiente para ouvir que Jerome retornou da Inglaterra para visitar a mãe, a Sra. Carver. Ele mal me nota quando a bandeja esvazia, e tenho que voltar para a cozinha.

Uma vez em frente à bancada, dou um sorriso amargo. Por que ele notaria alguém como eu? Aliás, por que quero que alguém como ele me note? Faço parte da cozinha, onde é o meu lugar. Não passo de uma garota miserável que mora no Vale do Inferno, e ele, o playboyzinho festeiro. Nunca precisei que caras como ele me notassem para me sentir alguém melhor, porque já sou alguém melhor sem isso.

Só que não estava contando que minha ambição fosse me desviar do caminho, pois subitamente tenho uma ideia nada aprovável ao ver as mulheres tão graciosas deslizando pelo salão em seus vestidos de seda. Reconheço quase que instantaneamente a inveja. Ela é grande e imparável, me domina com um único golpe em meu orgulho. Droga, não sou de ferro. Quando se vive anos num buraco úmido e fedorento como o Vale do Inferno, você tenta fazer as suas chances de ter uma vida mais digna.

Um sorriso desmancha meus lábios quando vejo Jerome envolto pelo grupo de abutres aproveitadores. Neste momento, não sou muito diferente deles. Sou apenas a Ellie vendo uma oportunidade, ciente de que fazer isto pode ser perigoso.

Começo a caminhar com passos decididos, pensando que posso ter o dinheiro para comprar coisas de garota para mim mesma. Coisas que Boozy me lembra que não tenho, sempre que cruzo seu caminho e ouço suas malditas piadas idiotas sobre minhas roupas. O fim disso está próximo.

Chego mais perto, oferecendo mais petiscos, enquanto estou andando propositalmente desatenta pelo salão. Espero pelo momento certo antes de fazer meu movimento.

— Desculpe — murmuro envergonhada quando esbarro em Jerome no meio do caminho.

Meu braço começa a formigar por ter encostado no dele, ainda que contra o tecido sofisticado da manga preta de seu smoking. Ele me olha rapidamente, antes de eu bater em retirada. Meu coração está batendo tão rápido que acho que terei uma parada cardíaca antes mesmo que consiga entrar furtivamente no banheiro feminino.

Paro em frente à porta, imóvel, após ter largado a bandeja vazia em um lugar qualquer.

Com as mãos livres, apalpo o bolso frontal do meu meio avental.

Um sorriso vitorioso toma conta de meus lábios quando sinto a forma dura e geométrica da carteira. É isso o que você consegue por aprender com os melhores no assunto. É a minha primeira experiência como ladra de verdade, então minhas mãos estão tremendo sem parar, mas procuro me controlar regulando a respiração. Entretanto, não consigo evitar o medo ao pensar que a Sra. Witters vai me matar se souber que roubei um dos convidados do evento.

Ergo a mão para a maçaneta, mas, antes que possa abrir a porta, dedos apertam meu braço com uma força incalculável, e sou arrastada para a direção oposta, para o banheiro masculino.

Sou jogada lá dentro sem cerimônias.

Flagro um cara com as calças baixadas até os tornozelos usando o bidê para fazer xixi em pé. Muda, eu só consigo encará-lo tentando não olhar para suas partes íntimas expostas. Esse tipo de coisa não acontece comigo. Nunca vi um cara pelado, muito menos fazendo xixi. Tudo bem que a maior parte das garotas que conheço já são jovens mães, mas minha aparência e jeito de moleque selvagem jamais atraiu a atenção de um cara a ponto de ele me aguentar não importa o quê.

Acredite, às vezes sei ser bem detestável.

— Dê o fora! — Ouço a irreconhecível voz atrás de mim.

Merda! Merda! Merda!

O homem atende à ordem, desnorteado com minha presença ali, e levanta as calças para subir o zíper. Ele está cambaleando até a porta, antes de fechá-la atrás de si.

Prendo a respiração, virando-me lentamente, e arquejo alto com o que vejo. Jerome está uma fera, o maxilar cerrado, grunhindo perigosamente para mim. Uma bela fera pronta para atacar a primeira presa que encontrar. Suas garras estão postas para fora, os olhos estão mais escuros do que nunca, faiscando para mim, e me obriga a erguer o rosto quando dá um passo em minha direção, porque ele é assustadoramente mais alto do que eu.

— Esvazie os bolsos — ordena, sem desgrudar os olhos dos meus.

Um tremor percorre meu corpo inteiro.

— O quê? — pergunto, atordoada.

— Esvazie a droga dos bolsos!

Meus tímpanos ficam zumbindo por alguns instantes. Ele está bravo comigo, e sei que tem uma boa razão para isso. Somado às feições duras, seus cabelos negros como ébano conferem uma beleza demoníaca ao rosto masculino. E talvez seja isso a explicação para o porquê de eu não conseguir controlar esse medo que não sei de onde vem.

Vagarosamente, direciono meus dedos trêmulos para dentro do bolso do meio avental. Com o rosto voltado para baixo, tiro a carteira e a mostro sobre a palma da mão.

Encolho quando ouço a risada de deboche. Me sinto tão envergonhada que a Ellie atrevida está dando lugar a uma Ellie imóvel e assustada, avaliando suas opções de fuga.

— Essa é boa, muito boa mesmo! Você é seletiva com suas vítimas ou deixa as coisas nas mãos do acaso?

Permaneço calada, espantada que ele tenha sacado tudo tão rápido. Como ele percebeu? O que eu fiz de errado que me denunciou?

— Então? — ele insiste.

É somente quando toma com violência a carteira de minha mão que fraquejo, e volto ao bom senso para me dar conta do que acabei de fazer.

— Eu sinto muito — murmuro, arrependida, e falo incoerentemente: — Não sei o que houve... eu não estava raciocinando. Não queria... é claro que não. Eu apenas... não pensei, entende?

Levanto o queixo, procurando os dois olhos negros, que estão brilhando como duas ônix pretas para mim. Jerome demora tanto tempo me analisando, como se estivesse tentando medir a sinceridade de minhas palavras, que minhas pernas ficam bambas. Apenas não sei mais se é de medo. O homem bonito, a quem estive observando com admiração, está sozinho comigo naquele banheiro.

Poder vê-lo tão de perto me deixa levemente tonta.

Tudo isso passa em segundos quando ele faz menção de ir embora e eu caio na realidade.

— Por favor, não conte à Sra. Witters! — peço, tropeçando nas palavras. — Minha chefe vai me demitir. E então depois vai me matar se souber que tentei roubar um dos convidados.

Ele assume uma expressão de desdém quando me olha de cima a baixo, com a sobrancelha erguida.

— Então além de ladrazinha barata, não passa de uma medrosa, hein? Não parece estar há muito tempo no ramo. Seus movimentos são suaves e quase imperceptíveis, mas é tão estabanada que não percebeu que estava sendo observada desde antes.

A confusão se estabelece junto com meus pensamentos conturbados. Sendo observada? Ele esteve me observando? Quando? Por que eu não percebi isso? Deveria sentir que alguém me encarava insistentemente pelo salão, mas não aconteceu nada disso. Jerome parecia entretido demais para prestar atenção em mim, mesmo quando estive a um palmo de seu nariz!

— Quantos anos tem? — Ele troca o peso do corpo para a outra perna. Ao ver que não tenho intenções de responder, ele parte para a ameaça implícita: — Devo perguntar à sua chefe? Sra. Witters, certo?

— 17 — respondo a contragosto.

— 17? Mais nova do que pensei. E isso não foi um elogio, sabe? — diz, claramente caçoando de minha aparência descuidada.

Fecho a cara para ele e isso só parece deixá-lo ainda mais satisfeito.

— Tem sorte por eu ter resolvido não levar isso adiante, garota. Mantenha suas mãos longe de mim, ou então da próxima vez chamarei a polícia, e aí não será somente com sua demissão que terá de se preocupar.

Com isso, ele passa por mim, esbarrando de leve na lateral do meu corpo, e sai.

Toco o braço colidido, sentindo o formigamento familiar enquanto estou me amaldiçoando centenas de vezes, antes de recuperar dignidade suficiente para sair daquele banheiro masculino.

Uma vez na cozinha, fecho as pálpebras, esperando que o caso não chegue aos ouvidos da Sra. Witters.

Merda, Ellie. Que droga você foi fazer? A que ponto você chegou? Por que não dá simplesmente um tiro na sua cabeça e morre de uma vez por todas?

Passo o resto da noite enchendo bandejas com os pratos de jantar e, em seguida, com as sobremesas. Depois de algum tempo, o turno termina, e garçons e garçonetes são liberados para irem embora. A equipe que cuida da limpeza já está fazendo seu trabalho na cozinha.

Tiro o meio avental, colocando-o na mochila, e faço meu caminho a pé para casa. Não tenho pressa, pois sei o que vou encontrar quando chegar lá. Desfaço o coque com um suspiro, bagunço os fios com os dedos, e elevo a cabeça para olhar o céu escuro da noite. Parece tão calmo. Queria ser assim, serena. Mas sei que estou muito longe disso.

No caminho de volta para casa, tenho a sensação de estar sendo seguida. Ouço passos atrás de mim. Com uma breve olhada por cima do ombro, encontro meu perseguidor. Sorrio. Não é nada menos que um cachorro vira-lata magricela e faminto em busca de comida. O animal se inclina para frente, sobre as patas dianteiras, e começa a rasgar os sacos de lixo empilhados em um canto no chão.

Continuo andando e ajeito a mochila sobre o ombro. Quando viro a esquina, percebo que ela está totalmente deserta. Está muito tarde e meu instinto de sobrevivência me diz que é perigoso demais andar sozinha por aí a essa hora, numa rua mal iluminada.

Tomo uma decisão. Aperto os passos, mas, quando entro em um beco no meio do quarteirão para alcançar o trajeto que leva à minha casa, começo a correr. Algo está gotejando de uma calha quebrada e o cheiro do lugar é horrível. Há restos de lixo espalhados poluindo mais ainda o chão imundo. Estou sem fôlego, com a esperança de conseguir chegar em casa sã e salva, correndo tão alucinada que poderia tropeçar em meus próprios pés por um mínimo erro de cálculo.

Ocorre que algo aparece do nada e me agarra por trás. Caímos enrolados no chão sujo, em um emaranhado de braços e pernas tentando me imobilizar. Estou gritando por socorro, me debatendo, lutando por minha liberdade enquanto braços tentam me prender para me fazer ficar quieta.

O medo corre à solta para o canto de meu estômago. É um ladrão? Serei estuprada? Morta? Aqui e agora, sem oportunidade para dizer adeus às pessoas que foram queridas em minha vida?

Uma mão cobre minha boca e meus gritos saem abafados, então eu a mordo com vontade.

— Merda! — alguém exclama.

É uma voz masculina que me faz paralisar.

Mas o que...?

Lentamente ele move o rosto para cima, em direção à luz fraca do poste.

Ah, meu Deus, é Jerome. O que ele está fazendo aqui?

— Estou seguindo você há mais de meia hora. Pelo modo como começou a correr, achei que tivesse me confundido com um ladrão, por isso achei necessário abordá-la para desfazer o mal-entendido.

Assim que consigo recuperar o fôlego, pergunto:

— Você estava me seguindo?

— Estava.

Como não percebi isso? É a segunda coisa que ele faz e não percebo. Preciso tomar cuidado com esse cara. Ele deveria vir com um aviso colado na testa de "Cuidado. Perigo sorrateiro ambulante."

— Aqui, deixe-me ajudá-la a se levantar.

Ele me estende sua mão. Ainda surpresa com o rumo das coisas, eu aceito o gesto e sou puxada com firmeza em direção ao seu peito. Jerome me põe de pé em segundos, frente a frente com ele. Estamos tão próximos que consigo sentir o aroma fresco de seu perfume. Sua mão é forte, calejada e morna, e envolve a minha em quase toda sua totalidade.

Desfaço o contato.

— Por que estava me seguindo? — Ele apenas sorri. De mim? Sou uma piada para ele? — Responda! Tenho o direito de saber sobre isso. Estava tentando me assustar? Dar alguma espécie de lição de moral na garota que furtou sua carteira?

— Essa não foi minha intenção, apesar de ter ficado bastante bravo com você por ter feito o que fez.

— Bem, sendo ou não, você me deu um susto do caramba.

Ele assente com a cabeça, divertido pela forma como expus meus pensamentos sem filtro de polidez algum.

— Peço que me desculpe — ele fala, por fim. — Vi você saindo do hotel e resolvi que poderíamos conversar um pouco sobre o que aconteceu.

— O que quer dizer com isso? — Assumo uma postura defensiva.

Não é possível. Quando isso vai passar? Outro intruso querendo saber sobre minha vida no Vale do Inferno...

— Calma, boneca, não precisa ficar toda eriçada. — Ele levanta sua mão para me tocar, ao que eu recuo, afastando-lhe o braço com um safanão.

— Não sou sua boneca! — Mal percebo que estou ofegando, inquieta por sua presença perturbadora.

— Mas pode ser — diz, inconsequente.

É noite e o ambiente onde estamos não tem muitas luzes, mas sinto quando minhas bochechas esquentam, deixando-me vermelha como um tomate.

— Dê o fora daqui. — Dou uma breve olhada em seu smoking caro. — Você não pertence a este lugar!

Giro nos calcanhares e começo a caminhar com passos acelerados, o coração palpitando no peito na velocidade de uma britadeira. Nenhum cara me deixou tão nervosa quanto este.

De repente, sou puxada de volta. Por instinto, me defendo com minhas palmas erguidas, que vão bater em seu peito duro e largo.

— Por favor, me deixe em paz. Não vou roubar você de novo — falo o que acho que ele quer que eu fale. Trata-se de uma lição, não é isso? Para ser perturbada desta maneira intimidante, só pode ser fruto de um castigo diabólico. Um que me deixa muito arrependida, a ponto de fazer meus olhos ficarem marejados. — Prometo que não farei de novo. Com ninguém. Não vou... eu juro.

— Isso é bom. — Sem entender, observo seus olhos escuros presos em minha boca e ouço sua respiração se tornar pesada. — Mas vou ter que roubar você. Todinha. Agora, tudo bem?

Antes que eu possa abrir a boca para falar alguma coisa, Jerome pega minha mão com gentileza, beija-a carinhosamente na costa, e me faz caminhar lado a lado com ele até sairmos daquele beco escuro e sujo.

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