Capítulo 3

Eric Myers é o tipo de homem que não consigo compreender. Uma vez que você está nesse ramo de corretor de imóveis, naturalmente terá de lidar com uma das variáveis mais complexas que existe na face da Terra: o ser humano. Posso não ser a veterana de maior sucesso, mas o Sr. Myers definitivamente está se revelando um mistério para mim.

Desde que o busquei para irmos até o imóvel, ele parece assustado toda vez que olha para o interior do veículo, como se pudesse ser engolido por ele a qualquer momento.

— Chegamos! — anuncio, estacionando o carro com um solavanco assustador até para mim mesma. Uma roda subiu na calçada sem a minha permissão. — Droga de carro — resmungo. — É usado. Comprei por uma barganha — explico para o Sr. Myers, que está arquejando tão alto que posso ouvir seus ruídos de medo. Seus dois olhos estão esbugalhados de horror para mim. — Vai ficar tudo bem. É meu dever saber o que estou fazendo, Sr. Myers. — Sorrio para acalmá-lo, mas isso só parece aterrorizar o homem ainda mais.

Aciono a marcha ré e, com um solavanco horrível, descemos da área de pedestres cantando pneus.

Oops, acho que acelerei além da conta.

— Desculpe! — grito pela janela aberta do carro quando alguém buzina atrás de mim. — Essas botas estão me matando — reclamo em voz baixa, girando o volante para parar o carro na posição mais reta e perfeita que consigo junto ao meio-fio.

O Sr. Myers é o primeiro a sair, caindo para fora do carro antes mesmo que eu possa desligar o motor. Segundos depois, estou saindo do veículo com os pés descalços. O Sr. Myers nota o detalhe quando dou a volta para alcançar o porta-malas.

— Onde estão seus sapatos?

Ergo a mão segurando as botas de salto agulha pelas bordas.

— Vou trocá-los. Não aguento mais um minuto sequer com esses saltos.

— Você dirigiu com isso esse tempo todo? — Ele está horrorizado enquanto segura sua pasta de couro contra o peito, como se estivesse pronto para correr a qualquer momento. De um ladrão, talvez?

— Ah, qual é, elas não são tão feias assim. — Sorrio tentando quebrar o gelo e abro o bagageiro do carro. — De qualquer forma, sempre estou bem preparada para emergências quando elas surgem. — Pisco para ele.

Intrigado, o Sr. Myers me segue até estar do meu lado, e encara o conteúdo do porta-malas. Além da magnífica coleção dos sapatos mais variados que guardo, há também uma grande bolsa de viagem que ocupa o outro lado do bagageiro com minha nécessaire e mudas e mais mudas de roupas em seu interior. Algumas peças estão transbordando para fora porque nem todas couberam dentro da mala.

— Para que são todas essas coisas? Está tentando ganhar dinheiro como contrabandista também?

Rio da piada. Mas seus olhos ainda estão sérios para mim e não estou mais certa se realmente foi uma brincadeira.

— Carrego um pouco de tudo. Metade da minha vida está nesse carro e a outra metade, em minha casa. Tento sempre estar preparada quando surge algum compromisso novo na agenda, como uma conferência, uma viagem ou... uma visita a um terreno irregular com um cliente.

Tenho náuseas quando encontro o par de scarpin de onça com que me presentearam no meu aniversário do ano passado. Uma ideia cruza minha mente e me faz calçá-los, bem como o relógio de ouro de tela retangular e enorme que resolvo usar, o qual a mesma pessoa me deu no meu outro aniversário. Coloco-o em meu pulso, pensando que, se fosse para ser assaltada, gostaria de estar usando esses dois objetos em especial.

Coisa minha.

Tenho que bater a porta algumas vezes até conseguir fechar o compartimento. Quando adquiri o carro, não sabia que a fechadura estava enferrujada. Jurei que seria a primeira e última vez que compraria um carro usado. Mas, quando se é uma corretora imobiliária que só vive falida, às vezes você tem que ser adepto do ecletismo.

— Pronto! — Tranco a porta do carro, caminhando de costas pela calçada enquanto observo o ângulo torto do carro estacionado, formado pelo para-choque traseiro inclinado para a rua.

Dou de ombros e guio o Sr. Myers em direção à porta da casa, subindo o pequeno lance de escada.

— Não quero parecer arrogante nem nada, mas devo dizer que o senhor vai adorar a escolha que fiz. Cabe dentro do seu orçamento e o lugar é muito confortável. Praticamente um lar doce, lar! — Ergo o molho de chaves para abrir a porta da frente.

— Esse bairro não é perigoso? — Ele olha em volta, o semblante muito tenso.

— Claro que não! — Encontro a chave e encaixo-a na fechadura, a qual percebo que está quebrada. De novo. Mesmo assim, finjo para o Sr. Myers que estou abrindo a porta e que estou tendo muita dificuldade com isso.

A casa está no mercado há anos e, quando finalmente encontro um interessado, não posso deixar que nada dê errado. O bairro não é realmente perigoso, apesar de ser o antigo Vale do Paraíso, ou Vale do Inferno, como quiser chamar. Os índices de violência diminuíram drasticamente dos últimos anos para cá, depois que a polícia prendeu duas importantes gangues que entravam em constantes rixas, que deixavam os moradores assustados com os gritos e barulhos de tiros trocados.

Já presenciei guerras aterrorizantes e brigas entre verdadeiros gângsteres no meu bairro, quando ainda era uma criança, mas não tinha medo de sair de casa quando precisava. Conhecia aquelas pessoas desde pequena para saber que, fosse lá por qual motivo fosse, os garotos do Vale do Inferno tinham um conflito insolúvel com os do bairro logo ao lado. Eles me protegiam sem nem mesmo eu pedir. Então, de certa forma, não posso deixar de demonstrar alguma simpatia quando topo com eles de vez em quando.

Ou paciência.

— Ih, ó lá! Ás de Copas na área, galera!

Ouço familiares risos e gargalhadas altas e zombeteiras.

Ai, meu Deus.

Quando olho para trás, encontro a turma de Boozy reunida no lado oposto, perto de uma escada a alguns metros de nós. Boozy é um homem negro, alto, forte, com um porte intimidante e que gosta de usar sua típica bandana amarrada na testa. Não são caras da pesada, mas costumavam mexer comigo sempre que eu tinha que passar por eles no meu caminho para a escola. Puxavam minha trança, meu rabo de cavalo e faziam piadas dizendo que eu parecia um garoto vestido com minhas roupas folgadas e puídas. Coisas de meninos idiotas. Depois que crescemos e atingimos a fase adulta, eles passaram a me tratar com indiferença, mas me tiravam de todas as frias em que eu me metia quando não tinha ninguém por perto para me salvar de desconhecidos que me abordavam. E então, depois simplesmente voltavam a fingir que eu não existia.

Homens são seres de outro mundo que não consigo compreender.

— Quem são eles? — pergunta o Sr. Myers, nervoso, apertando como nunca a pasta de couro contra o peito. O homem parece estar a ponto de borrar as calças.

— Não ligue para eles. Podem parecer grandalhões arruaceiros, mas, no fundo, não passam de desbocados indisciplinados à procura de diversão às custas de outras pessoas. — Por fim, abro a porta, guardando o molho de chaves que não foi necessário. Atrás de mim, ouço piadas sobre meu sapato de couro de onça e meu relógio nada discreto. — Por favor. — Faço um gesto educado para que ele entre.

— Por que chamaram você de Ás de Copas? Vocês se conhecem?

— Eu cresci aqui, Sr. Myers — informo ao entrar logo após ele, deixando-o atônito. — Essa costumava ser a minha área. É normal ganharmos um apelido quando fazemos parte de certas rodas de amigos. Ás de Copas era o meu.

Calado, o Sr. Myers percebe quando uma melancolia me abate e respeita o meu silêncio ao não perguntar mais nada. Recém-divorciado e com mil dívidas para quitar, ele ainda sabe ser um homem compreensivo.

— Vamos. Quero lhe mostrar o ambiente.

Começo a mencionar uma série de características da casa com base nos meus conhecimentos sobre arquitetura e construção civil. Repasso a metragem do imóvel, conversamos sobre possíveis futuras complicações que possam comprometer o acordo, sempre tirando as dúvidas do Sr. Myers que estão ao meu alcance. A casa não é muito grande. Seguimos visitando cômodo por cômodo e chegamos ao último quando alcançamos o quarto. Ao abrir a porta, ouço meu próprio arquejo de susto com o que encontro.

Tem um cara lá dentro fumando um baseado.

— O que está fazendo aqui? — pergunto da porta, evitando entrar e sentir o cheiro forte da droga no ar.

Ele pisca preguiçosamente para mim e dá um sorriso lânguido num claro sinal de que já está chapado.

— A porta estava aberta, coração.

Ciente da presença do Sr. Myers atrás de mim observando e ouvindo tudo, eu limpo a garganta e falo:

— Não estava, não.

— Estava, sim.

— Está viajando, amigo. Esse negócio que está usando parece ser bem forte, hein?

Ele franze o cenho para mim, provavelmente tentando pensar com a sua mente afetada sobre como de repente adquiriu poderes para atravessar paredes e assim entrar em uma casa cuja porta estava fechada.

— Então como...?

— Dê o fora daqui antes que eu chame a polícia.

Não estou nem um pouco nervosa, exceto pelo cheiro da fumaça que, mesmo estando longe, está começando a penetrar em minhas narinas e deixá-las irritadas. Depois que parei de cheirar, adquiri uma certa intolerância a drogas.

O homem se levanta com dificuldade do chão, ainda sorrindo como um idiota para mim, e cambaleia em direção à porta do quarto. Abro espaço para ele que, quando passa por mim, joga um beijo atrevido com a mão. Giro os olhos para o outro lado, impaciente, e espero até ele sair pela porta da frente para colocar uma cadeira inclinada prendendo a maçaneta.

— Isso vai resolver. — Bato as mãos para tirar a poeira oriunda da cadeira e faço uma anotação mental sobre contatar o chaveiro para arrumar essa fechadura de uma vez por todas.

Ao girar nos calcanhares, encontro um Sr. Myers muito assustado, olhando para os lados como se alguém pudesse brotar do chão e atacá-lo quando menos esperasse.

Respiro fundo e volto a sorrir para ele.

— O senhor também verá que o quarto pode ser um dos ambientes mais arejados da casa, se abrir a janela... — Estou cruzando o quarto, quando chuto o resto do baseado para longe, e abro as janelas em busca de ar puro para impressionar meu cliente. Em vez do frescor, uma nuvem de poeira nos ataca e começamos a tossir. Estou rezando para que ele não seja uma daquelas pessoas que tem rinite alérgica. — Fazia tempo que ninguém vinha aqui. Na verdade, acho que o senhor é o primeiro interessado em quase dois anos que esta casa está no mercado imobiliário — explico em meio às tosses, com um sorriso sem graça.

— Ela não me parece segura e habitável.

— Está falando dos moradores do bairro?

— Bem, eles parecem ser bastante... ecléticos. — Seu rosto assume uma expressão confusa. — E este quarto está quase inóspito.

Abano uma mão num gesto despreocupado.

— Bobagem! Nada que uma faxina não resolva. Ela é pequena, mas está dentro do seu orçamento. Minhas buscas foram norteadas conforme todos os requisitos que me passou, Sr. Myers.

Lembro-me das horas e horas que ele passou se lamentando na mesa do meu escritório, chorando pela jovem esposa que pediu o divórcio e conseguiu arrancar quase tudo o que ele tinha. Deixei que todas as suas dores se sobressaíssem, porque, afinal, esse também é parte do meu papel de corretora. Além da golpista ter ganhado uma grande e gorda fatia de dinheiro após o processo judicial, ela nem ao menos demonstrou sequer uma parcela de culpa quando se casou com um dos amigos mais jovens do Sr. Myers, poucos dias depois do divórcio.

Ele me mostrou uma foto do cara e tive que concordar que o sujeito era realmente delicioso. Dono de um corpo de gogo boy, não poderia culpar a jovem moça por querer ser feliz, exceto pela falta de consideração em desposar um homem mais velho com intenções de dar o golpe nele. Uma tremenda vigarista de primeira mão.

Após ter me contado todos os seus percalços, me joguei em busca do remédio que ele precisa: uma casa que não saia tão cara e caiba no seu orçamento apertado de ex-marido enganado.

— Mesmo assim, não estou certo sobre isso, Ellie. — Ele desce pela escada da frente e se estabelece atrás de mim, esperando-me fechar a porta. — Não posso morar em um lugar com essas... pessoas.

Fico claramente ofendida. Afinal, aquele costumava ser o meu bairro, o lugar onde cresci. Ao perceber minha expressão de desprezo pelo que acabou de dizer, ele se corrige:

— É que não me sinto bem e seguro aqui. Talvez se procurar mais um pouco possa achar outra coisa?

— Vou ver o que posso fazer. — Tento não deixar transparecer que levei seu comentário para o lado pessoal. — Mas o senhor poderia...

— Parados! Isso é um assalto!

Nós dois erguemos instintivamente as mãos para o alto. A pasta do Sr. Myers aterrissa com tudo no chão e juro que ele está suando e se tremendo todo ao meu lado. É de dar pena. O homem já parece ser assustado por natureza. Depois desse dia de cão, ele nunca mais vai querer me contatar para fechar algum contrato comigo.

Fecho os olhos, suspirando de cansaço, e olho para o ladrão barato que está tentando me convencer de que o que está apontando para nós é uma arma de verdade. Sério, eu já vi armas. Já toquei em armas. Já manuseei armas. E isso, definitivamente, não é uma arma, apesar de ser uma réplica bem convincente.

— Está de brincadeira comigo? — Chio um palavrão, passando minha bolsa para ele quando torna a apontar a arma falsa para mim. — Você não tem família, não?

Ele dá uma espiada no conteúdo da minha bolsa e depois ordena que o Sr. Myers chute a pasta de couro para ele. Olho em volta à procura de Boozy para salvar minha pele, mas ninguém está nas proximidades para nos ajudar.

— Tenho uma mãe — o jovem responde. Suas características e sotaque parecem ser de origem latino-americana.

— Sua mãe não te ensinou que roubar é feio, garoto?

— Foi minha mãe que me ensinou a roubar, madame. Agora ela está doente e preciso de dinheiro para os remédios.

Eu me calo, perdida em meus próprios pensamentos, e pela primeira vez em muito tempo percebo que o Vale do Inferno ainda continua tão vulnerável quanto antes. E ao mesmo tempo, ainda que tenha simpatia pela minha antiga vizinhança, não posso me deixar ser roubada assim, ainda mais por um protótipo de criminoso. É um inferno ter que tirar segunda via de todos os documentos, cancelar cartões e perder vários cartões de visita de clientes prósperos.

— Já posso ir embora? — pergunta o Sr. Myers, baixando os braços.

— Eu falei para ficar parado! — o jovem grita, apontando com agressividade a arma para meu cliente, que volta a colocar os braços para o alto, tão medroso quanto antes. Talvez mais.

Mordo a mandíbula, balançando a cabeça sem perceber que estou cerrando os dentes. Alguém está precisando ficar frio aqui.

— Sua mãe está doente, você disse? — inicio uma conversa casual enquanto o observo abrindo minha bolsa para mexer dentro dela.

Talvez eu seja a pessoa mais maluca que alguém já conheceu apenas por estar pensando em fazer o impensável.

— Isso aí, madame.

— Onde ela mora?

Ele me olha com desconfiança.

— Por que quer saber?

Dou de ombros, fingindo que não me importo.

— Porque já morei aqui. Talvez eu a conheça e nem saiba. Então?

O jovem me olha da cabeça aos pés, analisando meu rosto maquiado, minhas roupas engomadas, meu relógio reluzente e meus saltos de couro sintético com estampa de onça. É, olhando assim, as pessoas nunca imaginariam que uma mulher como eu já fez parte das classes mais desfavorecidas da sociedade.

— Não parece que morou aqui. — Seu olhar é de pura desaprovação para os meus sapatos. Quase como se o que estivesse vendo fosse sinistro. — Não mesmo. Nunca vi você por aqui.

— O shopping — menciono. Ele ergue seus olhos para encontrar os meus. — O shopping tinha uma boca de fumo bem ao lado. Eu e meu grupo costumávamos rir muito disso.

A conhecida boca de fumo era exatamente a demarcação onde terminava o Vale do Inferno, ao passo que o deslumbrante shopping de zilhões de andares era onde começava o exuberante centro da cidade. Era uma contradição e tanto, que já arrancou muitas gargalhadas dos moradores do bairro por ser um contraste tão explícito e impactante entre a riqueza e a pobreza de um lugar que os políticos tentavam esconder. Políticos como Cliff McDougall, que tentavam nos silenciar com algumas migalhas aqui e ali. A verdade é que todos querem fazer caridade e serem solidários, mas ninguém gosta quando a cidade é invadida pela ralé.

O jovem, que antes parecia estar armado até os dentes, agora me observa com um brilho de reconhecimento em seu olhar. Porém, ainda está claro que está duvidando de minhas palavras.

— Qual é a doença de sua mãe? — continuo socializando.

— Alzheimer — responde, sucinto, mais uma vez me analisando com cuidado como se eu fosse a Medusa prestes a dar o bote.

— Deve estar sendo uma barra e tanto — comento, sorrindo com condescendência. — Eu tenho uma filha.

Sinto o olhar desacreditado do Sr. Myers para mim, como se eu fosse uma louca por estar dando informações sobre minha vida pessoal para um bandido.

Calma, eu sei o que estou fazendo.

— Qual é o nome dela? — o jovem homem inquire com os olhos semicerrados, fechando minha bolsa para pendurá-la sobre seu ombro.

Quero sorrir, porque, sim, ele está caindo na história da Medusa aqui.

— Johanna — falo o primeiro nome que me vem à cabeça, com uma expressão melancólica. — Ela também está doente. E os remédios são caros demais. Então, acredite, sei bem o que está sentindo.

— Qual é a doença dela?

— Grave quadro de autismo.

Vejo a confusão perpassar em seu olhar e só posso concluir que ele não sabe o que é autismo. Explico rapidamente, pintando um quadro muito exagerado que sei que não faz parte do autismo. O Sr. Myers parece estar a ponto de gritar comigo ao perceber o que estou fazendo.

— Caralho — o jovem meliante mexe os ombros como se estivesse tendo arrepios. — Quantos anos ela tem?

— Oh, apenas 3 anos. Muito nova ainda, mas tenho certeza de que sua mãe deve estar passando por coisa pior.

O jovem pensa por um momento, desviando seus olhos não tão mais agressivos dos meus. Então, em um gesto de paz, baixa a arma e sacode a cabeça negativamente, perdido em seus pensamentos.

— Meu pai era violento. Quando viemos para esse lugar de merda, as coisas só pioraram.

Sorrio.

— Sei bem como é. Meu pai era alcóolatra e violento.

— Meu pai era alcóolatra, violento e drogado — adiciona.

— Bob, na verdade, era alcóolatra, violento, drogado e praticava violência doméstica contra minha mãe — acrescento propositalmente.

— Chance batia em todos nós. — Ele faz uma careta para mim.

Aceno com a cabeça, pensativa, e com um ar sombrio pairando em meu rosto.

— Já ouviu falar do boneco Chuck? Bob tinha certa paixão em me cortar. — Então, abaixo uma mão para desabotoar alguns botões da minha camisa e me viro, levantando uma parte do tecido a fim de mostrar a maior cicatriz que tenho gravada nas costas. Fruto de um desentendimento com um antigo fornecedor de drogas. Ele me dava a mercadoria e eu não pagava como prometia.

— Puta merda — ele xinga em voz alta, abismado, enquanto está levantando o moletom para mostrar os círculos de cicatrizes em seu abdômen. — Chance apagava cigarros em mim.

Eu já estou ficando sem argumentos para essa competição de quem tem a vida mais fodida. Mas então, tenho uma ideia. E a competição se torna ainda mais acirrada.

— Minha mãe sofre de esclerose por causa da violência doméstica que sofria.

— Meu irmão é caolho. Teve o olho arrancado com um garfo quando não tinha comida na casa e Chance disse que estava com fome.

Ai, credo, isso é nojento. E canibal.

— Eu via meu pai violentando minha mãe desde muito nova. Tudo na minha frente... e então eu fugia de casa e ficava fora por vários dias. — Balanço a cabeça, suspirando tristemente, lembrando-me de tempos passados.

— Sei como é o sentimento. Mas você sabe o que é ter a sua cadelinha favorita sendo fodida por Chance, bem na sua frente?

Ok, chega. Zoofilia já é demais para mim.

Respiro profundamente e solto a bomba:

— O pai da minha filha, Johanna, é o meu próprio pai.

Minha mentira tem o efeito que espero, pois o ladrão arregala os olhos e solta uma exclamação de incredulidade. Ok, nem tudo foi mentira, mas essa, definitivamente, é a maior mentira de todas que o faz pensar duas vezes antes de querer me roubar. É quase como uma conexão, um processo de identificação que o pega desprevenido quando menos espera, ou então um claro aviso de perigo. Já cresci nessas ruas, sei como a coisa de fraternidade funciona.

Pasmo, ele continua imóvel. Para minha sorte, o garoto parece ser tão ingênuo quanto sua aparência jovial, e para seu azar, eu sou macaca velha e tenho meus truques.

— E se você checar minha identidade — prossigo. —, verá que estou cometendo estelionato ao fingir ser outra pessoa. Uma corretora de imóveis chamada... — Finjo fazer força para me lembrar do nome. — Não consigo me lembrar...

Entendendo a minha dica, ele abre a bolsa e cava minha carteira com mãos agitadas para tirar meu documento com foto de lá. Ao puxá-lo com a arma ainda na mão, ele encara uma versão minha em uma foto pequena com meus dados da época de quando eu era solteira.

— Ellie Banks? — Seu tom sai esganiçado.

— Christina Mason. — Dou um sorriso sem jeito.

Seus olhos desacreditados vão da foto para mim e de novo para a foto. Eu estava completamente diferente da mulher exuberante que Tracy diz na qual me transformei. Mudei bastante após a reabilitação, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Sem mencionar que, no dia em que tirei a foto para esse documento, aconteceu tudo o que poderia ter acontecido de ruim comigo.

Sabe aquele dia em que tudo dá errado?

Primeiro, perdi o ônibus. Resolvi que ir a pé seria mais rápido do que esperar pela próxima condução. Inesperadamente, começou a chover. Eu nunca tinha visto tanta água na minha vida. Era como se estivesse pisando em uma piscina de água suja enquanto corria para o toldo mais próximo a fim de escapar da enxurrada. Mas então, como se não bastasse, um carro passou em alta velocidade por uma poça de água e me molhou da cabeça aos pés com sujeira. A melhor blusa que vesti para tirar a foto já era. Tive que ficar com a cabeça parada por alguns instantes, debaixo do secador de ar quente para as mãos de um banheiro, até os fios estarem quase secos. A ideia funcionou, mas, em compensação, os cabelos ficaram desgrenhados como se fossem um ninho de ratos.

Como resultado, minha foto ficou pior do que de presidiário.

Além disso, faz muito tempo que deixei de ser a Sra. Ellie Banks Carver. Já regularizei para voltar ao nome de solteira no restante dos documentos após a morte de Jerome, e de vez em quando, ao confundir e levar os documentos errados comigo, termino apresentando alguns da época de solteira em que eu estava ridícula. Como esse que o jovem homem ardiloso está segurando no momento.

— Cacete. — Ele ainda está surpreso. — O que você fez com a mulher?

— Oh, ela está amordaçada no porta-malas do carro.

Por um momento, fico nervosa ao pensar que ele pode querer que eu prove, mas então me lembro de que já mostrei pelo menos uma evidência a ele de que não estou mentindo: minha cicatriz.

Com uma olhadela de terror para o porta-malas do meu carro que está com o traseiro perigosamente atravessado para a rua, ele mergulha a carteira na bolsa, tirando-a de seu ombro, e me devolve com tanta pressa que quase a deixa cair no chão. Ele faz o mesmo ao devolver a pasta para o Sr. Myers.

— Não quero encrenca com você — disse o rapaz, baixinho.

Sorrio, mantendo-me calma e impassível, do jeito que aprendi ter um efeito letal, enquanto penso que ele deve estar me achando alguma espécie de psicopata que praticou incesto com o pai. Bem, ele certamente aprendeu a lição de que não se pode deixar enganar por um rostinho bonito.

— Obrigada. Isso foi muito gentil de sua parte. Pegue. Ao menos leve o relógio. — Libero o fecho, livrando meu pulso do tijolo reluzente. — É banhado a ouro. Original. Vai conseguir um bom dinheiro com ele.

Ele encara o relógio que estou oferecendo, um pouco desconfiado, mas aceita. É a desculpa perfeita para me livrar do objeto que nunca gostei, apesar de saber que é caro. Mas não uso relógios. Nunca gostei de usar. E deixei isso tão claro que, Macy, uma corretora de imóveis também, fez questão de me presentear dizendo que é a minha cara. E então, depois o scarpin de onça. Eu sou adepta da causa animal e ela me dá um scarpin de onça. Quero dizer, preciso ser mais estúpida para não notar que é uma clara provocação?

E pensar que todo esse alarde vem da época que beijei o cara que ela estava de olho há algum tempo... Na verdade, ele me beijou. E foi nojento, honestamente. Ele estava bêbado na ocasião, e por algum motivo, achou que eu estava a fim de me afogar em sua saliva. Parecia um cachorro salivando sem parar. E o pior de tudo: dentro da minha boca. O mortal beijo do afogamento.

— Espere — peço antes que ele vá, já descalçando os sapatos. — Leve os sapatos também. — Soa quase como um pedido desesperado. Na verdade, é um pedido desesperado. — Sua mãe pode gostar, ou então sua namorada. Mas também pode vendê-los e conseguir mais dinheiro.

— Obrigado, madame. Você é a primeira vítima que é tão gentil comigo.

Hã, corrigindo: sou a primeira vítima que você não precisa roubar para ganhar alguma coisa.

Depois conto alguns dólares da minha carteira e repasso para ele. Não consigo evitar. Se ele realmente não mentiu para mim, espero que o dinheiro ajude a mãe doente.

Então, o jovem parte carregando um par de scarpin com estampa de onça nos braços, um relógio escandaloso em um dos bolsos da calça e duzentos dólares no outro.

Faço um muxoxo quando confiro quanto sobrou na carteira. Não muito.

É por isso que você só vive quebrada, Ellie.

Guardo a carteira na bolsa, respirando fundo quando passo a alça sobre meu ombro. Assumo minha postura confiante, porto meu sorriso profissional e me viro toda animada, falando como se fosse uma treinadora tentando animar o time:

— Quem está pronto para procurar por uma nova casa...?

E não encontro ninguém.

Eric Myers simplesmente evaporou no ar.

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