Capítulo 26

Está quase anoitecendo quando chego em casa e vou até a caixa de correios para pegar a correspondência. Panfletos, filipetas e anúncios de vendas. Em um desses eu encontro o rosto de Macy sorrindo amplamente um sorriso tão falso quanto seu cabelo loiro, tudo impresso no papel colorido para fazer sua propaganda para a imagem de corretora. Giro os olhos. Amasso até virar uma pequena bola de papel e atiro no cesto de lixo na frente de casa.

— Ellie!

Olho por cima do ombro e encontro o Sr. Peabody acenando de longe para mim, em frente à sua casa. Minha boca se alarga em um sorriso iluminado enquanto estou guardando as correspondências no bolso de trás da calça.

— Boa noite, Sr. Peabody! — grito para que ele possa me ouvir. Reparo nas muitas sacolas que está carregando nos braços. — Grande dia, não?

Dá um aceno de cabeça, concordando.

— Grande jantar hoje. Com alguns velhos amigos.

Por isso está de tão bom humor. Socializar com amigos realmente faz uma grande diferença em nosso temperamento tão desgastado pelo tédio e cansaço do dia a dia. Especialmente para alguém que vive na solidão. Dou alguns passos e atravesso a rua para ajudá-lo com as compras.

— Precisa de ajuda? — ofereço, antes de tocar em qualquer coisa dele.

O Sr. Peabody sorri para mim e me entrega alguns pacotes que estavam no interior de seu carro. Com os braços ocupados, sigo deslumbrada para dentro de sua majestosa casa quando ele gesticula com a cabeça para que eu entre. Wilbur Peabody conversando comigo, dando-me permissão para entrar em sua casa... Que coisa!

Armazenamos todas as compras em sua despensa. Depois de algum tempo, estou seguindo-o novamente para fora de sua casa, prestes a me despedir, quando ele se senta na varanda, acomodando-se em uma acolchoada cadeira vaivém, e me chama para que eu me sente no balanço à sua frente.

Sorrio para ele, sem saber como agir direito ao convite tão inesperado. A temperatura da noite pode estar caindo gradualmente, mas meu coração se mantém aquecido pelo seu gesto. Então, olho mais de perto. A pele enrugada e mole, os cabelos brancos e um caloroso sorriso... Não posso acreditar que seja para mim.

Encolho os ombros ao perguntar:

— Por que está falando comigo?

— Como não falar com a garota mais sorridente dessa rua?

Dou uma risadinha. Já faz tempo que deixei de ser uma garota. Ele dá uma piscadela para mim, seguido por um aceno de cabeça, deixando claro que tinha a intenção de me fazer sorrir.

— Não sou sempre sorridente — murmuro.

— Bem, você tem me cumprimentado desde que me mudei para cá. E isso geralmente vinha com um largo sorriso e dentes demais para eu contar.

Caio na gargalhada.

— Vamos, não seja tímida. Faça a pergunta.

— Pergunta? — repito, refeita de meus risos.

Ele revira os pequenos olhos teatralmente.

— Sei que tem perguntas para me fazer, Ellie. Posso estar velho, ranzinza, carrancudo e um pouco surdo, mas consigo notar quando alguém quer chegar até mim com uma razão muito... curiosa — termina, com o olhar caloroso.

Baixo os olhos, sentindo-me subitamente um pouco tímida. Sou tão fácil assim de ser lida? Ele não parece nem um pouco surpreso, em nenhum momento. Provavelmente porque seus anos na Terra lhe proporcionaram uma invejável experiência que alguém ainda tão jovem como eu não sabe o que é tê-la. E talvez tenha sido exatamente isso o que me levou a chegar ao Sr. Peabody e sua sabedoria.

Ele está sendo tão aberto comigo que eu não poderia ser diferente de como sou com as pessoas. Sinto um calafrio percorrer meu corpo antes mesmo de dar início ao assunto:

— O senhor acredita em fantasmas?

O Sr. Peabody cruza as mãos sobre a barriga.

— Não. Você acredita?

— Não — respondo, já mais controlada. — Se existem, eu nunca os vi. — Então por que via Jerome em meus sonhos?

Sinto que o Sr. Peabody está me observando com atenção.

— Sabe no que eu acredito? — Ergo o olhar para ele. — Eu acredito em imaginação. A mente das pessoas sabe ser muito fantasiosa. Mas eu também acredito no sentimento mais velho na história da humanidade: a culpa. O velho problema de consciência pesada.

Mexo-me sobre o balanço, sobressaltada, com o coração disparado. Tenho que concordar com ele que é terrível que nossa mente seja nossa própria inimiga, não importa o quanto tentemos lutar contra ela. Se as pessoas acham que ter um inimigo já é suficientemente ruim, imagine o que deve ser ter um dentro de nós mesmos?

Mas culpa...? Sim, eu ainda sinto. Não é algo que se pode fazer sumir. Porém, sei que já melhorei muito neste ponto. A questão é saber lidar com ela. Consegui subir tantos degraus na minha vida pessoal ao conseguir me abrir para um relacionamento com um homem que isso me basta, por ora.

Assinto com a cabeça e continuo escutando-o atentamente.

— Sabe, a primeira vez em que pousei os olhos na minha Margaret foi um dos momentos mais importantes que decidiram minha vida. A sua morte foi outro igualmente importante. No entanto, jamais duvidei, nem mesmo por um segundo, que ela era a mulher da minha vida.

Olho para ele com tristeza, sentindo meu coração se apertar. Sei que a perda da pessoa que amamos pode ser um assunto delicado para qualquer um, ainda mais para o Sr. Peabody, que a perdeu há apenas alguns meses.

— Depois de sua morte, todo o resto foi muito difícil. A questão do isolamento, o mau humor, as queixas. Eu quis tanto que ela ainda estivesse viva. Tanto... — Faz uma pausa, emocionado. — Se o que acontece com você é o que aconteceu comigo, Ellie, então posso afirmar com certeza: não está deixando as coisas mortas onde elas deveriam estar.

Eu o encaro em silêncio.

— Ou talvez sejam as coisas mortas que não estão me deixando em paz, Sr. Peabody — contra argumento com a voz embargada.

Ele me avalia por um instante e sorri calmamente.

— Quem anda assombrando você, Ellie?

— Jerome, meu falecido marido — respondo sem rodeios. — Seis anos atrás, ele morreu em um acidente de carro. E agora que seu irmão gêmeo retornou, eu simplesmente não consigo tirá-lo de meus pensamentos a cada comportamento familiar que encontro em Jameson.

— Jameson é o gêmeo que está deixando você de cabelo em pé, suponho.

Rio da descrição engraçada.

— Ele é, sim. É um bom homem, quer me fazer feliz e me amar. Às vezes é uma pessoa difícil, mas não vejo como possa ser perniciosa nossa relação. No que diz respeito a Jerome, ele não conseguia viver. Porque eu não deixava. Fui uma pessoa terrível para ele, Sr. Peabody — sussurro tremulamente, as lágrimas oscilando nas bordas de meus olhos. — Eu sei que não tenho culpa pela morte dele. Mas o que dizer da morte de dentro? Nisso eu tenho culpa, certo?

— Não pode carregar todo este fardo sozinha, Ellie — ele diz com firmeza. — A vida de alguém se resume basicamente à relação que a pessoa tem com o mundo, com os outros, e não apenas com uma única pessoa. Não conheço sua história de vida nem a de Jerome, mas também não tenho uma mente tão pequena para achar que uma garota merece sofrer o sofrimento do mundo todo, pelo resto da vida. — De repente, sorri. — A questão, minha filha, é que no fim tudo é perdoado. Nós cometemos erros, nós nos arrependemos, nós tentamos viver uma vida digna e conviver com nossos pecados. Não é isso o que é ser humano, afinal? Não conheço outra definição diferente. E tampouco conheço outra forma de viver.

Sorrio tristemente.

— Estou começando a achar que viemos a esse mundo para sofrer — digo baixinho e fungo algumas vezes.

Sua risada é serena e apaziguadora.

— Grande novidade — ele replica com um sorriso. — Você é especial, Ellie. Soube disso na primeira vez em que a vi. Agora sei por quê. É preciso muita coragem para admitir um erro, se redimir e querer transformar toda a experiência ruim em algo bom.

Baixo a cabeça, lembrando-me dos velhos dias.

— Não tenho certeza se fui corajosa. Passei a infância e a adolescência apavorada, o tempo todo. No fim das contas, descobri que era a minha própria inimiga. Mesmo sabendo disso, eu quis amar o homem que mais me fez bem e terminei fazendo mal a ele.

— O medo não a impediu de crescer madura e decidida dessa forma. Não impediu que acenasse e sorrisse para um velho ranzinza sempre que passava por ele. Não impediu que sentasse na varanda da casa desse mesmo velho para conversar com ele, dedicar-lhe algum tempo do seu precioso momento de folga em um mundo em que prestar atenção e ouvir alguém está tão fora de moda. Mesmo agora, acha que não sei o quanto é difícil falar de Jerome? E de como é mais difícil ainda querer se libertar dele? — Ele gesticula em direção a mim. — Acha que não sei o esforço que precisou fazer para criar uma filha sozinha? Eu vi a forma como você olha para ela, como se fosse a coisa mais importante que já lhe aconteceu. Eu vi o modo como olha para sua mãe também. É evidente que você ama as duas e seria capaz de mover mundos e fundos por essas duas pessoas tão queridas em sua vida.

Levanto o olhar, minha garganta se fechando e os músculos do meu rosto apertados pela tristeza. Oh, eu sem dúvida faria tudo de novo por mamãe e Jackie. Não tenho arrependimentos quanto a isso.

— Mas sabe, esse assunto já está começando a me cansar. — Lança-me um sorriso conspiratório. — O que você ainda quer deste velho homem? — Ergue os braços teatralmente. — Jameson é o gêmeo de Jerome e aparentemente gosta muito de você. Finalmente alguém que esteja disposto a correr o risco por um amor com uma mulher tão maravilhosa e entusiástica quanto você. Depois de seis anos de sofrimento, cá entre nós: acho que você merece isso. Escute. — Ele se movimenta sobre a cadeira para inclinar o corpo na minha direção. — Deixe-me perguntar, minha filha, qual é a sua dúvida ainda?

Abro a boca, pensativa, e termino sorrindo ao encontrar seus sábios olhos. Então me levanto, decidida, e o Sr. Peabody também se levanta para se despedir de mim, ao que eu acabo abraçando-o tão apertado quanto posso.

— Obrigada — sussurro, agradecida pelas palavras reflexivas e carinhosas de alguém que sei que agora posso chamar de amigo.

— Fique bem, Ellie.

Desço os degraus da varanda, sorrindo.

A♥

Converso com mamãe sobre a ideia de eu e Jackie dormirmos fora de casa, porque não gosto de pensar que mamãe passará a noite sozinha, sem ninguém para lhe fazer companhia ou ajudá-la com o que precisar. Ela me acalma e diz que vai ficar tudo bem e que não é nenhuma criança para não saber se virar sozinha. Eu reviro os olhos e continuo insistindo, perguntando a toda hora que estou me arrumando se ela realmente não quer que fiquemos em casa com ela. Diz a mim que é para sairmos e nos divertirmos, em seguida, liga a televisão e se esparrama pelo sofá em uma posição desleixada.

Rio. Acho que Mary Ann está adorando a ideia de ter a casa só para si.

— Estamos indo! — falo, antes de passar pela porta, segurando a mão de Jackie.

— Divirtam-se! — Ouço sua voz ansiosa vindo da cozinha.

— Tchau, vovó!

— Tchau, querida!

— Nada de festas, mamãe — brinco.

— Vou deixar a casa tão bagunçada que você vai desmaiar assim que entrar. — Sua voz chega até mim, em resposta.

Quando entro no carro, ainda estou me refazendo das gargalhadas, e Jackie está tão animada com a ideia de dormir na casa do tio que percorremos o caminho todo cantando uma de suas músicas favoritas. Dirijo com tranquilidade e cuidado até a casa de Jameson, pensando que hoje será uma noite decisiva. Ainda não contei nada à Jackie sobre meu romance com Jameson, e algo me diz que está mais do que na hora.

— Querida — chamo com suavidade, enquanto estou dirigindo na estrada.

— Sim, mamãe?

— Lembra quando conversamos sobre a possibilidade de outro papai?

Com uma olhada no retrovisor, vejo Jackie balançar a cabeça algumas vezes. Tomo uma profunda respiração antes de falar:

— Bem, a mamãe e o tio Jameson estão juntos.

Não há nada além de silêncio. Verifico o retrovisor novamente para olhar sua reação. Ela parece incerta, ou talvez confusa nos primeiros segundos, com as duas sobrancelhas levemente unidas. Mas depois abre um sorriso capaz de iluminar Atlanta toda.

— Mamãe! — Ela está boquiaberta. — Mamãe, quer dizer que... o tio Jameson... Mas... Então quer dizer que ele não é mais meu tio?

Dou uma risada de sua confusão genuína. Esse é um assunto muito, muito complicado. Especialmente para uma garotinha de 5 anos entender todas as circunstâncias envolvidas.

— Claro que ele ainda é — explico, com calma. — O tio Jameson sempre será o seu tio Jameson, porque ele não deixará de ser irmão do seu papai. Mas a mamãe não esperava que ela e ele fossem se dar tão bem a ponto de se juntarem como um casal.

Jackie pisca algumas vezes, digerindo minhas palavras.

— Então se estão juntos... posso chamá-lo de papai agora?

Dou-lhe um pequeno sorriso através do retrovisor.

— Querida, ainda é cedo demais para isso. O tio Jameson e eu ainda estamos nos... entendendo. Você gosta dele?

— Ah, mamãe. — Ela está arrumando os cabelos bagunçados pelo vento. — Eu tenho um tio e agora há a possibilidade de um papai... Dois em um! Parece até um daqueles comerciais de TV. — Rio de sua curiosa comparação. — Gosto muito do tio Jameson. Mas será que ele gosta de mim?

— Claro que gosta! — asseguro com o tom firme, mas percebo sua insegurança.

Algo me lembra de que Jackie e Jameson não conviveram tanto, o que pode explicar em parte minha menininha estar tão nervosa para querer ser aceita pelo tio. Não digo mais nada no meio do caminho. Com um sorriso ansioso, penso que é melhor deixar que ela descubra por si mesma o grande carinho que Jameson nutre por ela.

Uma garoa leve começa a cair quando chego à casa do lago. Encontro Jameson nos esperando na parte da frente. Ele desce a pequena escada com agilidade, vem até nós e agarra a mochila de Jackie que eu carregava em uma mão. Nossas roupas já estão começando a molhar ao subirmos com pressa para dentro de casa, e eu estou segurando a mão de Jackie para que ela não corra o risco de escorregar e cair na terra molhada.

Uma vez na sala, Jackie está rindo, porque achou engraçada toda a cena de fuga da chuva, e eu começo a rir de sua alegria infantil. Quando menos percebo, Jameson também está sorrindo e meus olhos automaticamente caem em seu sorriso bonito.

Eu solto a mão de Jackie e Jameson solta sua outra mãozinha.

Não havia reparado que ele estava segurando-a também.

Antes de falar comigo, ele se agacha até ficar cara a cara com Jackie.

— Oi, linda. — Gentilmente tira os cabelos grudados do rosto dela. — Fico feliz que tenha aceitado meu convite para um jantar. Não sou um bom cozinheiro, mas sua mãe disse que vai me ajudar.

Ela está vermelha, encantadoramente vermelha, e rindo aquele tipo de risada que só uma criança envergonhada na frente de um adulto sabe dar.

— Não sou muito exigente — Jackie graceja e dá uma piscadela para ele.

Jameson ri com ela, os músculos ao redor de seus olhos muito relaxados, e nesse momento os dois estão parecendo dois bobos. Meus dois lindos e doces bobinhos. Essa cena aquece meu coração e me faz ficar derretida com o entrosamento deles em tão pouco tempo.

Ele ainda está agachado quando pergunta:

— Posso abraçar você?

Jackie me olha por um momento, mas não parece estar procurando por uma aprovação de minha parte. Parece apenas estar se acostumando à ideia. Baixa timidamente os olhos e balança a cabeça para ele.

Ao invés do abraço, Jameson primeiro acaricia seu rosto suavemente com seus dedos, os olhos presos no rosto dela como se estivesse estudando e guardando com excelência cada detalhe para si. Como se o que estivesse vendo fosse a coisa mais bonita que já viu no mundo. Como se estivesse frente a frente com a pessoa mais importante para ele, seus dedos agora acarinhando os cabelos escuros herdados por Jackie, cabelos da família Carver. Talvez ele esteja vendo um pequeno milagre, ou o meu pote de ouro que encontrei no fim do arco-íris em um momento que mais precisei de forças e esperança.

Então, ele a abraça. Noto com um nó na garganta que não se trata apenas de um abraço. Isso é sobre união. Família. O sentimento de carinho. Amor... Eu vejo tantas coisas em seus gentis olhos escuros, coisas felizes e coisas tristes. Tudo o que tem feito parte de sua jornada. Algo que o deixa contente e algo que o destrói. Jameson mal sabia que tinha uma sobrinha e passou quase seis anos longe deste pequeno membro da família, um pequeno e bonito pedaço que seu irmão deixou para todos nós quando morreu.

Respeito seu sofrimento em silêncio. Não digo nada que não precisa ser dito em um momento significativo como este. Continuo lendo a expressão em seu rosto de como se tudo aquilo fosse demais para ele, seus olhos atormentados e tristes. Tenho a impressão de que estão ficando marejados com sua dor incalculável, e depois não consigo ver mais nada quando ele os fecha.

Afetada pelas minhas próprias emoções diante dos dois se abraçando amavelmente, eu começo a chorar em lágrimas silenciosas que estão descendo por meu rosto. Meu Deus, o que está acontecendo? Não sou tão sensível assim, mas isso tudo, de repente, está acabando comigo. Está destruindo qualquer nervo de aço que eu achava que tinha. Jameson está sendo tão bondoso e carinhoso, o tipo de pessoa que qualquer criança gostaria de ter para pai. E é isso o que me faz recordar de Jerome... e como nunca chegou a conhecer a filha que tivemos.

Uma vez Jameson me contou que os dois tinham uma ligação tão profunda que ele sentia o que seu irmão gêmeo escrevia nas cartas. Será possível que, mesmo após sua morte, Jerome está sentindo agora o que seu irmão sente ao abraçar Jackie? Já ouvi dizer que, mesmo quando morremos, permanecemos na Terra quando temos assuntos inacabados. Apenas espero que isso, de algum modo, acalme seu espírito e o deixe seguir em paz para onde quer que tenha que ir.

Eu não sei, a energia que sinto é tão profunda, boa e linda que não quero nunca que esse momento belamente puro acabe.

Para meu desapontamento, ele acaba, e trato de secar minhas lágrimas antes que os dois descubram com preocupação que eu estava chorando como uma tola sentimental.

Jackie está sorrindo com doçura para Jameson quando é liberada. Ele se levanta sorrindo para ela e, enfim, vem até mim para me dar o mesmo tipo de abraço traiçoeiro que traz um nó na minha garganta e quase me faz chorar de novo.

— Oi — ele sussurra, já recomposto de suas emoções.

Sorrio.

— Oi.

Nossas bocas estalam uma na outra, em um beijo rápido e saudoso. Ele encosta a testa na minha e me encara profundamente. Seu olhar é indecifrável, desregula minhas batidas cardíacas de modo que meu coração está começando a bater mais rápido enquanto continuamos a nos fitar. Não sei se ainda estou emocionada ou se é a proximidade dele que está fazendo meu sangue correr mais rápido nas veias. É tudo tão intenso, bastante intenso, que percebo que seus olhos estão mudando e sendo preenchidos por um sentimento cujo poder é tão forte que seria capaz de devastar uma nação inteira.

Então ele se afasta e preciso de muitos minutos para me recuperar do que vi.

O que foi aquilo?

— Vamos ver o quarto de Jackie — sugere ele ao pegar minha mão.

Sobressalto-me um pouco e baixo os olhos para nossas mãos unidas. Essa... força... benevolente... me enchendo até que acho que não posso mais aguentar. Eu conheço isso. Sei o que significa essa pequena e tão significativa reação do meu corpo quando sou tocada por alguém e esse alguém me provoca isso. Me provoca vida. Uma sensação cálida, elétrica e vívida capaz de transformar tudo o que é feio em belo.

Sigo Jameson mergulhada em silêncio. Eu estou... Paro. Mas... como? Franzo as sobrancelhas, enquanto eu e Jackie estamos sendo guiadas para o andar de cima através dos lances de escada. Eu realmente estou...? Oh, preciso confirmar isso antes de qualquer coisa.

E só há um jeito de fazer isso: sendo inteiramente sincera com ele.

Jameson mostra o quarto de Jackie, que fica perto do dele. Quando pergunto onde vou dormir, apenas me dá um sorriso e cochicha a resposta em meu ouvido que me deixa levemente corada: No meu quarto, bobinha.

Preparamos algo rápido, quente e gostoso enquanto estamos conversando os três na cozinha. Nada fora do usual, aparentemente estamos agindo como pessoas normais, fazendo coisas normais. Nada tão profundo, mas é muito bom. Jackie e eu não tínhamos tido muita coisa normal.

Jantamos sentados sobre uma manta esticada no chão da sala, diante da lareira ligada para nos aquecer no frio. Ainda está chovendo, a chuva engrossou um pouco e está criando pequenos pontos de lama em frente à casa. Conversamos durante todo o jantar. Jameson parece estar empenhado em colocar em dia a conversa de mais de cinco anos, pois não para de bombardear Jackie com perguntas sobre coisas que ela gosta. Filmes, música, comida, desejos pessoais. Parece interessado em tudo o que ela diz.

De tempos em tempos, sorri e acena com a cabeça, encorajando-a a continuar. Percebo como isso faz com que ela se sinta interessante e confortável. Ele mal toca em sua comida, o que me leva a ficar lembrando-o o tempo todo para terminar a refeição antes que esfrie. É um pouco engraçado que eu esteja fazendo isso. Como se fôssemos... uma família. Uma família de verdade que se importa um com o outro.

Deixo os dois tagarelas à vontade e pego seus pratos para colocá-los no lava-louças. Uma vez na cozinha, também aproveito para lavar as panelas utilizadas. Um eco alto de risos me faz olhar por cima do ombro para ver que os dois estão se levantando do chão da sala.

— Quer ajuda? — Jameson aparece na cozinha com meu anjinho ao seu lado.

Sorrio para os dois.

— Estou quase terminando aqui e depois subirei para colocar Jackie para dormir.

— Posso fazer isso — diz ele rapidamente, de modo muito ansioso. Depois, limpa a garganta. — Quero dizer, você está ocupada lavando a louça... e eu adoraria colocá-la para dormir. Acho a parentalidade algo muito curioso. Seria a minha primeira vez colocando uma criança para dormir.

— E você parece estar bastante empolgado para fazer isso — observo com humor. Quem diria que Jameson Carver tem um certo gosto por cuidar de crianças?

Ele finge se envergonhar quando pisca timidamente para longe de mim.

— Pareço? Oh, droga. Fui revelado! — Olha de esguelha para Jackie, que está rindo dele. — Você não ouviu isso. Do que pensa que está rindo?

Jackie ainda continua se divertindo às custas dele quando, de repente, Jameson finge que vai atacá-la e então eles começam a correr pela casa em uma brincadeira de perseguição, fazendo barulhos e ruídos infantis. Ouço rugidos vindos dele e, ao olhar por cima do ombro de novo, assisto Jameson se dirigir para a escada com Jackie erguida em seus braços, emitindo gritinhos animados enquanto estão subindo para o quarto.

Já terminei com a louça quando Jameson entra na cozinha com os cabelos pretos furiosamente bagunçados como se fossem um tsunami. Solto uma gargalhada disso.

— Meu Deus, o que vocês fizeram?

— Ela estava resistindo demais. — Dá de ombros. — Tive que recorrer a métodos ortodoxos passados de geração a geração.

Ergo uma sobrancelha, ainda rindo da comicidade de ver o ajeitado e ordenado Jameson nesse estado de completa desordem.

— Estou vendo. — Ainda estou às gargalhadas. — E você estava tão tagarela hoje à noite que duvido que estivesse respirando naquele momento. — Consigo falar em meio às risadas.

— Está rindo de mim, Ellie?

Ele de repente está avançando na minha direção e mordiscando meu pescoço e depois minha orelha enquanto me faz cócegas. Rio e dou vários gritinhos, contorcendo-me em seus braços.

— Estou vendo que preciso ensinar algumas lições a você, sua atrevida — rosna enquanto está passando as mãos pelo meu corpo. Minha barriga dói e mal consigo respirar de tanto que rio.

Ele também está rindo, obviamente se divertindo.

— Está bem, está bem! Me desculpe! — Continuo me retorcendo até finalmente me ver livre de suas garras. — Nossa, preciso respirar. Você me deixa sem ar.

Minhas palavras de alguma forma produziram uma mudança em sua expressão. Há um brilho de reconhecimento em seu olhar. Imediatamente recordo a comparação que fez sobre mim e o ar rarefeito no topo das montanhas...

Suas sobrancelhas se juntam ao me olharem.

— Você também me deixa sem ar, Ás de Copas.

E então ele está todo silencioso, com os olhos baixos como se estivesse pensando muito sobre alguma coisa. Sua testa está vincada. Ele levanta a cabeça lentamente, para me observar calado, e eu sou incapaz de despregar meus olhos dos dele. Aquele seu gesto me parece tão intensamente familiar. Era assim que... Não! Desvio o olhar. Não, não, não. Não faça isso! De novo, não. Por favor. Achei que já tivesse superado essa questão. Então por que...? Por que continuo fazendo isso? Querendo que os dois sejam a mesma pessoa? Os gêmeos foram criados na mesma casa, pelas mesmas pessoas. É normal se assemelharem em alguns aspectos e se diferenciarem em outros. Quando minha mente idiota vai entender isso?

Fecho os olhos. Ah, meu Deus, vou enlouquecer desse jeito.

Preciso acabar com isso. E preciso fazer isso agora.

— Não tenho sido honesta com você, mas você me confunde. É isso... você me confunde. O tipo de confusão que atrai o que há de mais misterioso no mundo para me assombrar.

Encaro-o por um longo tempo, então suspiro.

— Às vezes eu olho para você e vejo Jerome. — Observo sua mandíbula dura, o maxilar travado enquanto me encara inexpressivamente. — Às vezes, eu vejo Jameson. — Deixo o ar escapar pelos meus lábios e passo as mãos pelos cabelos. — E às vezes eu só quero desaparecer porque não sei mais por quanto tempo posso aguentar sem perder o juízo. E isso não pode acontecer. Não pode. — Balanço a cabeça mais para mim do que para ele. — Não pode, porque eu tenho uma filha e ela não pode ter uma mãe louca, senão, como cuidarei dela? — Oh, merda, o que estou dizendo? Ele não deveria saber dessas coisas. Não quero que se sinta culpado sobre meus colapsos. — Estive pensando... você conhece algum psicólogo? Psiquiatra? Algum profissional que possa me ajudar? Porque não sei mais para quem contar essas coisas... Não sei.

Não percebi como estava tão abalada a ponto de Jameson ter que me ajudar a sentar no sofá antes que eu desfalecesse. Gentilmente tira os cabelos do meu rosto, beija minha testa e fala:

— Conte para mim. Fale o que está pensando. Não esconda nada.

Me encolho como uma bola no sofá, puxo os joelhos contra o peito e me deixo ser levada pelos meus pensamentos inquietos, mergulhada em um silêncio profundo enquanto olho para o nada à minha frente.

— Seja sincera comigo, Ellie. E consigo mesma.

Eu o olho por um instante, pedindo por forças para o que vou dizer.

— Eu só queria que... — Começo e sinto meu peito se apertar tanto que é como se estivesse sufocando. — Por favor, me diga... Preciso ouvir de você. Diga que não é Jerome. Me dê alguma paz de espírito, por favor.

Seu corpo se enrijece ao meu lado enquanto estou assistindo sua expressão se transformar em uma triste e desapontada comigo. Jameson nada diz, e depois de algum tempo nesse silêncio torturante estou chorando e segurando-o pela gola da camisa com desespero.

Calado, ele apenas me assiste, seu rosto completamente desfigurado pelo sofrimento que está captando em mim.

— Por favor, estou implorando. É tudo o que preciso ouvir de você — peço aos soluços.

— Meu nome é Jameson Carver — ele diz, por fim, em um tom baixo e angustiante por ver a mulher de que gosta mais uma vez trazendo o assunto do irmão morto à tona. — Sou apenas o irmão dele — termina, lenta e serenamente, com um toque estranho na voz, que quase identifico como purgação pessoal.

É quase uma ironia que eu esteja chorando e sorrindo ao mesmo tempo agora. Mas eu estou. Isso era tudo o que eu precisava ouvir. Não imaginei que fosse causar tamanha sensação de libertação de antigos fantasmas. É como dizem, às vezes poucas palavras nos bastam para seguir adiante.

— Prometo que isso acaba aqui e agora — declaro firmemente, olhando no fundo de seus olhos angustiados. — Prometo que não serei mais essa cretina que o vê apenas como uma peça de Jerome perdida pelo mundo, vagando sem rumo com o rosto emprestado dele. Você não é isso, e tampouco você é ele. Você é... você. Tem um nome, uma própria identidade, vive à sua própria maneira. — Fungo algumas vezes e sorrio quando ele silenciosamente seca minhas lágrimas com os polegares. — Você é Jameson Carver, o irmão de um cara que já conheci. Parente de um homem que passou pela minha vida, mas que não mais faz parte dela. É isso o que você é. Uma pessoa. É único e insubstituível. E eu prometo... Não, eu juro que darei o tipo de tratamento que você merece. Darei essa chance a nós dois, porque eu também não tenho nervos de aço e não aguento negar mais nada.

Então eu chego mais perto, incapaz de suportar seu cheiro maravilhoso sem querer me colar a ele, afundar o rosto no seu e começar a beijá-lo. Jameson não diz uma única palavra, mas sinto em seus gestos que ele ainda me quer tanto quanto eu o quero. Agora, mais do que nunca. Escuto-o se aproximar ainda mais e, no momento seguinte, estou em seu colo, aconchegada em seus braços calorosos, o rosto dele enfiado em meus cabelos e beijando meu pescoço.

Ele me abraça com força e me embala, sussurrando palavras reconfortantes contra meus cabelos. Como é possível que este homem queira me consolar? Depois de tudo o que disse... ele deveria estar furioso. Não imaginava que seus sentimentos por mim fossem tão fortes a ponto de superarem qualquer crise em nosso relacionamento. De irem além de qualquer coisa e ver que ainda há esperança para nós dois. Talvez seja exatamente sobre isso o amor: esperança. Chances. E jamais desistir. E por mais inacreditável que possa parecer, para uma mulher que viveu uma vida de cabeça para baixo, é a primeira vez que estou aprendendo sobre o que é ter esse tipo de relação com um parceiro.

Eu me agarro a ele e logo minhas mãos estão percorrendo suas faces, traçando as linhas de suas sobrancelhas, do nariz esculpido, do maxilar forte, meus olhos seguindo o caminho de meus dedos, registrando cada detalhe deste rosto masculino perfeito, mas finalmente vendo também o homem que ele é... permitindo-me ver o homem que talvez eu soubesse que já estava apaixonada por ele esse tempo todo, o tipo de descoberta que minha bagunça mental não me deixava compreender.

Permaneço imóvel, olhando dentro de seus olhos profundos, enfim notando a grandeza de coisas bonitas que temos quando estamos juntos. É incomparável a qualquer outra coisa que já tive com alguém. É intenso, saudável e diferente de um modo muito bom. Eu me sinto alguém melhor ao lado dele, e me sinto bem com isso, com quem sou.

Sua mão engloba minha nuca quando lentamente me puxa para um beijo, nossas bocas se encontrando com fervorosa paixão por um longo tempo, até que saímos do sofá de mãos dadas e ele me guia através da casa para um lugar no andar de cima que identifico ser alguma espécie de espaço de lazer.

Há pufes e almofadas coloridas espalhadas pelo chão, sobre uma grande e grossa manta que cobre um enorme colchão circular. Alguns quadros de arte moderna enfeitam as paredes pintadas em um tom claro de verde e uma pequena estante com livros ocupa a outra extremidade do cômodo. Parece até um confortável canto para leitura e eu adorei o resultado.

Ele me faz deitar com ele diante da lareira, onde fazemos amor de forma doce e lenta, nos redescobrindo em uma dança mais antiga do que o mundo. Os sussurros e suspiros de Jameson são a minha doce melodia que me acalma, e com ela eu pego no sono deitada ao seu lado. Antes de fechar os olhos, consigo sentir quando recebo um último beijo na boca, que termina se estendendo para minha covinha.

Com um suspiro, adormeço com a cabeça encostada em seu peito, sorrindo.

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