Capítulo 2

Seis anos depois

— Ok! Hora de acordar, dorminhoca!

Estou movendo furiosamente a escova de dentes dentro de minha boca, de um lado para outro. Direita, esquerda. Em cima, depois embaixo. Ao atravessar o quarto, afasto as cortinas da janela e os raios solares entram em toda a sua glória para iluminar o cômodo.

Ouço um resmungo baixinho de criança quando uma nuvem de cabelos pretos bagunçados aparece assim que puxo os lençóis para longe, revelando metade de um corpinho feminino vestido com o pijama amarelo-claro de macaquinhos.

— Ah, mamãe... — Ela se vira preguiçosamente para o outro lado, arrastando o travesseiro para cobrir seu rosto, gemendo como se estivesse sentindo dor. — Está cedo demais para levantar.

— Nada de "ah, mamãe". — Com um movimento rápido, tiro o travesseiro do rosto dela e deparo com dois pequenos olhos sonolentos semicerrados para mim. — Você tem escola. Precisa levantar — Ela faz o típico beicinho pidão para mim, mas não caio nessa. Não mais. — Jacqueline Rose Banks, trate já de sair dessa cama, mocinha.

Ela continua imóvel, com metade dos cabelos cobrindo parte de seu rosto e a outra metade caída ao redor da cabeça, sobre o colchão. Ainda estou escovando os dentes, lançando a ela o meu intimidante olhar de represália moderadamente suave — aquele que diz: "Você está fazendo algo que não estou gostando que faça" —, quando algo inesperado acontece: os olhinhos castanhos se transformam em duas pedras obsidianas cor de mogno do tamanho do mundo, derretidas e brilhantes. O beicinho se intensifica, com o lábio inferior tremendo em pequenas convulsões como se estivesse se segurando para não chorar. Ah, não. Isso é golpe baixo. A pequena mercenária deve saber que fica uma fofa quando faz essa cara.

— Oh, Jackie. — Paro de movimentar a escova de dentes, tocada por aquela imagem infantil de cortar o coração. — Você sabe que fica uma fofa desse jeito, não sabe? Deve saber que sim... — Estou me inclinando para acarinhar seu rosto, sorrindo com minha boca toda espumada de creme dental. E ela também está sorrindo, batendo encantadoramente seus cílios para mim ao perceber que conseguiu o que queria. — Mas vai ter que levantar, sua danadinha! — termino, desfazendo minha expressão tão rápido quanto ela desfaz a sua, e começo a fazer-lhe cócegas sem parar.

— Mamãe! Mamãe! Está bem, vou me levantar! — Ouço suas risadas e seus ofegos enquanto a faço se contorcer sobre o colchão, o que bagunça ainda mais os lençóis. — Vou me levantar, mamãe!

— Jura?

— Juro!

— Muito bem, então!

Eu me afasto, voltando a pegar na escova ainda dentro de minha boca, para terminar de escovar os dentes. Meu anjinho está sorrindo toda radiante para mim quando se ajoelha na cama para me abraçar. Baixo o rosto quando percebo que quer me dar um beijo na bochecha. Sorrio, com o coração derretido diante do carinho. Eu o teria retribuído, se não estivesse espumando pela boca como um cachorro raivoso. A maternidade é uma das coisas mais bonitas que descobri existir no mundo. Definitivamente não há ninguém que me convença do contrário.

Faço um sinal com a cabeça na direção da porta do banheiro que fica no corredor principal, ao que ela entende e desce da cama para segurar minha mão enquanto andamos até, enfim, estarmos dentro do banheiro.

Jackie é uma garotinha esperta desde que a conheço. Aos seus 5 anos, ela consegue tomar banho sozinha sem mais precisar da minha ajuda. Quando demonstrou interesse por sua própria higiene, orientei-a a respeito dos cuidados que deveria ter e fiz algumas sessões-testes com ela, pedindo que me mostrasse como lavaria determinada parte e assim por diante. Como nunca apresentou problemas com o sabonete, o creme ou a dosagem do xampu — nunca tentou utilizar todo um frasco de xampu em apenas um dia, se é que você me entende —, deixei que, pouco a pouco, assumisse o controle do ritmo do próprio banho.

Cuspo a espuma do creme dental e em seguida ligo a torneira, unindo as mãos em concha e me inclinando para enxaguar a boca, enquanto Jackie está cantando euforicamente, dentro do boxe com o chuveiro ligado, alguma música infantil que desconheço. Isso é raro. Quero dizer, quando você é mãe pelo quinto ano consecutivo e não sabe qual a moda da hora em termos de melodias infantis, isso é sinal de que: 1) ela mudou seus hábitos e agora pode estar assistindo algum novo desenho animado ou; 2) ela aprendeu a nova musiquinha na escola. E também pode haver a terceira razão: estive desatenta esses últimos dias, o suficiente para não reparar em suas novas preferências, o que é praticamente impossível em se tratando de Jackie.

Não sou essa mãe vigilante ao extremo a ponto de ser ditatorial. Gosto de dar alguma liberdade a ela, mas Jackie é meu tesouro, e eu reparo e converso com meu tesouro sempre que posso. Seus desconfortos, seus desejos, seus gostos e anseios. Não procuro realmente colocar barreiras emocionais entre nós, quando o que mais quero é que ela sempre se sinta bem comigo.

Ela abre o boxe minutos depois, dando um passo à frente, pedindo-me a toalha com a palma da mão aberta na minha direção. Começa a se secar com movimentos desengonçados, como se não estivesse dando conta de segurar uma toalha de adulto daquele tamanho. Isso me arranca um sorriso e me lembra de que tenho que ir à lavandeira lavar as toalhas sujas de Jackie. Não sobrou nem sequer uma e agora ela está usando uma provisória. Era para ter feito isso semana passada, mas eu estava tão atribulada com o trabalho que o compromisso doméstico acabou tendo que ser adiado para outro dia.

Como é de costume, ela pede que eu seque seus cabelos. Com um sorriso, retiro outra toalha do suporte e começo a esfregar em sua cabeça do jeito que sei que gosta. Ela está enrolada na toalha de adulto, dando sua risada boba de encantamento.

Acompanho-a até o quarto, desembaraço rapidamente seus cabelos e então volto para o banheiro, deixando-a para se vestir sozinha. Fecho a porta atrás de mim. Baixo as calças, depois a calcinha, e me sento sobre a privada com a mais prazerosa sensação de alívio quando sinto o conteúdo da bexiga sendo liberado.

Ouço algo vibrar e, logo mais, estou puxando o celular do bolso de trás das calças ainda arriadas. Pode ser algo importante.

Atire a primeira pedra quem nunca usou o telefone no banheiro. Sou mais humana do que pareço.

Com uma olhada breve na tela, percebo que é uma mensagem de Tracy, minha amiga da época do Ensino Médio e companheira desde então. Diferente de algumas pessoas que conheci, Tracy foi uma das poucas que ficou me apoiando até o fim, mesmo quando enveredei para o lado das drogas. Quando perdi Jerome, ela também estava comigo, consolando-me. E então, quando contei que estava grávida, ofereceu-me o suporte que estava ao seu alcance. Incentivou-me e me ajudou quando anunciei minha escolha de me internar em uma clínica de reabilitação.

Hoje em dia, posso dizer que estou recuperada. O projeto terapêutico em si promoveu uma mudança estupenda dos padrões destrutivos de minha antiga vida.

Não fumo e não cheiro. Nada mais dessas coisas pertencem à minha vida. Eu me tornei uma nova mulher, com hábitos mais saudáveis. Encontrei aquela garota que estava perdida na dependência química com a ajuda de profissionais que possibilitaram meu reequilíbrio emocional, promoveram o resgate de minha autoestima e me ajudaram a enfrentar a realidade com meus pés firmes no chão. Mas isso não significa que foi fácil. Oh, não. Quando se é uma drogada como fui, largar o vício é mais difícil do que você imagina.

Os primeiros dias na clínica de recuperação foram os piores da minha vida. Logo vem a abstinência, a vontade, a agressividade, os surtos. A insanidade. Você se torna um animal com a impressão de que todos estão te perseguindo e querendo fazer mal a você porque não querem fornecer o objeto de seu desejo e satisfação: a cocaína, um gole anestésico do álcool ou até mesmo a velha nicotina.

Já participei de grupos de Narcóticos e Alcóolicos Anônimos. E mesmo após a alta da clínica de recuperação, continuei frequentando-os com medo de poder ter uma recaída a qualquer momento. Uma coisa é ter pessoas monitorando você para que não ceda ao vício de novo, outra é você ser lançado no mundo e se ver totalmente sozinho e livre para fazer as escolhas que quiser. Foi somente com o tempo que passei a confiar mais na minha própria capacidade de tomada de decisões e fortalecer minha força de vontade para não tremer nem mesmo a pálpebra do olho quando encontro pessoas se afundando no álcool ou drogas como um meio de anestesiar suas próprias dores. Pessoas concentradas em apenas se entorpecer ainda mais.

Assim que recebi alta da clínica, voltei com Jackie já em meus braços para tirar minha mãe daquela casa que tanto já odiei por abrigar o homem mais nocivo que existiu em minha vida. Na época, eu estava participando de alguma espécie de projeto de reintegração que me proporcionou um emprego para que pudesse sustentar a mim e minha filha. Mesmo assim, a Sra. Prescott, diretora do centro em que fiquei internada, desenvolveu uma afeição tão grande por mim que ficou me monitorando após minha saída da clínica. Ela me dava alguns auxílios de vez em quando.

Ficamos em três quando finalmente consegui convencer minha mãe a largar o marido violento e morar comigo. Era um apartamento pequeno, humilde, simples e compacto. Um quarto, um banheiro, uma sala e três pessoas para morar nele. A primeira coisa que comprei com meu salário foi um colchão onde eu, mamãe e Jackie dormíamos e dividíamos todas as noites. Um dia, ao me visitar no trabalho, convidei a Sra. Prescott para dar uma olhada no apartamento alugado. A mulher quase teve um infarto quando viu onde estávamos dormindo e a primeira coisa que fez foi providenciar um berço para Jackie e uma cama de casal para mim e mamãe.

A Sra. Prescott foi alguém bastante ativa naquela época da minha vida. Atualmente, por causa da correria diária das duas, quase não nos vemos. Ou melhor, realmente não temos nos visto nos últimos meses.

Não houve um momento em que deixei de pensar sobre o curso assombroso de minha vida. Primeiro foi a nicotina, depois a cocaína e então o álcool. Passo a passo fui mergulhando cada vez mais profundamente no submundo do vício, e se não tivesse sido Jerome em minha vida, também teria cedido à prostituição. Felizmente fui desviada desse caminho e não posso deixar de reconhecer sua importância nisso tudo. Eu já era uma ferrada quando ele me encontrou, mas podia ter ficado mais ferrada ainda.

Jerome... Não choro mais quando menciono esse nome.

Jerome.

Viu? Fiz de novo.

Meu pai morreu de overdose. Eu realmente não teria descoberto a notícia se não estivesse passando no bairro ao acaso e tivesse decidido fazer uma parada no prédio familiar, para saber se ainda existia algum homem chamado Bob morando naquele buraco sujo e fedorento. Imagine a minha surpresa ao descobrir que ele não existia mais? Ao me ver batendo na porta, um dos vizinhos mais antigos me contou o que aconteceu. Minha mãe chorou quando soube através de mim. Até hoje não entendo o porquê, mas talvez seja algo relacionado ao tempo de convivência e à imagem fabulada e romantizada que montamos sobre uma pessoa após sua morte.

E foi assim que Bob desapareceu de nossas vidas.

Para sempre.

Nunca derramei uma lágrima sequer pela morte dele. Não consigo me enganar e dizer que não estou aliviada, porque estou. Plenamente. Isso faz de mim uma pessoa perversa?

Estou completamente entretida com a conversa com Tracy no celular, ainda sentada na privada com as calças acumuladas nos meus tornozelos, e não percebo que o tempo está passando. Ela está falando algo sobre um evento beneficente, caras ricos e bonitos e a minha necessidade de arrumar um namorado.

Rio baixinho no banheiro. Não preciso de um namorado. Já tentei explicar isso a ela várias vezes, mas é o mesmo que falar com uma parede quando digo que, após ter ficado viúva, não consegui gostar de nenhum outro homem a ponto de querer me envolver intimamente com ele.

Sem falar que seria assustador, pois não me envolvo com ninguém há seis anos. Não saberia como fazer isso. Dediquei tudo de mim a Jackie, seu crescimento saudável e educação. E então há mamãe e... Suspiro. Minha vida tem sido essa constante preocupação corriqueira e só estou percebendo isso agora.

Meu Deus, eu já estou com 25 anos. Estou ficando velha.

Mais velha, na verdade.

Balanço a cabeça, expulsando os pensamentos ridículos de minha mente. Minha vida está ótima. Tenho uma filha e uma mãe que amo muito, um emprego de onde tiro minha renda, uma casa que é minha grande conquista e... até mesmo um carro! Quais são as chances de uma mulher, com um passado como o meu, conseguir ascender na vida de tal maneira? Exatamente. Para ser honesta, são extremamente baixas. E eu valorizo tudo o que conquistei até agora, sem reclamar de absolutamente nada. Nem mesmo de que Jerome não está aqui para ver a filha linda que tivemos.

Costumo pensar que ele está vendo tudo lá de cima, com seu olhar acalentador e um meio sorriso de arrebatar qualquer anjo celestial que cruze seu caminho. De alguma forma, sinto-me melhor ao pensar assim. Como se ele estivesse comigo, acompanhando-me em cada lugar, guiando meus passos, emprestando-me suas forças quando acho que não dá mais para seguir em frente... Durante esses seis anos, não houve um dia em que eu não me lembrasse dele e de tudo por que passamos. Às vezes me sinto uma maluca por ainda estar insistindo nessa conexão que deve ser coisa da minha cabeça, porque estive em seu velório. Eu o vi sendo enterrado. Mas as memórias guardam sentimentos. A cada vez que recordo as minhas, revivo todo o amor que já nutri por Jerome, meu querido amigo, meu fiel amante e meu adorável marido. Além da maternidade, ter sido amada por ele também faz parte das melhores experiências que vivenciei.

Mas ele está morto e preciso deixá-lo ir embora. Preciso deixar as pessoas mortas... mortas, como diz Tracy.

Deus, estou uma merda sentimental hoje.

Decido que ignorar os torpedos de Tracy sobre possíveis encontros com desconhecidos é a melhor escolha no momento. Estou mordendo a unha do polegar, distraída, repassando mentalmente meus compromissos do dia.

Tomo um susto quando vejo que horas são na tela do celular e me dou conta de que ainda estou reinando sentada na privada do banheiro como se ela fosse banquinho para descanso.

Estico o braço em direção ao porta papel higiênico para puxar, mas não encontro nada. Um xingamento escapa dos meus lábios quando meus olhos caem no papelão vazio do rolo de papel higiênico.

— Porra — chio.

Fecho os olhos, erguendo a cabeça para o teto.

Quem nunca ficou indignado, como se tivesse tido seus direitos tirados de você, quando descobriu, só depois de usar o banheiro, que o papel higiênico acabou?

Essa é uma das maiores frustrações do ser humano, falo por experiência própria. Em segundo lugar, acho que eu colocaria a experiência de se acomodar na posição mais confortável que você já conseguiu estabelecer no sofá, para então perceber que o controle da TV está a centenas de quilômetros de distância de você.

Suspiro pesadamente e abro as pálpebras com uma careta similar à de dor.

Mãe! — É meu grito prolongado de frustração do banheiro. — Esqueceu de repor o papel higiênico de novo!

Não é a primeira vez que um imprevisto desses acontece. Passo a maior parte do tempo fora de casa, de segunda à sexta. Às vezes meus finais de semana e feriados também estão comprometidos com o trabalho, e então, quando chego em casa, encontro essas surpresas de mamãe.

Depois que finalmente consegui comprar uma casa com minhas economias, continuamos ainda com apenas um banheiro, o que significa estreito compartilhamento do papel higiênico, bem como as devidas reposições quando o rolo acaba.

— Desculpe, filha. — Ouço passos apressados vindo do corredor ao lado. — Às vezes dá um branco. E às vezes é preguiça mesmo!

Eu rio e o som sai abafado no banheiro fechado, antes de abrir a porta o suficiente para receber o novo rolo de papel higiênico que me é passado pela fresta.

Em poucos minutos já tomei uma ducha, vesti as roupas para trabalhar e faço uma maquiagem leve, caprichando na base e pó compacto para disfarçar as leves olheiras que adquiri da noite de ontem mal dormida. Jackie teve um pesadelo e me acordou para pedir que eu ficasse com ela, em seu quarto, até conseguir pegar no sono novamente. Acho que ela está nervosa porque hoje tem uma grande apresentação na escola. Leitura de poemas. Eu a ajudei a escrever o seu próprio e talvez eu seja suspeita para falar sobre os resultados, mas ficou muito bom.

A professora em questão havia dado duas opções: ou escolhiam, com o auxílio dos pais, ler um poema que já existia; ou criavam um sob a supervisão de um adulto, o que achei inusitado. Querendo algo diferente, Jackie me chamou para ajudá-la. Tudo bem que elaborei basicamente tudo, mas minha filha está feliz, e é isso o que importa.

Por isso eu disse que era suspeita para falar sobre os resultados.

Desço os degraus da escada, apressada, alcançando a cozinha falando com um cliente pelo celular que mantenho em meu ombro, com a face lateral pressionando-o para não cair. Retiro uma tigela do armário e a pouso sobre a mesa.

— Bom dia, mãe — cumprimento rapidamente quando passo por ela para abrir a porta da geladeira à procura de leite.

— Bom dia, filha.

Sorrio quando me viro e encontro seus olhos castanhos adornados nos cantos pelas poucas rugas. Mary Ann Banks é a minha mãe. Além de viciado, meu pai era alcóolatra e abusivo, o que significa que nós duas tivemos de aguentar a barra com ele até estarmos livres de suas garras. Mamãe é bondosa por natureza e está sempre me ajudando com Jackie, especialmente em situações que estou impossibilitada de comparecer. Apesar disso, costumo pedir que me mantenha atualizada sobre o dia a dia de Jackie, já que nem sempre estou podendo acompanhar tudo de perto.

Acho que essa é a parte ruim de ser mãe solteira e ter que trabalhar.

Apesar da idade, mamãe ainda mantém sua aparência relativamente jovial. Ela me teve quando ainda era muito nova, praticamente uma adolescente. Exceto por alguns fios brancos insinuando-se no cantos de sua testa, seus cabelos são da mesma cor que os meus: castanho com nuances ruivas, que fica mais evidente principalmente quando as mechas são expostas aos raios solares. Jackie não herdou o castanho-acobreado, mas, em compensação, tem os olhos castanhos da nossa família e os cabelos escuros da família Carver.

Estou terminando de preparar o café da manhã de Jackie quando ela nos encontra na cozinha, pronta para a escola, e se senta em uma das cadeiras. Abre o caderno para começar a treinar, em voz alta, a leitura de seu poema.

— O que é mesmo altruísmo, mamãe?

Penso em uma forma simples de explicar e afasto o celular do rosto para responder:

— Caridade.

— Como se soletra?

— C-A-R-I-D...

— Espera, mamãe. Está indo muito rápido!

— C-A — recomeço e volto ao telefone para tirar as dúvidas do Sr. Myers, com um olho em Jackie, que termina de escrever. — R-I-D. — Despejo o cereal na tigela e depois o leite. Afago rapidamente seus cabelos e sorrio quando ela me agradece, plantando um beijo no topo de sua cabeça. Mamãe está tendo problemas com a gaveta do armário. De novo. Ela sempre fica emperrada desse jeito. — A-D-E. — Faço um sinal para mamãe se afastar enquanto descrevo algumas características ao Sr. Myers do imóvel que pretende visitar. Levanto a perna e dou um chute com minha bota na lateral da gaveta, fazendo-a se abrir para nós. Isso é o que chamo de praticidade. Afasto o celular por um segundo para perguntar: — Terminou, Jackie?

— Sim, mamãe!

A ligação inesperadamente cai. Fico encarando a tela do celular, tentando entender o que aconteceu.

— Celular estúpido — resmungo baixinho, deslizando meu polegar sobre a tela para descobrir que mais uma vez ele travou.

Mamãe me escutou, pois comenta:

— É por isso que não gosto dessas coisas. Tecnologia nos deixa na mão quando menos esperamos.

Reviro os olhos, sorrindo.

— Mamãe, você não gosta dessas coisas porque não sabe como usá-las. Ainda estou esperando o dia em que vai tirar daquela caixa o telefone que lhe dei!

Eu me viro para encontrá-la fritando algumas fatias de bacon com ovos mexidos.

— Ora, Ellie, eu disse que não precisava de um celular.

— É para me ligar quando precisar — retruco.

— Essa é a finalidade de um telefone fixo.

— Telefones fixos não mandam torpedos e não fazem ligações quando você está fora de casa.

Eu e mamãe nunca fomos de ter mordomias. Não tínhamos dinheiro para isso. Só fui ter meu primeiro celular aos 21 anos, quando consegui juntar dinheiro suficiente para comprar roupas novas e o aparelho que se revelou ser tão necessário quando fui inserida no mercado de trabalho.

Puxo o telefone do bolso de trás da calça quando começa a tocar. É o Sr. Myers retornando a ligação para confirmar a visita de hoje ao imóvel de seu interesse. Sou corretora imobiliária e, sim, devo ter algum parafuso solto por estar nessa profissão maluca e imprevisível.

— Logo mais estarei aí para nos encontrarmos, Sr. Myers. Tenha um bom dia.

— Você também, Ellie.

Desligo o telefone, fazendo uma careta quando vejo Cliff McDougall aparecer na TV para anunciar com antecedência que está planejando tentar a reeleição ano que vem. Não gosto desse cara. Tenho um problema pessoal com ele. Cliff é um político renomado que, além de ter um senso de humor preocupante, também é um completo idiota.

Eu cresci em um projeto social chamado Vale do Paraíso, um antigo bairro perto do elegante centro da cidade. Era um verdadeiro caldeirão cultural. Várias gerações de criminosos, prostitutas e drogados já saíram de lá. A princípio, Cliff McDougall era um dos que estavam à frente desse projeto. Reformaram toda uma área e depois cataram pessoas oriundas das classes mais pobres para ocupá-la. Eu estava no meio desses sorteados.

Certa vez, em uma entrevista, quando mencionaram o bairro, que até então possuía os índices de criminalidade e violência mais altos da cidade, Cliff brincou dizendo que o Vale do Paraíso talvez agora devesse ter seu nome trocado para "Vale do Inferno".

Como eu disse, senso de humor preocupante.

Tente imaginar Hell's Kitchen em seu auge na década de 50. Agora multiplique por cem. Esse era o Vale do Inferno, a mancha negra perto do imaculado centro de Atlanta. O apelido perdurou por anos até que o projeto fosse desvinculado do nome de Cliff e o bairro fosse incorporado a outro, recebendo um novo nome.

No entanto, como em qualquer outro lugar, sua vizinhança tem uma alma.

E almas não mudam com um nome.

Após uma olhadela no relógio da cozinha, saio em disparada em direção à bancada para pegar minha bolsa e as chaves do carro. Merda, vou chegar atrasada no compromisso. Isso será um ponto negativo na imagem de impecável corretora imobiliária que estou tentando passar para o Sr. Myers.

Ainda que eu tente, pontualidade não é bem o meu forte. Não porque não faço esforço algum, mas cuidar de uma filha pequena, ter uma mãe morando comigo, uma casa, um carro, os impostos e empréstimos para pagar, ter que dar atenção a amigos e conhecidos, e ainda ter esse trabalho maluco... Bem, essas preocupações acabam com a minha concentração e me deixam avoada de vez em quando.

Eu disse de vez em quando? Quis dizer quase sempre.

Ao perceber minha pressa desastrada, mamãe oferece:

— Posso levar Jackie para a escola, se quiser.

— Obrigada, mamãe. — Abaixo o corpo até ficar na altura de Jackie sentada na cadeira, que ainda está terminando seu café da manhã. — Hoje você vai com a vovó, está bem? Mamãe está atrasada, mas promete que a pegará na volta.

— Está bem, mamãe. — Ela está sorrindo para mim, revelando os dentinhos brancos de leite.

Dou um beijo gostoso na bochecha dela, emitindo barulhos infantis que só uma mãe que tem ou teve filhos compreenderia. Rindo, ela me abraça e depois retribui com um beijo na ponta de meu nariz.

Me despeço de mamãe, que pergunta um pouco preocupada:

— Não vai tomar café? Fiz ovos e bacon suficientes para nós duas. — Ela ergue para mim o prato que acabou de fazer.

— Não posso, estou atrasada! — Abro a porta da frente com uma expressão contrita para mamãe. — Prometo que comerei alguma coisa na rua!

Ela não fica satisfeita, mas termina cedendo. Logo estou na parte da frente de casa, caminhando em direção ao carro que está estacionado no acesso, pois o imóvel não tem garagem fechada. Fico apreensiva por causa de Jackie, mas sei que a escola fica perto, a questão de quarteirões. E eu confio em mamãe, então vai dar tudo certo. Não é a primeira vez que minha menininha vai a pé para a escola e sei que ela é esperta o suficiente para não sair correndo para o meio da rua como uma louca, ser atropelada e me deixar órfã de filha, se é que isso existe.

Preciso parar de ser fatalista.

Destravo as portas do carro e entro, jogando com uma pressa brusca a bolsa de couro para o banco do lado.

Sim, também sou essa pessoa cuidadosa com meus objetos pessoais. E não, não sou desastrada. A pessoa que disse isso sobre mim estava me caluniando.

Ouço o ronco do motor quando o carro é ligado. Aciono a marcha ré e faço uma manobra no volante para chegar à rua principal. Mais tarde já estou trafegando pela cidade ao encontro do Sr. Myers.

**********

Ufa! Quase que eu perdia o pique. Que correria a vida da Ellie, né?

O que acharam da nossa mocinha? Rolou identificação? (😂😂)

Espero que tenham gostado do capítulo =D

Estarei aguardando ansiosa a presença de todas(os) vocês no dia 05.09, hein?

Com toda a minha loucura,

Molly

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