1. Natal à la Carver
E vamos dar início a esta jornada... Quem aí tem lembranças do capítulo 6 do livro?
Só para contextualizar, o capítulo 6 é uma cena do passado em que aparece Jerome confidenciando uma coisa a Ellie. Existe uma fala onde ele faz um resumo da vida dele e menciona sobre os pais. Foi essa única fala que deu origem a este capítulo que escrevi.
Espero que gostem! <3
Não tenho muitas recordações suas. Nem possuo tantas fotos suas ou histórias com você que eu me sinta seguro de narrar com absoluta confiança. Dizem que nossa memória não armazena muita coisa quando somos crianças e que por isso não conseguimos nos lembrar de nossa infância com tanta minúcia.
Mas existe, sim, um episódio que ficou marcado para sempre em mim. E é quando trago-o à tona que sou capaz de mais uma vez enxergar seu rosto, pai.
Eu tinha apenas 5 anos quando você já estava internado no hospital com um tumor no cérebro. Você lutou. Caramba, como você lutou. Quimioterapia, radioterapia, cirurgia... Todos nós queríamos que o tumor saísse. Você queria viver. Por nós, sua família. Mas seu corpo estava desistindo. E mesmo nossa mãe sabendo disso, eu e Jameson éramos barrados de ficar muito tempo naquele quarto com você.
Será que esse era o jeito dela de nos proteger da dor que estava para chegar?
Era véspera de Natal, uma época em que as pessoas da religião cristã geralmente celebram o nascimento de uma vida. Só que aquele dia não era sobre vida, foi sobre morte.
Do lado de fora do seu quarto no hospital, eu estava sentado com as mãos cruzadas sobre o meu colo, os olhos baixos. Jameson estava bem ao meu lado, sem dizer uma palavra sequer. Tínhamos chorado várias lágrimas ao longo dos últimos meses, ainda que de forma escondida da nossa mãe. Tampouco ela chorava na nossa frente a cada notícia que recebia do médico corroborando que você ia de mal a pior.
Vivi em agonia por todo aquele tempo em que vivenciamos sua doença junto com você. Supliquei noite após noite que você saísse dessa situação e voltasse a ser aquele cara brincalhão que tinha tempo para os filhos. E mesmo assim, você morreu.
Eu era tão pequeno e estava tão agitado para entender a complexidade de tudo que por um tempo fiquei achando que fomos abandonados por você. Que a luta foi perdida porque foi uma escolha sua. Que você foi o meu herói, e com os seus superpoderes de herói, deveria ter sido capaz de combater qualquer mal.
— Meninos, venham se despedir do pai de vocês — nossa mãe chamou da porta, exibindo uma expressão destemida que ocultava em parte sua tristeza.
Eu e meu irmão saltamos do assento e, vagarosamente, caminhamos até seu corpo instalado na cama do hospital. Meus olhos arderam quando o vi ali, seu esqueleto envolto por nada além de pele. Seu cabelo estava ralo, desaparecendo. Suas bochechas estavam fundas e os ossos eram bastante perceptíveis. Você respirava com a ajuda de máquinas, o que comprovava seu nível de fraqueza.
Era duro para um menino de 5 anos assimilar que o pai estava perdendo a luta e que, enquanto filho, eu estava perto de perder uma grande referência paterna.
Apertei delicadamente sua mão e Jameson fez o mesmo no outro lado da cama. Você apertou a minha de volta, com uma pressão quase inexistente. Meus olhos voaram para Jameson, confirmando que o mesmo havia acontecido com ele.
Os olhos do meu irmão vibraram tanto quanto os meus.
— Papai? — Jameson fungou. — Você vai viver, não é? Não pode nos deixar assim. Ainda podemos fazer tantas coisas legais juntos...
— Não pode ir agora. Vamos cuidar de você, está bem? — prometi.
— Despeçam-se dele, meninos — nossa mãe interveio com dureza. — O pai de vocês não vai durar muito tempo.
— Está bem — murmurei inconsolavelmente. — Está tudo bem. Eu te amo, papai. Te amo muito.
— Também te amo, papai — Jameson balbuciou dolorosamente.
Podíamos ouvir cada bipe da máquina monitorando seu batimento cardíaco. O intervalo entre um bipe e outro foi se tornando cada vez maior. Seu peito subia e descia, até não haver mais nada além do silêncio naquele quarto. Achei toda essa quietude estranha e entrei em pânico ao concluir o pior.
— PAPAI! — gritei a plenos pulmões, tomado pelo desespero, e comecei a sacudir seu corpo inerte. — Volta! Volta! Volta agora!
— NÃO! — Jameson berrou assim que dois enfermeiros nos seguraram para nos expulsar do quarto. — Parem! Apenas parem! Ele não se foi! Me larga!
Nossa mãe continuou ali, um copo de isopor branco com café na mão. Ela via nossa comoção, as lágrimas em nossos rostos, ouvia nossos gritos. Fiquei bravo com ela por ainda permanecer tão firme enquanto eu e meu irmão surtávamos naquele hospital.
— Você não se importa! — bradei para ela, só para obter alguma reação, mesmo que para isso eu tivesse que tirá-la do sério. — Eu te odeio! Te odeio!
A porta do quarto foi fechada e a figura dela desapareceu. Só voltei a vê-la quando horas depois já estávamos em casa. Eu e Jameson estávamos encolhidos na sala, aos soluços, sendo confortados pela babá. A Sra. Carver passou reto por nós, tão muda quanto tinha entrado.
— Ela nem olhou pra gente — Jameson queixou-se. — Agora que o papai se foi, será que ela nos odeia?
— É claro que ela odeia a gente, seu tolo.
— Ela não odeia nenhum de vocês, meninos. Só precisa de um tempo para sofrer — a babá disse, acarinhando meu cabelo. — Foi um dia difícil para todos vocês. Escutem, por que não vão se trocar? O jantar será servido daqui a pouco. A mãe de vocês também precisa comer, então ela vai descer aqui. Pode ser uma boa chance de conversarem e se entenderem. O que acham? É quase Natal... Não fiquem com essas carinhas tristes! É de partir o coração.
— É claro que estamos tristes! Nosso pai acabou de morrer! — gritei, furioso, e saí correndo escada acima, as lágrimas turvando minha visão.
— Jerome! Jerome, volta! — Ouvi os passos apressados de Jameson me seguindo. — Não pode sair gritando com as pessoas assim, seu estúpido!
Jameson ficou enclausurado comigo em meu quarto durante muito tempo. Mesmo quando a babá insistiu que fôssemos comer, recusamos. Foram algumas horas de choro, de dor, de luto. Foi realmente só a fome o que nos forçou a sair de nosso esconderijo.
Era tarde da noite. O relógio marcava um pouco mais de uma da manhã. A casa estava vazia e silenciosa. Contrito, pensei em bater na porta da nossa mãe e articular meu desajeitado pedido de desculpas. Eu me arrependia por tê-la destratado tão grosseiramente, pai. Mas antes de golpear a madeira, pude ouvir os soluços ecoando de dentro do cômodo. E então compreendi: ela sofria por você, chorava a sua morte naquele momento. O fato de que ela preferia fazer isso longe da presença de qualquer um não a tornava menos humana.
Desisti do meu intento e segui para a sala de jantar, onde Jameson havia posto a louça e alguns pratos de comida que tinham sido preparados pelo cozinheiro. Sentei-me na cadeira e ele se sentou na que ficava em frente à minha.
Ergui a taça com o suco.
— Feliz Natal, Jameson.
— Feliz Natal, Jerome.
Desengonçadamente nos esticamos sobre a mesa comprida e brindamos.
Até hoje penso na revolta que senti quando descobri que você foi embora. No ódio povoado silenciosamente em mim e na dúvida que me assolou após sua morte. Pai, eu fui egoísta por querê-lo ali para mim. Para todos nós. Gosto de acreditar que hoje sou menos egoísta do que um dia já fui, porque compreendi que você não deveria ter ficado aqui sofrendo com as sequelas da sua doença.
Você sempre mereceu o melhor quando estava conosco neste mundo.
Agora que está aí, não poderia ser diferente.
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