O outro lado da vida

Ao atravessar o portão da minha casa, avistei várias pessoas sentadas em algumas cadeiras espalhadas pelo quintal, as crianças brincavam de pique esconde, e alguns homens bebiam cachaça embaixo do pé de manga ao lado do meu pai que parecia alheio a situação. Minha mãe costumava receber as pessoas em seu quartinho onde realizava suas rezas, mas aquela situação estava estranha demais, era como se ninguém ligasse para minha presença, parecia estar invisível, e isso não era algo comum em minha vida, já que tinha o dom de sempre chamar a atenção.

Caminhei até a porta da cozinha e me deparei com mais pessoas conhecidas que para variar, não me dirigiram a palavra; sobre a mesa uma bacia de pão com mortadela e várias garrafas de café, mas, o mais bizarro foi ver que na sala não havia um único móvel, ao invés disso, uma caixa de madeira ocupava o lugar de destaque.

— Mãe!

Andei apressado me desviando das pessoas, e a cena que vi naquela sala me partiu o coração, minha mãe sentada em uma cadeira acariciando um corpo sem vida, e ao me aproximar, entendi do que se tratava. Eu estava em meu próprio velório.

— Mãe, eu não morri, mãe estou aqui! — Eu tentava tocá-la, mas era em vão.

O desespero me envolveu, não me lembro de ter morrido, estapeava meu próprio rosto tentando acordar, mas era inútil. Caminhei por entre aquelas pessoas, várias candidatas a viúvas se olhando de cara feia, quantas aventuras vivemos em meu fuscão.

— Meu poisé, se eu morri, quem vai ficar com ele?

— O fusca fica comigo — disse meu irmão Tibério balançando a chave, ele era o mais velho e menos ajuizado.

— O Tonico nunca que ia deixar pra você, ele fica comigo — disse meu outro irmão Raimundo, o irmão gêmeo do Rivelino que observava calado.

— O fusca vai ser vendido para pagar o prejuízo da quebradeira na venda — disse meu pai, pegando a chave e guardando no bolso.

— Que quebradeira? Pai eu não morri, o que está acontecendo?

Outro momento de desespero, mas era em vão, ninguém me ouvia, eu simplesmente encerrei minha jornada na terra sem aviso prévio. Entrei no meu quarto e nem isso me pertencia mais, minhas coisas estavam mexidas, nem minhas revistas de mulher pelada dos anos 90 que escondia embaixo do colchão estavam no mesmo lugar. As cartas que recebia a cada encontro, papel de bala com mensagens fofas, minha chuteira furada no dedão; tudo estava em um saco de lixo prestes a ser queimado.

— Meu corpo ainda nem esfriou e já estão se desfazendo de minhas memórias — murmurei correndo meu olhar pelo cômodo.

Soltei um suspiro profundo, não tinha como fugir era o fim da linha, mas cadê o túnel?

— Tão novo, Tonico — dizia dona Ritinha, a vizinha da frente. — Está tão bonito, sereno como se estivesse dormindo.

— Menino tão bom, deve estar em um bom lugar — disse uma tiazinha que nunca vi mais gorda.

— Eu não morri — levei as mãos até o rosto, sentado em minha cama tentando entender o que se passava.

— Cuida de nós aí de cima — disse meu primo Genésio que me batia quando criança.

— Vou cuidar coisa nenhuma, você que se lasque — fiz um gesto obsceno em direção a ele pela fresta da porta.

— Não! — Um grito desesperado ecoou pela casa, e essa voz eu conhecia muito bem, era Rosália a filha da vizinha. — Você não podia me deixar Tonico, quem vai criar nosso filho!

— Filho?! — Pulei da cama apressado, não sabia que plantar mandioca embaixo do pé de café renderia frutos.

— O meu também vai crescer sem pai — disse Fernandinha, a ruivinha de aparelho que eu pegava toda segunda-feira.

Eu sempre fui mulherengo, mas era um mulherengo tímido que não conseguia cantar ninguém. Elas é que não saíam do meu portão e agora de que adiantava ter me deitado com tantas meninas se a farra chegou ao fim? Eu morri e ainda deixei filho sem pai, mulher desamparada e minha família sofrendo por conta das minhas safadezas.

— O meu santo protetor dos come quieto, posso morrer ainda não, tenho filho pra criar — pedi de mãos juntas. — Pela fé da minha mãe que chora naquela sala, alivia essa pra mim!

— Tonicooooo — uma voz grave estremeceu a casa. — Está me ouvindo Tonicoooo?

— Agora lascou, se for a hora do julgamento, deixa eu editar o filme antes de passar no telão da vergonha? — Perguntei tentando descobrir de onde vinha aquela voz.

— Você entendeu o motivo de ter morrido, meu jovem?

— Entendi sim senhor, mas é meu jeito, não resisto a um rabo de saia.

— Vou te dar outra chance, Tonico, mas pagará com a mesma moeda.

— Eu pago, pago com juros, só não quero ver minha velha sofrendo.

— Você vai voltar, Tonico, mas terá que cumprir a promessa de nunca mais pegar a mulher do próximo.

— Mesmo se o próximo estiver distante?

— Sem pegar mulher do próximo Tonico!

A casa até estremeceu depois dessa, mas eu era tonto quase boto tudo a perder.

— Vai provar do próprio veneno Tonico. Não se esqueça de andar na linha porque o pai da mentira gosta de testar as almas perdidas.

— Eita lasqueira, levo bronca até do outro lado da vida — balancei a cabeça em sinal de negação.

— Você vai retornar e cumprir sua missão, mas jamais deverá pegar mulher alheia, senão...

— Senão?

— Vai virar primeira dama no andar de baixo.

— Tem um castigo melhorzinho não? É que não curto essas experiências.

— Terá que sentir na pele para enxergar seus erros, meu jovem. É pegar ou largar Tonicoooo.

— Pegar mulher eu posso?

— Isso vai ser interessante.

Não sei o que ele quis dizer com isso, mas ainda era melhor do que bater as botas aos vinte anos de idade.

— Fechado!

— Ouça minhas instruções, você vai se jogar sobre aquele corpo sem vida, e quando acordar, não contará a ninguém sobre o que aconteceu desse lado. Não se esqueça de que se não cumprir o prometido vai direto...

— Nem morto, digo, eu vou cumprir.

— Boa sorte, Tonicooo!

Um barulho estrondoso balançou a casa novamente, e então tudo voltou ao mais completo silêncio... Bem, nem tanto porque o padre chegou para encomendar a alma, e é nessa hora que bate o desespero.

— Vou esperar o cardeal absolver meus pecados, aí volto zerado — falei me encostando ao batente da porta.

O padre fez um discurso tão bonito que até eu fiquei com pena do morto ter batido com as botas tão cedo. Foi uma cantoria, gente chorando, nariz escorrendo, não é porque eu morri que tinha ficado cego. Êta povo feio quando chora, rapaz! Fiquei até emocionado de ver como era querido, principalmente pelas meninas, acho que fiz um serviço bem feito. O homem de preto se posicionou ao lado do caixão e entendi que era hora de voltar, não queria acordar a sete palmos do chão. Apesar de fazer o muro do cemitério de motel, eu sempre tive medo de almas penadas... se bem que agora eu era uma delas.

— Não, o Tonico não!

Agora foi a vez de dona Sônia cruzar aquela porta aos prantos, já estava ficando magoado achando que não vinha. Afinal, foi por conta dela que bati com as botas.

— Garoto novo, tão bonzinho, não mexia com ninguém. Ah, Tonico, porque você tinha que ir assim, quem vai me levar linguiça agora, não é justo!

Não sabia que era tão importante, a mulherada começou a chorar e me pedir de volta, juro que fiquei orgulhoso de mim mesmo, porque sabia que apesar de ser mulherengo, sempre fui um homem de bem e agora estava sendo requisitado na terra. Era um tal de volta pra mim, não me deixe aqui, aqueles escândalos de velório de pobre, pensa numa alma penada com ego elevado. Me aproximei do caixão já pensando em uma volta triunfal ao mundo dos vivos, mas confesso que fiquei receoso, será que colaram todos os buracos do meu corpo?

— Volta pra mim Tonico! — Um coral de choro feminino me encorajou. Mas foi o olhar triste de minha mãe que me fez desejar ter minha vida de volta.

Fechei os olhos e me joguei, não queria esperar mais tempo, senti meu corpo caindo em queda livre e vi minha vida passar diante dos meus olhos até que tudo se apagou. Lá ao longe barulho de choros veio me trazendo de volta, abri os olhos sentindo meu corpo todo doer, um arrepio eriçou até os pelos do meu... então, voltando ao assunto, eu me sentei no caixão abri os braços e gritei:

— Voltei!

Foi uma gritaria danada, as mulheres que me queriam de volta saíram correndo, nem minha mãe ficou para contar a história, o padre então, deve estar correndo até hoje, mas para meu total desespero, uma única pessoa ficou...

— Seu Jair — falei com cara de choro. — Quanto tempo!

— Matei uma vez e mato de novo — disse ele me apontando aquela espingarda novamente. — Já aproveita e economiza caixão.

Não deu tempo de pedir clemência, o homem atirou sem dó, e lá estava eu morrendo outra vez. E foi assim que no tempo em que amarrava cachorro com linguiça, eu descobri que as meninas me chamavam de gato, mas não tinha sete vidas. Ou tinha?

— Acorda!

— Ah, eu não quero morrer! — Me encolhi assustado no banco do fusca.

— Ninguém vai te matar não homem, só queria saber se precisa de ajuda, o carro está parado aqui no meio do nada.

Respirei profundamente aliviado, não sei como cheguei ali, mas estava vivinho da silva e sem nem um arranhão. Um comboio que fazia parte de uma companhia de rodeio não só me ajudou, como me ofereceu um emprego na montagem da arena e manutenção dos animais, que não pude recusar. Quando saí de Pendura Saia, não tinha um único tostão no bolso. Pra dizer a verdade, nem roupa eu tinha além de uma cueca freada e o vestido estampado que furtei do varal da vizinha, mas, como sou honesto, é óbvio que depois enviaria pelo correio, só não sei se ela usaria.

É lógico que virei motivo de piada, mesmo contando minha história, os peões me zoaram por dias. Sobre minha experiência pós morte, eu não contei a ninguém, não sabia se era sonho ou realidade, mas com toda a certeza do mundo, não arriscaria descobrir.

Por ironia do destino, eu saí de minha amada Pendura Saia fugindo de um touro bravo e fui parar em uma companhia de rodeio, mas, não reclamei da sorte, agora eu tinha um trabalho, viajava de cidade em cidade, dormia e acordava em lugares diferentes e não criava raízes. 

Até que estava tudo indo muito bem, mas como a sorte não caminha ao meu lado, eu botei o olho nela... casada?

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