O jogo da vida
Minha vida virou de ponta cabeça de uma hora para outra. Em um dia eu estava fazendo as entregas da venda do meu pai, e no outro, fugindo de lobisomem, vampiro, até alma penada. Se dissesse que troquei de corpo com uma moça na noite do dia das bruxas e já viajei com a morte no carnaval então, ninguém acreditava, mas eu vivi tudo isso e muito mais. Só não consegui escapar da dona onça, aquela nativa linda que pulou na frente do meu fusca e me arrastou de volta quando eu tentava fugir de sua aldeia.
— Tonico!
Eu ouvi aquela voz lá no fundo e não conseguia me mexer; abria e fechava o olho me sentindo cansado, dormia e acordava variando, sei lá eu por quanto tempo, até que finalmente consegui despertar.
— Por que não me deixou ir embora? — Perguntei para Indaiá que me trazia um copo com água.
— Tonico se aquieta, não pode sair até Apoena terminar o ritual de purificação.
A moça o que tinha de linda, também tinha de brava, e eu é que não ia contrariar.
— Você cuidou de mim, eu te vi aqui, mas não conseguia despertar.
— Apoena treinando Indaiá — ela pegou o copo de minha mão e colocou em cima da mesa. — Tonico fica até fechar o corpo e depois volta pra casa.
— Indaiá — segurei em sua mão. — Muito obrigado por cuidar de mim.
— Indaiá cuida de todo mundo aqui — ela puxou a mão me deixando de coração partido.
Eu sempre fui mulherengo, não dispensava um rabo de saia, pegava todas, mas nunca consegui me apaixonar por nenhuma. Não sabia o que era sentir aquele frio na barriga só de estar perto dela, de ouvir a voz dela, sentir o cheiro dela. E quando aconteceu... ela era comprometida e não me dava bola.
— Tonico bebe chá e deita — Indaiá me entregou uma cuia e depois saiu me deixando sozinho.
— Com tanta moça no mundo eu fui gostar justo dela — falei me lembrando de como aquela moça linda me fazia sonhar acordado, só de me trazer uma cuia de chá.
Aquela noite de lua clara, deitado naquela cama de palha eu suava frio enquanto a xamã dizia umas palavras em sua língua jogando uma fumaça branca que ela puxava num trem que parecia um canudo e soprava em mim.
— Onça! — Gritei quando vi aquele bicho enorme se aproximar da cama.
— Calma, Tônico, não é real! — Pedia Indaiá.
Apoena com a maior calma do mundo, continuou sua cantoria assoprando aquela fumaça em meu rosto, então, fui ficando tonto até que apaguei de vez...
— Aonde estou? — Perguntei quando entrei naquela sala escura e vi uma mesa com duas cadeiras no centro iluminado por um luz que não sabia de onde vinha.
— Seja bem vindo, Tonico, não costumo receber visitas nesse horário. Sente-se.
Um homem de preto, muito bem arrumado, saiu de um canto escuro e parou à minha frente.
— O senhor quem é?
— Aí depende de como me conhece — ele acenou para que eu sentasse.
— Eu morri?
— Isso é irrelevante, mas sente-se, não gosto de jogar sozinho.
O homem sério colocou sobre a mesa uma caixinha comprida tão reluzente que parecia de ouro.
— O senhor não me disse seu nome — falei desconfiado.
— Meu nome é Lúcifer, mas isso também é irrelevante.
O homem tinha o cabelo arrumado, olhos claros, corpo malhado, roupa fina e porte de doutor. Não consegui disfarçar o meu olhar de espanto.
"Esse capeta tá muito moderno, sei não, tem coisa errada aí" , pensei.
— O que foi Tonico? Esperava um bode de chifres?
— O senhor não se ofenda, mas é que, na igreja me disseram que o homem lá de cima, tinha tirado toda a sua beleza e...
— Desse jeito vou achar que está me cantando Tonico.
— Com todo respeito seu coiso, eu gosto é de mulher sabe, nada contra o senhor, o importante é ser feliz, mas...
— Alma não tem sexo, Tonico, e senta logo que estou ficando impaciente.
— Dominó? — Perguntei tentando engolir o coração que já saía pela boca.
— Prefere amarelinha?
— É que... um homem elegante assim, com essa cara de gente chique, eu imaginava um jogo de xadrez, ou poker.
— Você dá trabalho, hein, Tonico, sabe jogar algum desses?
— Eu não.
— Então feche a matraca e senta!
A verdade é que eu estava cortando um prego de medo daquele homem, mas não tinha pra onde fugir, e pedindo com tanto carinho, eu sentei.
— Que tal falar de sua vida, Tonico, porque estamos aqui agora?
— Pra que estragar esse momento tão bonito? — Eu tremia procurando a saída de emergência.
— Não adianta fugir, sei de tudo sobre você.
— Então porque tá perguntando? — Corri o olhar pelo cômodo mais uma vez.
— Porque gosto de torturar as pessoas, essa é minha função.
Ele me encarou de um jeito que arrepiou até as tripas...
— Por que está tão nervoso, Tonico? — Sorriu separando suas peças.
— É que não é sempre que a gente tem a oportunidade de sentar assim de frente com um homem tão famoso.
— Vai querer um autógrafo? — Ele se inclinou em minha direção e eu quase caí da cadeira.
— Precisa se preocupar com isso não, seu Lucifre.
— É Lúcifer, Tonico, vivia na igreja e não sabe meu nome?
Ele colocou o carretão vermelho sobre a mesa...
— Fica bravo não, seu coiso, é que eu tô um pouco nervoso — coloquei a peça vermelha de ponta amarela.
— Ficava nervoso quando cometia adultério, Tonico?
O jeito como ele me olhava, me fez lembrar das palavras de Apoena me dizendo que o pai da mentira estava me testando, então, tentei ser mais esperto do que ele...
— Eu não conhecia a safadeza, foi a dona Sônia quem me mostrou, então, só retribuí, e se a casada era ela... o pecado não era meu — coloquei a outra peça na mesa.
— Muito esperto, mas o nono mandamento, diz que não se deve cobiçar a mulher do teu próximo — outra peça colocada na mesa.
— Dona Sônia era noiva quando fugiu com seu Jair, então, o próximo roubou a mulher do outro próximo, e se ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, eu tô perdoado.
— Canta bem sem viola, hein, Tonico? — Ele colocou outra peça na mesa. — E o que me diz sobre o sexto mandamento?
— Não pecar contra a castidade — coloquei a peça na mesa tentando achar uma resposta, mas não consegui. — Esse pecado pode colocar na minha conta.
O homem sorriu colocando outra peça...
— O negócio é muito bom, não é Tonico, porque não aproveitar?
— É sim, mas agora eu me lasquei seu coiso, gostei de uma que não é pro meu bico.
— E porque não, Tonico?
— Porque ela é comprometida e não me dá bola.
— E porque não luta por ela?
— Porque eu sou um peão de estrada seu coiso, ela não ia querer estragar a vida indo embora comigo. A moça está comprometida com um homem bom que não tem um passado manchado como o meu.
Ele acendeu um charuto antes de colocar a outra peça na mesa.
— Gosta tanto de mulher, mas porque que não aproveitou quando esteve no corpo de uma?
— Minha mãe me ensinou a nunca tocar no corpo de uma mulher sem o consentimento dela.
— Mas, o corpo era seu.
— A mente era minha, mas o corpo era dela — coloquei outra peça na mesa.
— Boa resposta, mas, o que me diz sobre a Suzana?
— Eu não sabia que era pecado ajudar alma penada. E quando ficamos juntos, ela quem deu o primeiro passo.
O jogo seguiu e ele continuou com as perguntas, me deixando encurralado...
— Passou tanto perrengue na estrada, mas nunca usou o dinheiro que a Suzana te deu, sequer contou para ver quanto tem naquele envelope. Isso é o que mais me intriga Tonico. Por quê?
— Eu tenho saúde e posso trabalhar, se contasse, ia acabar usando e quero doar para o hospital do câncer.
Meu coração disparou quando vi que tinha várias peças na minha mão, e na dele, só duas...
— Justo, muito justo — o homem cruzou os braços me encarando, e senti um frio gelado na barriga. — Se você preza tanto pelos ensinamentos de seus pais, então, por que nunca voltou pra ver sua mãe, Tonico?
— Porque eu não queria ver mainha chorando abraçada ao meu caixão outra vez. Sabe seu Lúcifre, eu passei por muita coisa difícil na minha vida. Fui criado por um homem sem instrução e muito do que aprendi foi na escola com gente tão boba quanto eu. Mas ver o sofrimento da mulher que me deu a vida, me doeu tanto que jurei a mim mesmo, nunca mais fazer com que ela sofresse por minha causa.
— Mas a dor da saudade não é sofrimento, Tonico?
— Eu precisei perder tudo o que eu tinha para entender que não podia levar aquela vida. Hoje não sou mais aquele cara que fazia aquelas coisas, mas também não importa, é o fim da linha.
Ele colocou a penúltima peça na mesa e eu tive que comprar as restantes. Não precisava ser inteligente pra saber que tinha perdido o jogo porque a peça azul da outra ponta não estava comigo.
— Será que a humanidade tem salvação, Tonico?
— É.. acho que perdi né? — Falei derrotado. — Eu não posso falar pelos outros seu coiso, mas nas minhas andanças aprendi muita coisa que se tivesse ficado em casa não teria aprendido.
— Está certo, Tonico, e para não dizer que sou ruim, farei um bate e volta contigo, e dependendo do resultado, eu decido seu destino.
Eu não entendi muito bem o que aquilo significava, mas já estava conformado com meu fim.
— Uma saudade Tonico.
— Só uma?
— Só uma.
— Minha mãe.
Ele concordou com a cabeça.
— Um agradecimento.
— Agradeço ao meu pai por tudo o que me ensinou.
— Uma mágoa?
— Não guardo mágoa de ninguém, não senhor.
— Um arrependimento?
— Ter me envolvido com a mulher do seu Jair. Eu nunca tive um compromisso sério, seu coiso, mas agora que tenho uma moça no coração, eu sei que sofreria muito se ela estivesse comigo e ficasse com outro.
— Um último pedido?
— Perdão por todos os meus pecados, eu não sabia o mal que fazia.
O homem de preto se levantou e andou de um lado pro outro com as mãos para trás, e foi quando parou à minha frente que entendi que estava lascado...
— Eu acho que agora é o fim, né?
— Na verdade, você cumpriu todas as suas tarefas Tonico. Teve muitas chances de se corromper e não fez isso. Esse era seu verdadeiro desafio.
— Que tarefas?
— Talvez eu tenha colocado algumas tentações em seu caminho, estava entediado, sabe como é, mas você resistiu.
— A troca de corpo com a moça foi sacanagem — protestei.
— Até que foi divertido.
— Aquele casal, o anjo e o...
— Tem coisa que é melhor não saber Tonico. Agora é hora de ir.
— Isso significa que eu to livre?
— Na verdade, você nunca esteve preso.
— Ufa, pensei que ia virar primeira dama no inferno.
— Ah, não, você não faz meu tipo — o homem fez uma careta.
— Eu deveria ficar ofendido, mas fico agradecido, viu seu Lucifre.
— É Lúcifer, Tonico — ele me deu um tapa na testa. — Eu recebo as almas perdidas, mas quem julga é o todo poderoso, e você tem mais pontos com ele do que comigo. Até tinha esperança, mas depois desse pedido de perdão, o homem lá de cima resolveu te escutar, e por isso, não posso te segurar aqui.
Eu pulei de alegria e abracei o capeta.
— Sem sentimentalismo Tonico. E vai logo antes que eu mude de ideia, não costumo cumprir regras.
— Só mais uma pergunta seu... é que enrola minha língua.
— Está bem, Tonico, continua me chamado de seu coiso — ele acenou com a mão.
— Então, seu coiso, se o senhor é um anjo e castiga quem faz coisa errada, então, não é tão ruim assim, ou é?
— Você dá trabalho, hein, Tonico!
Ele estalou o dedo e lá estava eu outra vez naquela cama de palha, com a xamã soprando fumaça sobre meu corpo enquanto falava umas coisas em outra língua. Não sei se foi um sonho, também não quero descobrir, só sei que toda vez que eu conto a minha história, as pessoas dão risada e me chamam de louco. Alguns até dizem que é mentira, mas, eu sei o que vivi, sei cada canto que passei e tudo que aprendi. Se me arrependo? Não, eu não me arrependo de nada, faria tudo outra vez se fosse preciso porque foi assim que eu conheci a mulher da minha vida.
Depois de tudo o que vivi acabei entendendo que o fato de as tentações existirem, não significa que eu deva ceder a elas. Ensinei meu filho homem a respeitar uma mulher assim como meu velho pai me ensinou. Minha filha, eu oriento e rezo para que encontre um homem bom que não faça com ela o que eu fazia com as moças quando era jovem. Mas é isso, minha mãe sempre me pediu uma nora, só não imaginava que ganharia uma filha, nem que ela seria uma nativa roubada da aldeia. Não precisei pegar no laço como meu avô, mas deu trabalho porque era brava feito uma onça, ai de mim se não andasse na linha.
Por hora, vou ficando por aqui, já falei demais e talvez um dia eu volte pra contar mais uns causos porque agora sou um pai de família cheio de responsabilidades. Não que a mulher não me deixe ficar de prosa, lá em casa, a última palavra sempre é minha... sim senhora.
— Tá falando de mim? Você dá trabalho, hein, Tonico!
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