O homem de preto
As pessoas na vila diziam que minha avó não regulava muito bem dos quengo, mas se fosse levar em conta as história que a velha Dolores como era conhecida contava... era pra ser verdade. Uma vez ela disse, que o carnaval era uma festa pagã onde os portões do além se abrem, e o sobrenatural caminha sobre a terra se alimentando do pecado e arrastando almas perdidas pra escuridão.
Garrei tanto medo de carnaval que todo ano eu ia pro retiro da igreja, com medo de ir pro inferno onde um homem de chifres com um garfo na mão fervia as pessoas em um caldeirão. No fundo eu achava que minha avó era caduca, mas desde que topei com aquela cidade fantasma cheia de criaturas estranhas, passei a ter pesadelos com coisas assombradas; talvez ela não era tão doida quanto eu pensava e agora depois do perrengue que passei naquele carnaval sinistro na terra do Cristo, tive mais certeza ainda.
Naquela altura, eu já sentia falta da minha casa, minha vida de entregador de linguiça e faz tudo da venda do seu Nerso, meu velho pai. Eu só queria sair daquele lugar bizarro e dirigir rumo a lugar nenhum desde que não topasse com um lobisomem, alma penada, mulher feia ou coisa parecida...
— Álcool ou gasolina, senhor? — Perguntou o frentista do posto naquela noite corrida e tumultuada.
— Gasolina, e pode encher o tanque que eu só paro quando estiver longe desse lugar assombrado — falei indo em direção ao banheiro.
Já passava de uma da manhã, o lugar estava lotado, era bêbado pra todo tipo de buteco, umas meninas oferecendo diversão, uns caras meio abilolados e eu perdido no meio daquela gente toda que curtia o tal do carnaval.
Quando abri a carteira, a pobreza riu da minha cara. Além de papel e umas moedas, só restavam algumas notas que por sorte pagariam o combustível.
— É Tonico, bora pensar em arrumar um trampo pelo caminho porque o negócio tá ficando feio — guardei a carteira no bolso e cocei a nuca preocupado.
— A chave do senhor — disse o frentista. — A moça pediu pra entregar esse pacote.
— Que moça? — Perguntei curioso. — Olha, a chave é minha, mas o pacote deve ser de outra pessoa.
— É do senhor mesmo, seu Tonico, ela já pagou a conta do combustível, pediu para agradecer pela noite, e disse para não dar carona a estranhos.
O rapaz se afastou e eu fiquei arrepiado, não tive coragem de olhar o que tinha dentro daquele pacote, nem seria de bom grado rejeitar, só saí apressado com medo do que mais fosse me acontecer ali naquele lugar sinistro.
— Uma alma penada que cumpre a palavra.
Joguei o pacote no porta luvas, liguei o rádio em um programa sertanejo e bati em retirada.
"Boa viagem, Tonico, te vejo no próximo carnaval."
— Aaaa, o que isso! — Dei um pulo e freei o carro com tudo, quase causo um acidente.
— Ae comprou carteira?
Uma voz desconhecida no banco de trás quase me manda pra terra do pé junto.
— Puta que pariu! — Estalei o zóio tremendo mais do que cachorro molhado.
— Só dirige.
Nem consegui olhar pra trás, o cano gelado daquela arma encostada em minha costela fez minha vida passar diante dos meus olhos outra vez.
— Eu não sabia que a finada era comprometida, moço, parei pra tirar água do joelho e ela entrou no carro — fui logo me explicando. — Se buli com a moça foi na inocência, e o dinheiro da gasolina eu tenho aqui comigo posso te devolver, não pedi pra ela fazer nada pra mim não, vice.
— Isso aqui é terapia de casal não brother, fecha o bico e dirige!
— Só pra eu saber, o moço tá vivo né?
Foi aí que no meio daquele cagaço entendi que estava sendo assaltado...
— Não por muito tempo.
— Aaaaa!
Lá estava eu freando de novo...
— Cornoooo — o motorista de trás buzinou me fazendo um gesto mal educado.
— De onde saiu? — Perguntei assustado ao ver o homem de preto sentado ao meu lado, e pela cara de medo do parceiro do banco de trás, eu não estava vendo coisa.
— Cansei de ficar em pé, preciso revisar minha lista, pode continuar dirigindo.
— Você tá vivo moço? — Perguntei todo arrepiado.
— Oh, que distração a minha, não me apresentei; eu sou a morte, mas, prossigam com o roteiro, não vou atrapalhar.
Eu e o companheiro do banco de trás nos olhamos apavorados enquanto o ser ao meu lado, revisava aquele papel com uma calma que só vendo.
— Douglas Silva — disse o homem olhando pra trás. — Sua ficha é extensa, meu rapaz, pode guardar essa arma que não vai ter serventia.
— Salvo pela morte, quem diria — falei aliviado.
— Antônio Severino, sua ficha também está bem recheada.
— Se lascou! — O abusado do banco de trás ainda tirou onda com a minha cara.
— Douglas, você é usuário de drogas, cometeu vários assaltos a mão armada, abandonou duas crianças, roubou a mãe para pagar dívida de tráfico e...
— Coé, vai ficar falando da minha vida?
— Não, até porque ela chegou ao fim mesmo — o homem de preto rabiscou alguma coisa em sua caderneta.
— Quero morrer, não seu morte, leva o Antônio!
— É Tonico, e eu não fiz nada das coisas que o seu morte ali falou — olhei para a morte de rabo de zóio, com o boga na mão.
— Tonico é uma pessoa de bem, mesmo adulto obedecia os pais, rapaz caridoso, honesto, trabalhador...
— Viu, eu sou um exemplo, ele não vai me levar — ri da cara de desespero do rapaz.
— Não comemore tão rápido, meu jovem, você cometeu adultério que é um pecado gravíssimo, mentira, luxúria, gostava de iludir as meninas e praticar ações pecaminosas atrás do muro do cemitério. Eu vi tudo.
— Mas isso é bíblico seu morte, crescei-vos e multiplicai-vos, eu estava treinando.
— Tanto faz, já estamos aqui, vou colocar teu nome na lista, mas quero curtir o restante da noite, resolvo isso ao amanhecer.
— Olha, seu morte, tá cheio de gente ruim lá fora, pega os políticos ladrão, aquele povo que fabrica bomba, marido que bate em mulher, pra quê perder tempo com dois zé ninguém que nem nóis?
— Concordo com o Tonico, alivia aí dona morte — pediu meu assaltante.
— Você está na mira do tribunal do crime e da policia, meu jovem, de qualquer jeito a gente ia se encontrar, mas para não dizer que sou ruim, vou deixar os dois farrear até o fim da noite.
Ele estalou os dedos e aparecemos encostados em uma rua escura à beira de uma praia cheia de pessoas comemorando o carnaval...
— O que foi isso? — Perguntei assustado.
— Essa lata velha não anda, só encurtei o caminho — disse a morte. — Se animem, são meus convidados especiais, nem sempre faço isso. Aproveitem para curtir seus últimos momentos na terra, e nem pensem em tentar fugir que eu encontro.
— Mas, é seguro deixar o carro aqui? — Perguntei preocupado.
— Que carro, isso é um fusca, quem rouba um fusca? — O zé graça riu do meu poisé.
— Olha aqui seu filhote de cruz credo, não ofende meu fusca! — Parti pra cima do ladrão, já ia morrer mesmo, era só mais um pecado na conta.
— Parou os dois, hoje é dia de festa, e fusca não é carro, é veículo de locomoção, vê se sossega!
— Morte abusada — resmunguei caminhando ao lado dos dois com um bico gigante.
Chegamos em um bar à beira da praia e as pessoas estavam fantasiadas. Nem sei como foi aquilo, mas quando olhei, o Douglas estava de pirata, a morte de morte e eu de... padre?
— Por que eu virei um padre? — Perguntei com uma careta quando Douglas ria da minha cara.
— Em sua primeira redação na escola você disse que queria ser um padre, só realizei o desejo — respondeu a morte.
— Coé, eu não me lembro de querer ser um pirata.
— Você queria ser uma fada — a morte deu de ombros.
— Alá a sininho, eu sou uma fadinha e balanço minha varinha — provoquei aos risos.
— Mata ele logo, eu nunca te pedi nada — disse o assaltante com as mãos unidas.
— Aproveita que ele tá de pirata e manda pra terra do nunca — pedi com um sorriso debochado apontando para o assaltante com as mãos.
Entramos no quiosque que apesar de lotado, o homem de preto conseguiu uma mesa sem muitas dificuldades. Nos sentamos e ele foi até o balcão buscar bebidas, e foi aí que meu assaltante virou meu parceiro de fuga...
— Temos que ser rápidos, o cara não está para brincadeira.
— Está tentando fugir? — Perguntei olhando pro homem de preto que conversava no balcão.
— Tem uma ideia melhor?
— Ele é a morte sua anta, vai atrás da gente, pirou de vez?
— Então seu jegue, o que que a gente faz?
— Eu não sei, jumento, mas enganar a morte não me parece uma boa opção.
— Vou arrancar essa folha — ele agarrou a caderneta da morte que estava sobre a mesa e rasgou a folha, que foi substituída imediatamente por uma nova. — E agora o que é que a gente faz?
— Eu não sei — falei com cara de choro.
— Bora embebedar a morte e sumir com essa caderneta.
O homem de preto voltou para a mesa e começou a beber, não demorou muito tempo e estava descendo até o chão animando a garotada. Tocava umas músicas diferente, atropelada, eu que sou caipira tendi foi nadinha. O Douglas disse que era um tal de beatbox e ficou ainda mais estranho quando começou uma batalha de um trem chamado break aonde a morte dançava de cabeça para baixo rodando no chão com as pernas pro ar desafiando o outro rapaz. Carnaval de cidade grande é esquisito demais, na praça da igreja eu escutava era uma tal de Cabeleira do Zezé, e ali era umas música doida igual aqueles filme estrangeiro.
Aquela disputa foi longe, e cada vez que a morte perdia, um nome novo aparecia no topo da lista. O ceifador era rancoroso e vingativo, percebi que a coisa estava saindo do controle e não fazia ideia do que fazer. A hora foi passando, e o Douglas começou a cheirar um pó branco que eu não aceitei, mas o bagulho era forte porque a morte ficou doidona cantando aquelas músicas cheias de palavrão, me chamando para dançar o créu e quadradinho de oito. Eu nem sabia que o quadrado tinha oito lados, menos ainda que a morte rebolava.
"Só as cachorras... Vem Tonico!"
— Seu morte, o senhor já bebeu muito, vai passar mal — tirei um copo cheio de alguma coisa verde da sua mão.
O Douglas caiu na gandaia e duvido que se lembrava de seu plano de se livrar da morte, e eu, que nunca pulei carnaval, virei babá do homem de preto.
— Não pega bebida de estranhos, homem — eu falava enquanto a morte pulava e dançava abraçada comigo.
O negócio ferveu com aquelas músicas, e a morte iniciou um trenzinho que só foi crescendo, ninguém percebeu que um bando de fiduma jeca fez a limpa nas mesas, meu celular desapareceu, nem a caderneta da morte perdoaram. Pelo menos agora estava livre, eu acho.
— Vem Tonico! — Douglas me agarrou pela cintura e virei mais um vagão naquele trem doido, que agora vagava pela praia cantando marchinha de carnaval. Sei nem como aconteceu, mas quando dei por mim, o trem descarrilhou e foi todo mundo parar no mar. Era uma gritaria que só, eu só fui empurrado não sabia nadar no mar, malemá no rio de água calma, engoli tanta água salgada que se tivesse pressão alta morria de derrame.
— Aaaaaa — afundei. — Mããããããe! — Era água no zóio, no ouvido, em tudo quanto é buraco, lá foi eu outra vez jogado de um lado pro outro. Os outros conseguiram sair, mas eu que sou azarado fui cada vez mais pro fundo.
— Bate os braços, Tonicoooo.
Em meio a toda aquela bagunça, ouvi uma voz feminina e vi uma moça de vestido azul e cabelo preto longo caminhando sobre as águas.
— Que issoooooo!
Me apavorei com aquela mulher vindo em minha direção, me batia e gritava tentando fugir, mas a água era mais forte não me deixava avançar.
— Você dá trabalho, hein, meu filho, fica de pé.
A moça me pegou pelo cabelo e me fez levantar. A água não passou da minha cintura, mas as pernas estavam tão bambas que desmoronei outra vez, quase levando a dona comigo. Ela me arrastou pela camisa até a areia, me largou desabado no chão e voltou pro mar onde sumiu logo adiante. Custei a acreditar, mas caramba, eu fui mesmo devolvido pela Iemanjá?
— A coisa está feia pro seu lado Tonico, nem a mãe das águas te quis — o homem de preto ria da minha situação.
— Eu cansei dessa vida, me leva seu morte, esse negócio de tô vivo, tô morto, ou tô fugindo de morrer, não é pra mim.
— Para de drama — a morte estalou os dedos e lá estava eu dentro do fusca na fronteira da cidade, ao lado de uma ribanceira. — Você é um bom homem, Tonico, não tentou me enganar, por isso vou te dar uma chance.
— Uma chance, então eu não vou morrer?
— Você tem um ano para curtir a vida e se redimir, um ano Tonico, e eu volto para o tudo ou nada.
— Mas seu morte...
Quando me virei estava sozinho no carro, olhei ao meu redor e não tinha ninguém, sequer do lado de fora. Mexi no porta luvas para ver se tudo aquilo não era loucura da minha cabeça, mas lá estava o envelope da Suzana, e quando abri, quase caio de costas com a quantidade de nota de cem que tinha dentro. Desci do carro com aquele envelope na mão, não sabia o que fazer, nem sei como ela fez aquilo, mas ali tinha muito dinheiro, o suficiente para passar um bom tempo, mas será que eu merecia aquilo?
— Me dá uma carona moço?
Assim que olhei pro outro lado, vi uma moça loira fazendo sinal, mas o que me arrepiou os cabelos, foi que ao seu lado tinha uma cruz antiga, fincada no chão como se estivesse ali a muito tempo. Me arrepiei todinho, entrei no fusca e bati em retirada, vai que é outra doida querendo voltar pro carnaval, eu é que não ia ficar ali para descobrir...
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