Até que o dia amanheça
Nas minhas andanças pelas estradas da vida, muita coisa estranha me aconteceu, mas o mais esquisito, foi um tal de Halloween. Sei nem falar esse nome difícil, deve ser coisa lá do estrangeiro, mas, para não ficar com rodeio, vou contar esse causo que me aconteceu quando peguei um serviço lá em Socaporva, uma cidade pequena pras banda da divisa do Brasil com o Paraguai...
Eu lembro como se fosse hoje, era dia de sexta feira, noite quente do fim de outubro, o prefeito Jurupinga para homenagear sua sogra, resolveu fazer um concurso para esse tal de dia das bruxas, isso é que é genro carinhoso!
A cidade parecia mal assombrada, tinha uns bicho cabuloso na frente das casas, teia de aranha no jardim, umas abóbora iluminada, e gente com aquelas fantasias medonhas pra participar da festa na praça central. Todo mudo ia, mas minha mãe sempre disse que eu não era todo mundo, então fui trabalhar para pagar as bugigangas que ia comprar no Paraguai e seguir meu rumo com meu fiel companheiro poisé, o fuscão vermelho que ganhei no bingo da igreja.
— Povo festando e a gente aqui na labuta — disse Fernando, meu colega de serviço acendendo um cigarro.
Eu peguei um bico em uma distribuidora de bebidas que funcionava do lado de um posto de gasolina, não ganhava muita coisa, mas até que dava pro gasto...
— Tenho é medo dessas festas, esse povo todo fantasiado dá nem para saber quem tá vivo, ou quem tá morto — me benzi arrepiado.
— Pois eu me sinto é muito vivo — Fernando deu uma risada suspeita quando uma moça fantasiada de bruxa com uma saia curta veio em nossa direção.
— Moço tem um isqueiro? — ela me apontou um cigarro.
Eu olhei aquela coisinha linda, toda vestida de preto com a barriga de fora, e sorri feito um bobo.
— Ele não fala? — Ela perguntou ao Fernando que estava saindo para fazer entrega.
— Nunca deve ter visto uma japonesa de olhos verdes — ele respondeu acendendo o cigarro da moça.
— Tailandesa — ela corrigiu. — Minha mãe é tailandesa, e meu pai alemão, aí saiu essa mistura.
— A moça não devia fumar, faz mal à saúde — falei atrapalhado.
— Minha avó nunca botou um cigarro na boca e morreu de câncer, então, foda-se — ela me mostrou o dedo do meio e saiu pra perto de um povo que abastecia o carro ali do lado.
— Podia ter dormido sem essa Tonico — Fernando zombou de mim saindo com a moto.
— Eu, hein, esse mundo tá perdido mesmo — falei voltando ao trabalho.
— Só até amanhecer o dia — disse um homem de preto de olhar estranho que fumava ali perto.
— Oi? — Perguntei confuso.
— É dia das bruxas, meu jovem, o sobrenatural anda livre por aí — jogou o cigarro no chão e apagou com o pé. — Você só precisa estar no lugar certo.
— Credo em cruz! — Fui logo me benzendo.
Ele disse umas palavras em uma língua que não entendi, mas me arrepiei todo.
"Aquele homem estranho piscou pra mim?", pensei amedrontado, quando ele foi embora abraçado com uma mulher vestida de anjo.
— Tonico, eu preciso que entregue umas bebidas em uma fazenda na saída da cidade — disse meu patrão. — O Fernando vai demorar, mas é uma entrega especial, você pode ir com seu carro?
— Conheço nada aqui não, mas a gente tenta, patrão — falei prestativo.
Seu Gerso era um homem bom, desenhou o caminho em um guardanapo e me deu. Eu enchi o fuscão de caixa de cerveja e saí para a entrega especial, só não sabia que a danada da fazenda ficava numa estrada deserta e muito escura; era uma acelerada e duas benzida só não dirigi de zóio fechado porque não tinha jeito...
"Se as águas, do mar da vida..."
Eu cantava para espantar o medo, olhava nem pros lados; o fiofó trancou de um jeito que só vendo quando cheguei na fazenda que era cheia de árvores cercando aquela casa velha com cara de assombrada. Uns cachorro que parecia um bando de lobisomem, latia e uivava no meio da mata, e se até os bicho queria distância daquele lugar esquisito, eu é que não ia ficar ali.
— O de casa! — Eu bati na porta, mas ninguém abriu. — Eu trouxe a bebida, tem alguém aí?
— Nos fundooos... Uma voz sinistra sussurrou em meu ouvido.
— Puta que pariu moça, faz isso não!
Quase tive um treco quando me viro e dou de cara com a moça do zóio apertadinho lá dos estrangeiro.
— Não deveria levar susto, dizem que faz mal à saúde.
Ela saiu cantarolando uma música que não entendi, e fez um sinal com a cabeça para que a seguisse. Achei aquilo esquisito, mas obedeci, só queria deixar a encomenda que era meu serviço e ir embora. Entrei na casa pela porta dos fundos onde tinha mais um casal e outro rapaz na cozinha, mas, se aqueles filhos da peste estavam no posto, por que me fizeram ir até lá?
— Me ajuda a colocar no freezer fazendo um favor? — Pediu a moça.
— Samara, essa casa é incrível, você tem que ver lá em cima — disse a outra moça com uma fantasia estranha.
— Um lugar bem legal para fazer uma festa no dia de hoje — falei terminando de colocar a bebida no freezer quando ficamos sozinhos.
— Samara — ela me estendeu a mão.
— Tonico — estendi a minha.
Quando apertei sua mão, foi como se o mundo girasse várias vezes. O vento fechou a porta e a luz se apagou me causando um arrepio gelado que levantou até os cabelos do meu zóio.
— A conversa tá boa, moça, mas eu vou embora — tentei abrir a porta, mas parecia trancada.
— O que você fez?! — Ela gritou me batendo.
— Tá doida, eu não fiz nada!
— Devolve meu corpo!
A luz se acendeu e dei de cara comigo mesmo tentando me bater.
— Que isso! — Dei um grito fino.
— Por que você sou eu?
— Eu não sou você, digo, sou, mas não sou, eu não era e... Caramba, eu tenho peitos! — Falei confuso levando a mão até dois montes que nunca estiveram ali.
— Tira a mão dos meus peitos, seu depravado!
— O que está acontecendo aqui? — Perguntou um rapaz vindo apressado.
— Ele roubou meu corpo.
— Eu só vim entregar bebidas e agora tenho um par de peitos e visto saia — falei olhando para minhas pernas.
— Você cheirou sem mim? — O rapaz perguntou apertando meu traseiro.
— Ei tira a mão daí! — Dei um pulo pra frente.
Não sei o que aconteceu, mas eu estava no corpo dela e ela no meu, só que tudo o que um sentia o outro também sentia, e isso não ia prestar porque o rapaz da mão esperta era seu namorado e tava cheio de safadeza pro meu lado.
— Gente vocês tem que ver isso!
O outro casal veio correndo assustado como se tivesse visto um fantasma.
— Que raios é isso? — Perguntou o namorado da Samara entrando no porão onde tinha um salão cheio de coisa estranha com uma estrela pintada no chão.
— Essa casa não é de vocês? — Perguntei assustado.
— Ué, Samara, já fumou uma? — Perguntou a outra moça.
— Então, Lia, eu sou a Samara — disse a invasora do meu corpo. — Ele é o Tonico, parece que trocamos de corpo.
— Que porra, é essa? — A moça olhou assustada para nós.
Tentamos explicar o que não tinha explicação, e foi aí que fiquei sabendo que aquela casa tinha sido invadida e que agora eu também era um invasor.
— Eu vou embora, não quero ser preso.
Tentei sair, mas o namorado da Samara me segurou.
— Acha que vou deixar você sair por aí com o corpo da minha namorada?
— Então manda ela devolver o meu — levantei os braços revoltado.
— Isso é um pentagrama, que irado! Eu acho que a casa era de uma bruxa — Samara parecia animada segurando uma caveira na mão.
— Achei um escrito aqui no altar — disse a tal da Lia. — Ao lado da minha lápide, eu te vigio dia e noite.
— O que isso quer dizer? — Perguntei.
— Aquele quadro — disse o namorado da Lia.
Na parede tinha um quadro de uma mulher sentada em uma sepultura apontando o dedo para algum lugar.
— Tony, tem uma charada aqui — Lia pegou um papel que estava estava dobrado em cima de uma mesinha.
Atrás de uma charada vinha outra, e mais outra, a cabeça já soltava fumaça, já tínhamos cumprido todas as tarefas e nada de achar uma resposta.
— Quem deixou as pistas, não queria que a gente encontrasse — Lia veio apressada. — Ao lado da minha lápide, é o título desse livro que encontrei naquele altar, e a mulher do quadro apontava para ele.
— Eu te vigio noite e dia — disse o namorado dela. — É isso, a mulher vigia o livro.
Não lembro do tempo ter virado para chuva, mas começou um temporal do lado de fora, e os clarões na janela deixavam o lugar ainda mais horripilante. Aquela casa assombrada parecia que tinha vida, uns quadro de gente feia me encarando, celular não funcionava, as portas não abriam, janelas, nada. Mas enquanto não pegasse meu corpo de volta, não ia sair dali, então como diz o outro; não fazia diferença. A bendita da Samara não tinha um pingo de juízo na cabeça, fiquei quase doido com ela fumando um trem que me deixou tonto, e ficou ainda pior quando achou uma garrafa com uns negocio esquisito dentro do armário e virou no gargalo.
— Eu vou ao banheiro — disse ela subindo as escadas.
Era estranho me ver andando pra longe de mim, e mais estranho ainda, foi quando comecei a sentir uns trem que eu conhecia muito bem...
— Tira a mão daí — cruzei as pernas tentando disfarçar.
— O que está acontecendo? — Perguntou o namorado da Samara, que pelo jeito estava no banheiro brincando com meu corpo.
— Sua namorada é muito curiosa — me contorci outra vez. — Eu preciso tomar um ar.
— Ah, caramba, ela tomou uma poção altamente afrodisíaca — Lia analisou a garrafa e todos olharam pra mim.
— Vou ver como ela está — disse o namorado. — Não tirem os olhos dele.
Eu queria disfarçar, mas a doida não colaborava. Suava frio fazendo careta, tentei pensar nos boletos vencidos, no dia que tive virose, mas nada adiantou. Comecei a respirar acelerado e ficou ainda pior quando senti outro par de mãos alisando meu corpo.
— Tá tudo bem Tonico? — Perguntou a Lia, me olhando desconfiada.
— Eles... misericórdia!
Não consegui falar nada só me contorcia no sofá, morto de vergonha com aqueles dois me olhando daquele jeito. O casal resolveu brincar de médico no banheiro enquanto eu sentia tudo naquele sofá, o problema é que me lembrei de que o corpo dela estava comigo.
— Se inverter a situação eu tô perdido! — Subi correndo as escadas tentando achar a porta do banheiro, mas a coisa estava tão quente que era um passo e duas encolhidas.
Com muito custo cheguei na porta do banheiro e bati apavorado...
— Devolve meu corpo, e tira a mão daí — me encolhi outra vez. — Não roça essa barba do meu pescoço! Ai, cuidado com esse dedo!
Lia e Tony vieram correndo e me encontraram encostado na parede com cara de tonto respirando ainda mais acelerado enquanto sons daquela senvergonhice faziam eco pelo andar de cima.
— Não espreme minhas... — Desculpa — falei ao lembrar de que não estava sozinho. Roça aí não, socorro!
— Isso é constrangedor — disse o namorado da Lia tapando os olhos da moça, mas como eu ia controlar aquela situação?
Foi estranho me ver saindo do banheiro depois de tudo o que escutamos do lado de fora, mas meu estado de moleza não me deixou reagir, mal consegui enxergar o quadro pendurado na parede, que me fez reconhecer aquelas pessoas. Era o mesmo casal da conveniência, e por mau dos pecados, parecia estar com a mesma roupa.
— Eu conheço esses dois — apontei para a parede.
— São os donos da casa — explicou Lia, abrindo o livro. — Tem fotos deles aqui, e diz que a casa se fecha para os mortais na noite do dia das bruxas e só abre quando sai os primeiros raios de sol, ou seja, estamos presos aqui.
— Eu não vou ficar o resto da noite com esse casal tarado usando meu corpo — saí revoltado tentando abrir as janelas.
— Não adianta Tonico, aqui diz que é um encanto inquebrável, só vamos sair quando o dia clarear — Lia balançou o livro no ar.
— Pois estou me divertindo muito — disse Samara descendo as escadas. — Nem sei se quero meu corpo de volta.
— Nem brinca com isso — desci correndo atrás dela. — Esse corpo é meu, e só eu tenho o direito de usar.
— O corpo agora é meu, e se fizer graça, pego você também!
— Aqui está — Lia apontou alguma coisa no livro. — Essa casa foi de uma bruxa que ajudou um casal amaldiçoado. Eles devem ter trazido a gente aqui por algum motivo.
— Eu só vim trazer a bebida que vocês compraram.
— Não compramos bebida com vocês, Tonico, só enchemos o tanque — afirmou Lia e os amigos concordaram.
— O homem de preto — falei arrepiado.
— O que mais diz o livro, amor? — Tony perguntou à namorada.
— Aqui diz, que na noite de halloween, as portas do além se abrem e o sobrenatural caminha sobre a terra. Os demônios ganham força, então, o Arcanjo Miguel manda os anjos para protegerem a humanidade.
— E o que isso tem a ver com a gente? — Perguntou Samara.
— A mais de cem anos, São Miguel mandou um anjo para proteger uma moça, mas o anjo se apaixonou pelo demônio que a atormentava. E como anjos não tem sexo, levado pela luxúria o anjo realizou um ritual com a ajuda de uma bruxa poderosa e na noite de halloween, sequestraram a moça e a prenderam no porão. Foi feito um ritual onde os corpos da humana e do anjo foram trocados, e com isso conseguiram viver sua primeira noite de amor. Mas aquela felicidade não durou muito porque o Arcanjo Miguel desceu pessoalmente a terra, libertou a humana, e puniu seu anjo com o castigo da solidão eterna.
— Cruz credo — me benzi apavorado.
— Tem mais — disse ela. — Aqui na outra página, diz que o Arcanjo prendeu seu anjo nessa casa e lançou um encanto que não permite que o demônio entre, nem ela saia, eles passam o ano todo esperando essa noite que é a única em que é permitido que fiquem juntos. Já nessa outra, explica que quem tem seus corpos trocados, se não conseguir escapar até o amanhecer do dia, fica preso aqui para sempre. É isso que eles querem, que alguém tome o seu lugar, então, o Tonico que não tem maldade no coração representa o anjo, e você, o demônio.
— Faz sentido — disse o namorado da Lia. — Por isso eles não estão aqui.
— Estão, sim, lá na janela — Tamara apontou para o outro lado.
Um relâmpago clareou a casa toda e aquelas sombras na janela fez o povo esticar as canelas escada acima...
— Socorrooooo — gritava um. — Acudaaa. — gritava o outro quando a bruxa apareceu do nada subindo as escadas.
— Aaaaaaaa!
Era gente se benzendo, correndo, caindo, e a bruxa gargalhava aparecendo em vários lugares ao mesmo tempo e depois sumindo.
— Invadiram minha casa, mexeram no meu livro, agora ninguém sai!
Corremos para o andar de baixo outra vez, jogamos panela, cadeira, tudo quanto é coisa na janela e nada de quebrar. Lá vinha a bruxa descendo às escadas cantando uma música estranha com um gato preto na mão. De onde saiu aquele gato?
— Me valha meu anjo da guarda! — Levei a mão até a cabeça em desespero quando vi que o sol já ia nascer.
— Você dá trabalho, hein, Tonicooo! — Uma voz grave fez eco no meu ouvido e uma luz azul muito forte clareou a casa inteira quando o vento gelado abriu a janela. Eu não vi nada, só juntei a Samara pelo braço e corri me jogando pra fora, se era pra morrer, que fosse junto comigo.
— Por que pulou a janela se a porta estava aberta? — Lia veio correndo.
— Eu vou te matar, Tonico, me arranhei toda por sua causa! — Samara saiu irritada do meio dos arbustos.
— Eu voltei — comemorei beijando meus braços. — Eu me amo, fala sério sou muito bonito.
— Olha! — Tony apontou para o sol que nascia.
Quando olhamos para a casa, o anjo estava na janela e o demônio do lado de fora. Os dois não ligaram para nossa presença, ficaram ali parecendo duas estátuas se encarando com tristeza. Eu até que tive dó, eles só queriam ficar juntos, mas como dizia mainha... cada um, com seu cada um. Entrei no meu fusca e saí acelerando sem olhar pra trás, não sabia se ria ou chorava lembrando de minha velha mãe, que dizia, que quando o mal fecha a porta, o bem abre uma janela... ela só não disse que eu teria que pular caindo encima de uma canteiro de rosas cheio de espinhos.
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