Aldeia de água limpa

Era dia de sexta-feira, quando cheguei na aldeia de água limpa e fui recebido pela xamã Apoena, uma indígena de seus setenta anos muito conhecida e respeitada naquela região. A aldeia ficava no meio da mata, bem longe da cidade, então, para visitar, só com autorização do Cacique Arapuã que era muito rígido com suas regras e fazia questão de manter os costumes de seus ancestrais.

Eles viviam da caça e pesca, plantavam seu próprio alimento e contavam com o dinheiro das vendas de seus artesanatos produzidos pelas mulheres da aldeia e vendidos na cidade. Era uma comunidade isolada, que defendia a preservação da natureza e guardava suas terras como se guarda um tesouro de muito valor. O único contato da maioria dos moradores da aldeia com o povo da cidade, era quando recebiam visitas, ou quando alguém precisava de tratamento de saúde, ainda assim, poucos falavam a nossa língua e ninguém tinha permissão para entrar nem sair da aldeia sem motivo.

— Hum, não é bom, Tonico muito carregado, energia pesada — disse a xamã quando me sentei à sua frente.

— Misericórdia, a coisa é tão feia assim? — Perguntei assustado.

A xamã fechou os olhos e começou a falar uma língua estranha, eu não sabia se ficava, ou se corria. Suava frio tentando segurar a dor de barriga que já sentia quando ela deu um suspiro profundo e me encarou...

— Tonico conseguiu abrir uma porta muito perigosa e agora anda perturbado.

— Eu sou perturbado desde que nasci — respondi quando ela despinicava um galho de guiné em uma cuia.

— Não brinca com Apoena — ela bateu com o galho em minha cabeça. — Porque saiu da tua terra?

— Eu saí porque o marido da dona Sônia queria me matar.

— Hu, hum, nada bom — a idosa balançou a cabeça vendo alguma coisa dentro daquela cuia, mas tentei olhar e só tinha água verde e umas folhas boiando igual eu.

— Se eu abri alguma porta, então foi do manicômio porque minha vida virou uma loucura de uns tempos pra cá.

— Isso acontece com algumas pessoas que voltam do mundo dos mortos — disse a xamã.

— Ara, mas aquilo não foi sonho? — Perguntei arrepiado.

— E se for verdade?

— Acho que não gostei dessa conversa.

Ela fez algum sinal com o dedo em minha testa repetindo umas palavras naquela língua diferente, não me atrevi a perguntar, só baixei a cabeça e esperei o resultado.

— O pai da mentira está de olho no Tonico, fica esperto ele gosta de testar as pessoas.

— Credo em cruz — me benzi apavorado.

A xamã me arrudiou fazendo umas rezas e balançando um chocalho que fazia um barulho gostoso de ouvir, mas eu só conseguia pensar no coisa ruim me perseguindo.

— Tonico tem que enfrentar seus fantasmas, mas Apoena vai preparar o caminho.

— Dá pra pular esse caminho não? É que assim... eu não sou muito corajoso se puder pegar um atalho.

— Tonico abriu porta, Tonico fecha — ela bateu outra vez em minha cabeça, só que agora, com um galho de arruda.

"Se ela pegar aquela espada de São Jorge eu juro que fujo daqui", pensei quando a indígena se afastou.

Depois daquela conversa, eu fui levado para um lugar redondo feito de barro onde só tinha uma cama de palha, uma mesinha com ervas, uma bacia de alumínio bem grande e um corote de água, que parecia aquele forno à lenha que minha mãe tinha em casa, só que bem grande.

— Apoena vai deixar Tonico sozinho um pouco, depois Indaiá vai ajudar com o banho de erva — disse a xamã, me entregando um tanga estranha que quando coloquei parecia uma fralda.

"Que nenhuma moça me veja com essa tanga frouxa", pensei, sentindo os trem tudo solto lá embaixo.

Quando a porta se abriu outra vez, eu vi a imagem mais linda da minha vida; uma moça de cabelos bem compridos, cocar na cabeça, corpo pintado e um saiote de palha misturada com pena. Um trenzão bonito que só vendo, o coração disparou na hora, até esqueci que estava com aquela ceroula de vó.

— Indaiá ajuda Tonico com o banho — ela fechou a porta, pegou em minha mão e me levou até aquela bacia onde fiquei em pé enquanto jogava água gelada misturada com umas folhas em minha cabeça falando uns trem enrolado.

— Será que isso vai dar certo?

— Tonico tem que ter fé — ela passava aquele galho de arruda pelo meu corpo e eu não sabia se me arrepiava, ou me encolhia. Pensa num homem que sente cócegas. — Agora Tonico tira tudo, Indaiá precisa pintar.

— A moça tá viva né?

— Indaiá não entende.

— Esquece — falei tirando aquela tanga feia e tapando o toniquinho com a mão.

— Abre os braços, Indaiá precisa pintar braço e barriga de Tonico — disse ela colocando um saiote de palha ao redor da minha cintura.

— Abri os braços e fechei o olho, precisava me concentrar muito se não quisesse passar vergonha na frente daquela coisa linda que pintava meu corpo sem pressa. Êta que foi uma tortura danada, nunca suei tanto depois de um banho.

— Agora Tonico pronto para noite de boas vindas — disse ela, depois de colocar um cocar em minha cabeça.

Eu acompanhei Indaiá até o lado de fora onde fiquei de prosa com o cacique que me contou a história da aldeia e de como passavam dificuldade para manter as tradições com tanta influência do homem branco. A nativa que balançou meu coração era sua filha, e estava prometida para Apingorá, o principal guerreiro da tribo, mas pergunta se eu conseguia tirar os olhos dela, foi amor à primeira vista.

— Tonico toma ayahuasca? — Perguntou o cacique me oferecendo um chá de cheiro diferente.

Eu não sabia o que era, mas aprendi desde criança, que quando um nativo te oferece alimento, ou bebida, é ofensa recusar.

— Tomo sim — peguei aquela cuia na mão e virei de uma vez, que é pra não estranhar o gosto.

O trem era tão forte que não demorou nadinha e o mundo começou a girar. Primeiro achei que ia morrer, depois que já tinha morrido, tentava firmar o zóio e tava tudo duplicado. Aquilo até que foi engraçado, senti um siricutico que não sabia de onde vinha, mas era bom demais da conta, um fogo misturado com alegria que me deu até vontade de dançar.

— Uiuiuiui!

Eu batia na minha boca dançando em volta da fogueira como naqueles filmes que assistia quando criança. Sempre quis fazer aquilo e agora me divertia criando minha própria coreografia. Não sei o que tinha naquele chá, mas minha alma saiu do corpo, e foi ainda pior quando tomei o segundo gole...

— Tonico meu amor, eu vim te buscar!

Olhei lá adiante vi a Luna, a loba tarada do bordel da cumacanga acenando pra mim.

— Ele vai comigo — do outro lado, Suzana na sua versão Maria sangrenta.

— Que marmota é essa? — Pisquei várias vezes e vi a morte dançando em volta da fogueira.

Tentei correr e acabei tropeçando em meu próprio pé, só não caí porque a vampira Verônica me segurou.

— Eu disse que não ia desistir de você, Tonico.

— Credo em cruz! — Dei um grito fino e saí catando cavaco.

Corria para um lado dava e de cara com seu Jair. Corria pro outro e o touro do rodeio me encarava, fui pedir ajuda pro cacique e dei de cara com a morte, e, quando pensei que tinha visto de tudo, a tribo inteira parecia os zumbis daquele vídeo clipe do Michael Jackson. Nem a xamã que ia me ajudar a fechar a porta assombrada se salvou, agora mesmo é que eu tava perdido de vez.

— Aqui Tonico!

— Socorrooooo! — Eu gritava correndo de um lado pro outro.

— Rápido Tonico, aqui!

Olhei lá adiante na boca da mata, e vi Indaiá acenando pra mim. Não pensei duas vezes, mirei a reta e fui na fé.

— Corre! — Ela foi na frente abrindo caminho, e se o nativo correu, eu é que não ia ficar.

Era assombração de um lado, morto vivo de outro, e todo mundo querendo me pegar. Me senti aqueles cantor sertanejo em dia de show que coloca aquelas calça apertada que pra entrar só com vaselina, a diferença é que eu estava de saiote de palha.

— Que lugar assombrado é esse, moça?

Agora mesmo é que eu vi que estava em um filme de terror. O mundo acabando, um monte de bicho estranho saindo de tudo quanto é buraco, e ao invés de continuar fugindo, a doida me empurrou contra uma árvore e lá estava eu beijando a prometida do guerreiro, que com certeza me mataria depois disso.

— Espera — dei uma olhada geral na moça pra ver se não tinha nada de diferente. — Tá normal. — Eu ia morrer mesmo, porque não tirar uma casquinha?

Grudei no beiço dela outra vez e já aproveitei para dar umas apalpadas que não sou besta. Eu corria, beijava e voltava a correr, até que ganhei uma distância segura.

— Tenho que voltar e pegar o fusca, aí a gente consegue sair daqui — falei escondido atrás da árvore. — Indaiá?

Quando olhei para a moça que não me respondia, dei um grito e caí de traseiro no chão. A mulher estava de quatro se contorcendo e fazendo uns barulho estranho. Seus olhos brilhavam em um tom de amarelo, pelos cresciam em seu corpo e dentes afiados apontavam em sua boca.

— Foge Tonico! — Ela pediu soltando um esturro ainda mais alto virando uma onça criada.

— Aaaaaaaaa! — Eu até tentei correr, mas as pernas não ajudavam.

Aquela onça cheia de dentes veio pro meu lado, eu gritava e rezava ao mesmo tempo que corria tropeçando em morto vivo, caía, levantava, e pernas pra que te tenho. Quanto mais tentava correr, mais dificuldade eu tinha de sair do lugar, não ia nem a pau, era como se meu corpo pesasse e ela só chegando perto. Subi em uma árvore achando que era seguro, mas a fera subiu atrás de mim, nem sabia que onça subia em árvore.

— Puta que pariu, agora eu vou morrer!

Eu na copa da árvore, a onça no meio, e os mortos em baixo, fazer o quê, apelei pra santidade...

— Me valha meu anjo da guarda!

Um barulho muito alto estremeceu tudo a minha volta, levei um susto danado quase que despenco lá de cima. Olhei lá adiante uma luz azul que vinha em alta velocidade e baixou no chão fazendo sumir todos os mortos, mas a onça ainda subia doida pra me comer.

— O seu anjo, eu não quero morrer — falei quase chorando.

O anjo colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça...

— Você dá trabalho, hein, Tonico?! Pula daí.

Se fosse outro mandando eu não pulava, mas era a santidade lá das nuvens, então fechei o zóio e me joguei.

— Aaaaaaaaa!

Eu desci em câmera lenta enquanto um filme da minha vida passava a minha frente pela milésima vez em minha curta existência. Sempre fui mulherengo, mas nunca uma pessoa ruim, então, talvez ganhasse um desconto com a divindade.

— Se for a minha hora, então eu to pronto — fechei o olho antes de chegar no chão.

Acordei assustado e me senti aliviado quando vi que estava vivo dentro do meu fusca. Não sei como cheguei ali, mas ainda estava na aldeia que já acordava para um novo dia.

— Chega de passar sufoco, eu vou pra minha casa! — Liguei o carro e saí acelerando sem olhar pra trás.

Desde que saí de casa, só levei a pior, estava cansado de viver fugindo e decidi enfrentar meu destino, nem que pra isso tivesse que ficar de frente com seu Jair e sua espingarda vingativa.

— Simbora meu poisé! — Gritei acelerando por aquela estrada de terra no meio da mata. Mas isso foi antes de avistar aquela indígena linda encostada em uma árvore.

"Será que dá tempo de tirar uma casquinha?"

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