Capítulo 56 - Entre monstros e demônios

Pela primeira vez desde sempre, uma coisa nova.

Antes do universo, só havia duas coisas. O acaso e o desígnio. Ambos eram regidos por entidades do mais alto grau da esfera da existência Arcana, que se chamavam de Inominados. Uma delas era o caos, uma coisa velha e idiota (odiada pelo acaso) que nunca saía do centro do Todash.

O acaso achava que talvez o caos estivesse morto, tivesse morrido há um bilhão de eóns atrás mais ou menos. Mesmo se não estivesse, era uma coisa velha e idiota, e mesmo que o caos tivesse vomitado o universo inteiro, isso não mudava sua idiotice. O acaso veio para este outro lado bem depois que o caos criou uma fenda, para fora da barreira que contém a Escuridão Todash, e o acaso descobriu uma profundidade de imaginação para além da barreira que era quase nova, quase “digna” de atenção. Essa qualidade de imaginação, sonhos, determinação, força de vontade e desejos deixava os “alimentos” muito mais… suculentos.

Antes, o acaso não havia forma, era apenas parte de algo maior. Muito maior. Tão grande quanto o universo. Se duvidar, de tamanho infinito. Parte de forças e entidades para lá de conceitos básicos como bem e mal, ordem e caos, vivo e morto, igual ou oposto. De uma parte que era infinitamente maior do que os menores e infinitamente menor do que os maiores.

Após encarnar num corpo “físico” deste lado da barreira, criou dentes que destroçavam carne dura de tantos terrores exóticos e medos voluptuosos: eles sonhavam com animais noturnos e lamas em movimento; contra a própria
vontade, eles contemplavam abismos infinitos.

Com esse alimento suculento, o acaso  existia em um ciclo simples de acordar para comer e dormir para sonhar. Ela criou uma forma sua própria imagem, redemoinhos de puro ódio e malícia, de aparência asquerosa e sombria. O que havia no universo era seu abatedouro, e os mundos as ovelhas. As coisas seguiram em frente.

E então… essa princesa.

Uma coisa nova.

Pela primeira vez desde sempre.
Quando o acaso surgiu naquela floresta pretendendo matar todos eles, aqueles primeiros adoradores de uma seita, os adoradores do caos.

Um pouco insatisfeito por já não ter conseguido fazer isso (e sem dúvida essa insatisfação foi a primeira coisa nova), aconteceu uma coisa totalmente inesperada, completamente impensada, e houve dor, dor, uma dor terrível por toda a forma que ele assumiu, e por um momento também houve medo, porque a única coisa que o acaso tinha em comum com o desígnio velho e idiota e com a cosmologia do macroverso fora da esfera arcana que era esse universo era apenas isso: todas as coisas vivas precisam se submeter às leis da forma que habitam. Pela primeira vez, o acaso percebeu que talvez a habilidade que tinha de se tornar visível e invisível, possuir corpos e entre outros poderes também pudesse funcionar contra ela. Nunca tinha havido dor antes, nunca tinha havido medo antes, e por um momento o acaso achou que pudesse morrer — ah, sua cabeça ficou tomada por uma dor enorme e prateada, e ele rugiu, gritou e berrou, e de alguma forma aquela princesa escapou. Como aquele rei… mas agora, ele estava morto. Mas sempre o sangue real estava lá para lhe impedir.

Ela tinham entrado no domínio do acaso, uma guerra por um poder de fora da existência, de um lugar para além de qualquer outro, um pedaço físico da Escuridão Todash. Seis mortais tolos andando pela escuridão sem luzes e sem armas. O acaso as mataria agora, sem dúvida. Não há mais Terramarinos. Não há mais Guardiões Espectros. Não há mais a aliança. Não há mais caçadores. Não há mais Cavaleiros Templários. Não há mais a aliança de Nibelungos.

Ele fez uma grande autodescoberta: não queria mudanças nem surpresas. Não queria nunca coisas novas. Só queria comer e dormir e sonhar e comer de novo. Devorar mundos era seu instinto. Depois da dor e daquele breve medo intenso, outra nova emoção surgiu (assim como
todas as emoções genuínas eram novas para o acaso, embora o acaso fosse um grande sufocador e assassino de emoções): raiva. Ele mataria esses mortais porque eles lembravam, por algum acidente incrível, aqueles que já feriram o acaso. Mas ele faria com que elas sofressem primeiro porque por um breve momento fizeram o acaso ter medo deles. Uma pequena possibilidade de receio de seus planos fossem frustrados denovo.

“Venham até mim então”, pensou o acaso, prevendo a aproximação deles. Prevendo o fim deles. “Venham até mim, mortais, e vejam como os antigos jamais devem ser interferido”. Mas havia um pensamento que se insinuava, não importando o quanto o acaso tentasse afastá-lo. Era simplesmente o seguinte: se todas as coisas fluíam do acaso (como faziam desde que o desígnio criou o universo e se recolheu para a Escuridão Todash), como alguma criatura deste mundo ou de qualquer outro podia enganar o acaso ou machucá-lo, mesmo que brevemente ou de forma ineficiente? Como isso era possível? E assim, a última coisa nova ocorreu o acaso, não uma emoção, mas uma especulação fria: e se o acaso não estivesse sozinho, como ele sempre acreditou? E se houvesse Outros? E se esses mortais fossem agentes de outras coisas?

E se… e se…

O acaso começou a tremer.
O ódio era novidade. A dor era novidade. Ser contrariado em seus objetivos era novidade. Mas a coisa nova mais terrível era esse medo. Não medo de mortais e magia simplórias, isso passou, mas o medo de não estar sozinho.

Não. Não havia outros. Sem dúvida que não. Talvez por serem mortais, a imaginação deles tinha um certo poder puro que o acaso havia rapidamente subestimado. Mas agora que eles estão chegando, o acaso deixaria que viessem. Eles chegariam, e o acaso jogaria um a um na Escuridão Todash… nos confins das bocas delas.

Sim.

Quando eles chegarem aqui, quando o momento chegasse, o acaso os jogaria, gritando e insanas, dentro das bocas das piores existências da Escuridão. Onde nem mesmo o inferno ou o pesadelo teria coragem de criar ou abrigar tais seres…

★★★

A lua Éris reinava majestosamente no céu como sendo a única lua daquela noite. Seus raios azuis projetavam-se para Evânia como algo quase divino. Seus feixes adentravam suavemente a sala do trono e iluminava suavemente o grande salão. Havia poucas nuvens no céu e a temperatura havia caído drasticamente, sinal de que o inverno evaniano estava próximo.

-Restaurar a soberania de Henry e fazer as pazes com a princesa Zafira! É a única maneira de evitar a guerra! -disse Selena, em confronto com Leore. Ela estava muito irritada ultimamente com as ações de seu irmão.

No meio do grande salão, havia uma enorme e comprida mesa de jantar. Havia de tudo: porco assado, bebidas como sucos e jarras de água doce, e aperitivos.

-A guerra é necessária -disse Leore calmamente. Ele estava sentado no trono de forma confortável, enquanto ele revirava a coroa de seu pai nas suas mãos.

-Sua querida amiga, a princesa Zafira, pelo o que eu sei, ela deseja muito mais que isso -disse Eustass Vega. Ele estava mais afastado do trono, ele estava de pé diante da janela de vidro, enquanto lia um livro de capa marrom. -Ela não vai descansar até que sua vingança esteja completa.

-Creio que não tenha entendido a intenção dela. Ela preferia evitar a guerra. -Rebateu a princesa.

-Você ainda é muito jovem, Selena. -Disse Leore calmamente.

-Eu presumo que está além da sua vista!

-Então vamos dar uma olhada mais de perto. Marechal Slyter. Eu teria que buscar a Princesa Zafira e decidir se ela faz uma proposta de paz ou de guerra? Seu dever é ser os olhos do Império.

Marechal Slyter que até o momento estava de pé na entrada da sala, imóvel e em silêncio. Se aproximou do trono a passos largos. Sua armadura rangia a cada passo pesado.

-Eu devo vigiar a guerra. Não importa o que for escolhido, eu estou pronto para segurar a espada. -Sua voz soava metálica e robótica debaixo de seu elmo. -É o seu desejo, majestade?

Selena rangeu os dentes e franziu as sobrancelhas.

-Não vai chegar a esse ponto, eu tenho certeza. Eu tenho fé nela… em vocês dois. Principalmente em você, Slyter. Eu aposto toda a nossa fortuna em você.

-Pode ir -disse Leore.

Slyter fez uma continência e se retirou da sala. Selena encarou o irmão com um olhar torto e seguiu o Marechal.

Eustass se aproximou do trono. Ele fechou o livro e disse:

-Tão doce essa criança, é muito difícil de acreditar que é sua irmã.

-Selena é como deveria ser. -respondeu o imperador.

-Ela cresceu bastante quando conseguiu conter a rebelião da casa Mapogo. Essa criança é astuta… Você não a enxerga como ameaça?

-Se ela for, eu devo matá-la também?

-É o seu trono que está ameaçado. Não o meu posto de pesquisador chefe. Se investigar bem, o que impede ela de pedir ajuda aos Mapogos, agora que o senhor dissolveu o conselho?

-E qual membro da casa Mapogo ela irá procurar apoio? Makhulu? Aquele idiota não consegue governar sua casa com firmeza, quem dirá Thiél.

-E enquanto aos outros? Não os vê como ameaça?

-Rasta e Scar não vêem a hora de Makhulu morrer para ambos lutarem pela liderança da casa Mapogo. Pretty Boy e Kinky Tail ainda são imaturos herdeiros que apenas vêem uma pseuda-rivalidade com Selena e a casa Klauss, o que não preciso afirmar que isso apenas existe no mundo imaginário de idiotas. Mr. T pode morrer a qualquer momento, então, com quem devo me preocupar?

As orelhas de Eustass se botaram de pé. Os dois viraram o rosto para a mesma direção, como se alguém falasse com eles.

-Como é? Poderia repetir, Taudaron? Ah! Então quer dizer que morderam a isca? Todos eles? Esplêndido! -Disse Eustass. Ele se virou para o trono. -Os Eminentes deram a princesa a lâmina dos Reis.

Leore deu um leve sorriso e levantou-se do trono. Ele caminhou lentamente até ficar de frente a janela de vidro. Ali, ele tinha uma visão ampla de boa parte da capital imperial.

-Então, os Eminentes a escolheram, para escrever a história como eles bem entendem. Sim… e ela ainda tem um Tesserato novo para ajudá-la.

-Para o inferno os Eminentes e suas pedras malditas! Do que adianta um bom poder se não pode ser aproveitado? São apenas lixo mais adequados para estudo, nada mais. -Respondeu Eustass.

-Conquistamos inúmeros reinos e estamos derrotando dois grandes impérios com esses lixos. Os mesmos o quais avançou bastante nas suas pesquisas.

-Oh, eu sou grato pelo sacrifício. Sem ele, os Zezirites não teriam escapados… uma arma incomparável. -Eustass se virou para o outro lado -Diga-me, Taudaron, eu tenho sido um bom aluno?

A temperatura da sala do trono esfriou. A escuridão havia se tornado mais densa e viva. O silêncio penetrou o salão, que até fazia os tímpanos doerem. Um par de olhos amarelados como ouro surgiram em meio a um turbilhão de ódio e malícia, e uma forma espectral indefinida materializou-se.

-Meu conselho seguiu. Mas devo guiar sua mão para ser capaz -a voz de Taudaron era metálica e robótica, carregada de malícia. -Através do poder do homem, as pedras fizeram você ficar perfeito. Sim. Tanto aconteceu a milhares de anos atrás… e aconteceu a cinco anos atrás… em ambos, foram tão difíceis e infrutíferos. O fervor do homem quebra todos os obstáculos prevalecentes.

-Nossas vidas são curtas. Muito curtas. Você é imortal, pode perder longos séculos, mas receio que não pode mais. -Disse-lhe Eustass.

-Apenas isso. Se tivéssemos mais tempo, poderíamos ter usado mais medidas “prudentes”. -Falou Leore.

-Sua maior obra ainda está diante de você. -Disse o cientista.

-Não acredite que os Eminentes irão permitir que você arranque as rédeas da história de seu alcance. Eruvana não tem as rédeas da história, sentada no trono imortal por tanto tempo? Para a sua ascendência, Leore, eu ofereço a oração. Que você possa alcançar tudo aquilo que é de seu direito. -A imagem fantasmagórica tremulava como uma miragem, mas ao mesmo tempo permanecia imóvel como uma estátua.

Leore encarou a noite fria e mórbida a sua frente. A escuridão primordial e inalcançável estava tão física que ela cercava e sufocava a própria vontade. Um novo sorriso entalhou-se no rosto do jovem imperador.

-Eu vou alcança-lo.

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