Capítulo 52 - A passagem de Helx
A vegetação daquela região subterrânea não se limitava àqueles cogumelos. Mais adiante, erguiam-se em grupos um grande número de outras árvores de folhagem descolorida. Eram fáceis de reconhecer: não passavam de humildes arbustos da superfície em dimensões fenomenais, vegetação pré-histórica como licopódios de cem metros de altura, sigilariáceas gigantes, fetos arborecentes, altos como os pinheiros de grandes latitudes, lepidodendeáceas com ramos cilíndricos bifurcados, arrematadas por filhas longas e eriçadas, de pêlos ásperos, como monstruosas plantas de folhas espessas e carnudas.
-Magnifico! - Sirius só conseguia dizer isso o tempo todo.
-Flora disse que esse era o tipo de vegetação, na aurora de Evânia, numa época de transição -disse Zafira, igualmente maravilhada.
Atrás deles, Gerlon se aproximou.
-Plantas antediluvianas. Os helxianos sabiam escolher bem a vegetação que iria compôr seus jardins e suas florestas naquela época. Uma floresta que sobreviveu ao cataclisma que varreu este reino do mapa.
-Talvez tenha plantas raras por aqui. Plantas que na superfície não exista mais. -disse Zafira.
-Com certeza. Veja essa poeira que pisamos, as ossadas espalhadas pelo chão.
-Ossadas! -Exclamou Sirius - são de animais altadevaneios?
-Antediluvianos? -Corrigiu Gerlon.
Precipitaram para aqueles restos milenares feitos de uma substância mineral indestrutível. Gerlon dominou sem hesitar aqueles ossos gigantescos que mais pareciam troncos de árvores ressecados.
-Olhe esse maxilar inferior, parece ser de um mastodonte - disse Gerlon com um olhar atento - os molares do dinotério, um fêmur que só pode ter pertencido ao maior de todas essas feras.
-Isso está parecendo um museu de peças raras, com as ossadas, com certeza, não vieram parar aqui por causa do cataclisma que assolou este lugar. -Disse Zafira - será que os animais aos quais percebem essas ossadas, viveram às margens deste mar subterrâneo? Tipo, a sombra destas plantas arborecentes…
-As sombras? -indagou Sirius - mais escuro do que já está?
Zafira o ignorou e continuou.
-Estranho…
-O que é estranho?
-Não entendo a presença de bestas quadrúpedes nessa caverna. Por quê?
-Talvez seja das montarias do povo que habitavam por aqui?
-Talvez seja possível explicar isso geologicamente. Provavelmente ocorreram desmoronamentos do solo, sendo que uma parte dos terrenos sedimentares foi arrastada para o fundo do abismo que se abriram durante o cataclisma. -Disse Gerlon
-Deve ser isso mesmo. Mas, se essas regiões subterrâneas foram habitadas por animais antediluvianos, quem nos garante que um desses monstros não está vagando ainda por aí por estas florestas escuras ou atrás destas rochas escapadas? -Disse Zafira, encarando o horizonte, ela sentiu um arrepio subindo sua espinha.
Seus olhos analisaram, sem nenhum temor, os vários pontos do horizonte, mas não havia qualquer ser vivo naquelas costas desertas, apenas Spike saindo do banho de mar e indo ao encontro de Mikka, na praia.
Sirius sentiu o cansaço retornar ao seu corpo. Sentou-se então na ponta de um promontório, sob o qual as ondas se quebravam ruidosamente. Dali, seus olhos abraçavam toda aquela baía formada por uma chanfradura da costa. Ao fundo, um portinho abrigado por duas rochas piramidais. Suas águas calmas dormiam, protegidas do vento. Receberiam com conforto um brique ou duas ou três escunas. Quase esperava avistar algum navio desfraldando suas velas e alcançando o largo sob a brisa que vinha do sul.
Mas aquela ilusão dissipou-se com rapidez. Eram (assim esperava) as únicas criaturas vivas naquele mundo subterrânea após aquelas ruínas que passaram alguns dias atrás. As vezes, quando o vento se acalmava, descia um silêncio mais profundo que o silêncio do deserto sobre as rochas áridas que pesavam na superfície do oceano. Tentava então varar as brumas distantes, rasgar a cortina do fundo misterioso do horizonte. Quais as perguntas que nasciam em sua mente? Provavelmente eram as mesmas das dos outros: Onde terminava aquele mar?
Para onde ele levava? Será que um dia abordariam as margens opostas? Gerlon não tinha a menor dúvida a respeito disso. Ele tinha uma forte motivação interna de chegar a seus destino e para-lo. Custe o que custar.
Sirius desejava e ao mesmo tempo, temia isso. Após quase uma hora de contemplação do maravilhoso espetáculo, tomaram de volta o caminho da praia para voltar a gruta. Sirius adormeceu sob o domínio dos pensamentos mais estranhos.
★★★
No dia seguinte, Sirius acordou completamente curado. Achou que seria saudável tomar um banho de mar, e foi se banhar nas águas daquele mediterrâneo. Não havia dúvidas de que merecia esse nome, e não Gerlon, como ele achava. Voltou bem a tempo para o café da manhã. Mikka e Spike cozinhavam o pequeno cardápio a disposição deles, como tinha água e fogo a vontade, puderam variar um pouco o menu normal. Ao final da refeição, serviram-se de chá, e Sirius nunca havia tomado uma bebida tão deliciosa como aquela com tanto prazer.
Era um chá doce e suave, que descia docemente pela garganta e no final, um gosto de canela e biscoitos encerravam o sabor.
Após terminarem as bebidas e guardarem os utensílios, o grupo se dissipou. Zafira adentrou na gruta para tirar o cochilo, ela sentia seu corpo muito pesado e cansado. Spike permaneceu sentado numa grande rocha, sempre atento e vigilante.
Sirius, Mikka, Gerlon e Flora vagavam pela areia das margens, e as ondas avançavam gradualmente pela praia.
-Como tem ondas aqui, se não tem vento forte suficiente para causar ondas? -Perguntou Mikka.
-As ondas não são geradas por causa do vento, mas por causa da influência de Éris, Haumeua, Makemake, Théia e Draenor. -Disse Gerlon para a garota.
-Então, influência das luas são sentidas até aqui?
-Por que não? Os corpos não estão sujeitos em seu conjunto a atração universal? Essa massa de água não pode fugir da regra geralmente assim, apesar da pressão atmosférica em sua superfície, você vai ver como ela se ergue como o Thétis Norte e o Mar das Brumas. -Respondeu Gerlon, encarando o horizonte.
Sirius e Mikka pareceram confusos. Não tiveram uma educação tão boa e avançada quanto aquela nos tempos de escola.
-Certo, agora traduz - disse Sirius.
-A maré está subindo. -Respondeu o pirata.
-Então… essas águas são lar de peixes e outras bestas desconhecidas?
-Não vimos nenhum até agora.
-Podemos tentar pescar -disse Flora - podemos fabricar linhas e ver se o anzol teria sucesso aqui quanto na superfície.
Caminharam por mais alguns metros em silêncio. Até que algo veio na mente de Sirius.
-Agora eu me lembrei, aqueles aparelhos estranhos, os instrumentos que ganhou do pessoal do acampamento.
-Estamos há alguns quilômetros da saída que nos leva a Laurásia. Não sei quanto.
-Andamos tanto, assim?
-O seu Namida Ecolita fez isso - disse Flora - ele encurta a viagem dos andarilhos sem que sua percepção de tempo e distância perceba. Como acha que saímos da Necrópole de Cela em poucos dias? Andamos sob o subterrâneo de incontáveis reinos e normalmente levariamos semanas para andar por completo. Seu Namida Ecolita encurtou o nosso caminho, nos levando até aquela aldeia dos anões. O mesmo está fazendo conosco. Você tem posse de um tesouro poderoso e não está nem perto de compreender todo o seu potencial.
Sirius e Mikka encaravam o Namida Ecolita com estupor.
-Mas… agora que estamos presos, não podemos prosseguir, tem um gigantesco mar à nossa frente! -Falou Mikka. - Do que adianta este artefato agora?
-Infelizmente, não temos um Namida Termoclina. E nem faço ideia de onde esteja.
-É verdade -disse Gerlon, encarando o mar Gerlon a sua frente. - eu estou quase certo de encontrar mais saídas nas margens opostas.
-Que tamanho você dá para ele? - perguntou Sirius.
-Ah… sei lá, duzentos quilômetros.
-Ah! - disse Sirius, imaginando o quanto essa estimativa poderia ser incorreta.
Gerlon continuou:
-Não temos tempo a perder, e já amanhã cedo começaremos a navegar.
Sirius e Mikka procuraram involuntariamente com os olhos o navio que os transportaria.
-Em que embarcação? -perguntou Mikka.
-Não será uma embarcação, mas uma jangada sólida.
-É tão impossível construir uma jangada quanto um navio! Não consigo imaginar… -Quis protestar Sirius.
-Às vezes, você me decepciona. Você se esqueceu de Flora? O que você acha que as norueguesa da floresta fazem numa floresta?
-Ela está construindo uma jangada? -Perguntou Sirius.
-Ela já construiu uma jangada. -Disse Gerlon.
-Como?
-A floresta, é claro. Iríamos pôr você em cima dela e iríamos navegar com você bem ou não. Spike a ajudou.
Eles caminharam por quinze minutos, do outro lado do promontório que formava o portinho natural, Sirius avistou uma jangada. Mais alguns passos e estava a seu lado. Para sua surpresa, a jangada quase pronta repousava na areia. Era feita de vigas de uma madeira especial, e o chão estava literalmente coberto por um grande número de pranchões, amarras e espirais de todo tipo, que dariam para construir um ancoradouro.
Era grande o bastante para acomodar bem os seis e ainda sobrariam espaço para mais algumas coisas.
-Que madeira é essa? -Quis saber Sirius.
-Vários tipos de pinho, bétula, todas as espécies de coníferas mineralizadas pela ação das águas do mar. -Respondeu Flora logo atrás.
-É possível navegar em cima disso, de forma, segura?
-Na língua Noru, chamamos de surtarbrandur, ou de madeira fóssil.
Graças a sua habilidade, Flora terminou a jangada ainda naquele dia, com a ajuda de Spike e Sirius, que se dispôs a ajudar. Tinha doze metros de comprimento e nove de largura; unidas entre si por fortes cordas, as vigas de surtarbrandur ofereciam uma superfície sólida e, assim que jogada, a embarcação improvisada flutuou tranquilamente nas águas do mar Gerlon.
★★★
No dia seguinte, acordaram cedo para inaugurar um novo meio de transporte rápido e pouco cansativo. Um mastro feito de dois bastões emparelhados, uma verga formada por um terceiro, uma vela que não passava de um de seus cobertores, constituíram a enxácia da jangada. Não faltavam cordas. O todo era sólido.
Às seis horas, Gerlon deu o sinal de embarque. Os víveres, as bagagens, os instrumentos, as armas e uma notável quantidade de água doce recolhida dos rochedos já estavam na embarcação.
Flora instalará um leme que lhe permitia dirigir o barco flutuante. Spike assumiu o comando. Zafira desprendeu as amarras que os retinham a margem. A vela foi orientada e largaram com rapidez. No momento em que deixaram o pequeno porto, Mikka, que insistia em sua nomenclatura, quis lhe dar-lhe nome: Snowden. Era nítido que ela também sentia muita falta do amigo e irmão de Sirius. Dos momentos que brincavam na calçada juntos, com os outros irmãos de Mikka.
-Porto Snowden. Ficará muito bem no mapa.
Eis que a lembrança do seu amado irmão e melhor amigo foi vinculada a esta ousada expedição. A brisa soprava a nordeste. Navegavam de vento em popa com uma extrema rapidez. As camadas muito densas da atmosfera tinham um impulso considerável e agiam sobre a vela como um potente ventilador.
Ao final de uma hora, Gerlon pôde estimar a velocidade com bastante precisão.
-Se continuarmos a navegar nessa velocidade - disse ele - percorreremos pelo menos duzentos quilômetros em vinte e quatro horas e não demorará para alcançar a margem oposta.
Sirius sentou-se na proa da jangada, Mikka ao seu lado. A costa setentrional baixava no horizonte. Os dois braços do litoral abriam-se como para facilitar a sua partida. Um mar imenso e inexplorado estendia-se diante de seus olhos. Imensas nuvens corriam, céleres, pela sua superfície com sua sombra acinzentada, que parecia pesar só de aquela água morna. Os raios prateados da luz elétrica, refletidos aqui e ali por alguma gotinha, faziam eclodir pontos luminosos na esteira da embarcação. Logo perderam a terra de vista, todos os pontos de referência desapareceram, e, não fosse o sulco espumante da jangada, acharia que estavam completamente imóveis.
Por volta do meio-dia, algas imensas vieram ondular a superfície da água. Conheciam o poder vegetativo daquelas plantas, que se alastravam a uma profundidade de mais de oito quilômetros no fundo do mar, reproduzem-se sobre pressões altíssimas e formam, muitas vezes, bancos grandes o suficiente para entravar a marcha dos navios, mas (pelo menos Flora) achava que nunca fosse possível existir algas tão gigantescas e colossais quanto as do Mar Gerlon.
Sua jangada passou ao lado de sargaços de 1 quilômetro de comprimento, serpentes imensas que cresciam e perdiam-se a vista; divertiam em acompanhar suas fitas infinitas, achando sempre ter alcançado a extremidade; a paciência de Sirius e Mikka, e até suas surpresas foram enganadas por horas inteiras.
Que força natural aquelas plantas podiam produzir e que aspecto deveria ter o mundo nos primórdios de sua formação, a chamada “Eon dá Alvorada”, quando, sob a ação do calor e da unidade, apenas o reino vegetal se desenvolvia em sua superfície.
Caiu a noite e, como observara na véspera, o estado luminoso do ar não sofreu qualquer diminuição. Era um fenômeno constante, com cuja permanência podiam contar.
Após o jantar, Sirius e Mikka deitaram-se ao pé do mastro, e não tardaram a adormecer em meio a devaneios indolentes. Imóvel ao leme, Spike deixava a jangada correr, empurrada pelo vento em popa, nem precisava ser dirigida, mas Zafira sempre ficava próxima por segurança. Assim que partiram do porto Snowden, Gerlon, Flora e Spike comentavam até às menores observações, os fenômenos interessantes, a direção do vento, a velocidade, a rota percorrida, em suma, todos os incidentes da estranha navegação.
Ao meio-dia, Flora e Spike prepararam um anzol na ponta de uma corda. Sua isca é um pedacinho de carnes que joga no mar. Durante duas horas não pegaram nada. As águas são desabitadas? Um pensamento recorrente que lhes pairava a cada pesca mal sucedida. Mas não, Spike puxa a linha e traz um peixe que se debate com vigor.
-Um peixe! -Exclamou Gerlon, com a boca salivando.
-O que é isso? -Perguntou Zafira.
-Parece um esturjão - responde Flora - um esturjão pequeno.
A princesa observa o animal com atenção e não compartilha de sua opinião. O peixe tem a cabeça chata, arredondada, e a parte anterior do corpo coberta placas ossudas; não tem dentes; as nadadeiras peitorais, bastante desenvolvidas, estão ajustadas em seu corpo desprovido de cauda.
Flora analisava o animal com os olhos afiados, mas algo lhe chamava atenção.
-O peixe… o peixe parece pertencer a uma raça extinta a eons atrás, cujo traços fósseis são encontrados apenas em mundos devonianos.
-Mundos devonianos? O que é isso? -Perguntou Mikka.
-Era como o mundo de Evânia era chamado antes da grande calamidade que aconteceu incontáveis eras atrás.
-Grande calamidade? -Perguntou Sirius.
Todos voltaram a atenção para Flora.
-A grande calamidade… como foi chamado o cataclisma que remodelou os continentes de Evânia num passado profundo e distante. Hoje, há cinco continentes que conhecemos: Pannotia, o continente sagrado, localizado no Pólo norte do mundo. Kennorland, o continente negro, localizado no Pólo sul do mundo, e os três principais, Pangeia, Gondwana e Laurásia. Os três grandes são consistentes massas de terras que rodeiam o mundo de norte a sul, sendo separados pelos oceanos Panthalassa, Thethys e Hyperion. Mas nem sempre foi assim. Houve uma invasão de criaturas nefastas nunca vistas antes que começavam a surgir em Evânia, eles atacavam vilas e reinos, declararam guerras contras os evanianos, elfos, humanos, os antepassados dos atuais orcs, goblins, trolls… diziam-se que eles possuíam o controle de uma criatura tão poderosa, que ela foi solta na grande guerra como um ato de desespero dessas criaturas… uma criatura incontrolável e insaciável, com sede de destruição e morte. Foi essa criatura que remodelou para o mundo que conhecemos hoje. Ela destruiu os antigos continentes de Vaalbara, Ur e Rodinia. Onde nós vivemos hoje, tudo e todos que nós conhecemos vivem no que um dia já foi estes continentes.
-Tipo um mundo oculto? -Perguntou Mikka.
-Se quiser botar desse jeito, também serve. A passagem de Helx, apesar de já ser um reino que surgiu muito tempo após a grande calamidade, soube preservar a fauna e a flora do mundo antigo.
Colocaram uma nova isca e jogaram a linha. Com certeza este oceano é muito piscoso, pois, em algumas horas, pegaram grande quantidade de peixes. Spike reparou que os olhos destes animais eram estranhos, tinham um aspecto opaco, leitoso, provavelmente eles eram cegos e os olhos eram apenas órgãos vestígios e nada mais. Aquela pescaria inesperada é ótima para completarem suas provisões.
Desta forma, parece certo que aquele mar só havia espécies fósseis e antigas, onde os peixes e os répteis são ainda mais perfeitos por sua origem antiga.
Talvez ainda chegariam a encontrar alguns daqueles sáurios que os alquimistas soube reconstituir com um pouco de ossos e cartilagens? Gerlon tira a luneta e perscruto o mar. Deserto. Talvez ainda estejam próximos demais das costas. Sirius olhou para cima e se perguntou por que alguns daqueles pássaros estariam batendo asas nas pesadas camadas atmosféricas? Os peixes constituíram uma alimentação mais do que suficiente para eles. Eles observam o espaço, mas os ares estão tão vazios quanto as margens.
A imaginação de Sirius e Mikka, contudo, transportaram para as maravilhas hipóteses da história contada por Flora. Sonhando acordado, acreditaram ver na superfície das águas enormes quersitas, tartarugas antediluvianas parecidas com ilhotas flutuantes. Nas praias sombrias passam os grandes mamíferos dos primeiros dias, o Leptotherium, encontrados nas cavernas de Bhaz’hraz, os Mericotherium, procedente das regiões glaciais de Hipérboreo. Répteis com placas ósseas e tamanhos colossais escondendo-se atrás de rochas, prontos para disputar suas presas menores. O mastodonte gigantes faz sua tromba girar e tritura sob suas presas os rochedos das margens, enquanto bestas peludas que mais se pareciam com Manticoras, escorado por suas patas enormes, escava a terra provocando com seus rugidos o eco dos granitos sonoros. Mais acima, um grande e musculoso Gigantopithecus escalava os picos íngremes. Ainda mais acima, o Pterodáctilo, mão alada, escorrega como um grande morcego no ar comprimido. Finalmente, nas últimas camadas, imensos pássaros, mais fortes que uma quimera, maiores que outras aves da superfície, desfraldam suas asas enormes e alcançam com a cabeça a parede da abóbada granítica.
Todo esse mundo fóssil renasce nas suas imaginações. Flora comentou que os Mymercianos contavam histórias que remontavam aos mitos sagrados dá criação de seu povo, muito antes da chegada da era dos homens, quando Evânia era incompleta não lhes bastaria, onde os deuses andavam antes de tudo. Os sonhos dos deuses, precedeu, então, o surgimento dos seres animados, vivos. Primeiro os répteis, depois os pássaros, e por fim os mamíferos.
A vegetação excedeu-se. Passou como uma sombra entre fetos arborecentes, pisando com passadas incertas as margas irisadas e os grés sarapintafos no chão.
Para onde aqueles sonhos eram capazes de leva-lo? Suas mãos febris pousam sobre sua cabeça, já esperança de lhe desvencilhar de alucinações mais estranhas e longínquas. Por um tempo, Sirius e Mikka se esqueceram de que ainda estavam sobre a jangada, na presença dos outros.
-O que há com você? -Perguntou Gerlon.
Os olhos de Sirius abertos o encaravam sem enxergá-lo.
-Cuidado, pulguento, você vai cair no mar.
Ao mesmo tempo, ele sente as mãos de Spike o agarra com vigor. O mesmo com Mikka. Se não fosse por ele, dominados pelo seus sonhos, teriam se precipitado nas ondas.
-Você está bem? -Perguntou Zafira.
-O que… o que aconteceu? -Perguntou Sirius, confuso.
-Você está doente?
-Doente? Não… eu tive um sonho… mas já passou. Como estamos?
-Estamos bem, uma boa brisa nos sopra a toda velocidade, muito bom para navegar -comenta Spike.
-Navegamos rapidamente e, se não estivermos enganados, não demoraremos a atracar do outro lado.
Sirius ergueu-se, consultou o horizonte a sua frente, mas a linha da água continuava confundindo com a linha das nuvens.
★★★
O mar conservava sua uniformidade monótona. Nenhuma terra à vista. O horizonte parece exageradamente longe. Sirius, Mikka e Zafira conversam baixinho enquanto passam a mão na água. Gerlon parece que está de mau humor após algumas horas de viagem. Zafira percebeu que o pirata voltará ser aquele cara preocupado e nervoso de alguns dias atrás. Seria sobre o que eles haviam conversado no acampamento?
A princesa não viu ou entendeu o motivo para sua exaltação, eles estavam fazendo tudo o que podia naquele momento. A viagem não está acontecendo nas circunstâncias mais favoráveis possível? A jangada não está com uma rapidez maravilhosa? Pela últimas situações, podia estar sempre mais pior, mas não está.
Apesar disso, ela não foi a única a notar a mudança de humor do gatuno, sua parceira também já havia notado. Flora se aproximou do amigo.
-Está tudo bem? Está preocupado com alguma coisa?
-Preocupado? Não. -Respondeu, seco.
-Então, impaciente.
-Qualquer um ficaria impaciente por menos.
Flora olhou para os outros atrás deles. Eles pareciam bem de boa com a viagem.
-Estamos navegando com rapidez, o que você quer mais?
-Não é a velocidade que é pouca, é o mar que é grande demais!
-Você está chateado porque errou o comprimento desse mar? Pelo o que me lembro, já devemos ter percorrido três vezes a distância que você propôs, e as margens ainda não apareceram.
-O que você quer dizer?
-Agradeça que não estamos mais descendo, isso não é perda de tempo. Sei que a última coisa que você quer fazer é fazer um passeio de barco, mas procure relaxar, chegaremos a hora quando chegar a hora.
Gerlon encarou o horizonte, seu olhar estava ainda mais nervoso. Flora continuou.
-Não se sinta culpado, pelo menos não por isso, não podíamos prever que haveria um mar tão extenso quanto esse.
-Propus que chegaríamos a um objeto, e quero alcança-lo.
Flora encarou o pirata e se afastou, o deixando com seus lábios impacientes. Ela sentou-se na base do mastro e cruzou os braços.
No dia seguinte, nada de novo. Mesmo tempo, mesmo vento. O vento tendia a aumentar. Os primeiros cuidados ao acordar era constatar a intensidade da luz. Continuaram temendo que o fenômeno elétrico escureça e depois apagasse. Nada disso aconteceu. A sombra da jangada desenhou-se claramente na superfície das ondas. Que maravilha infinito! As especulações eram todas erradas, e que baita erro.
Flora tocou a palma da mão de leve na superfície da água. Um pulso mágico e tímido se espalhou como pequenas ondas num lago parado.
Não há fundo. Ou pelos menos foi o que ela disse. Seu pulso foi fraco, apenas para ver, de forma despretensiosa, até onde iria a profundidade daquele mar. Ela franziu as sobrancelhas, preocupada com alguma coisa que havia sentido, mas não falou nada.
Estaria um monstro adormecido nas profundezas desse mar oculto? Ela sabia que se falasse algo, Sirius e Mikka, e até provavelmente os outros não dormiriam tranquilamente naquela noite.
Flora vasculha as bolsas como se não tivesse pretensões alguma, se pegou analisando as espadas que os caçadores haviam lhes dado. Quando Zafira a perguntou, ela só respondeu se queria verificar se estavam em bom estado para a batalha que seguiria assim que chegassem na Capital Thieldiana. Grandes agitações na superfície das ondas indicam o distúrbio de camadas distantes. O perigo aproxima-se. Todo cuidado seria pouco, assim como aquelas pequenas espadas. Dependendo do que estivesse ali embaixo, elas seriam totalmente inúteis.
Quando você fica debaixo da terra por mais de uma semana, aos poucos você perde o discernimento do que é dia ou noite, norte ou sul, leste ou oeste. Quando chega a noite, ou o melhor, quando o sono pesa as pálpebras, eles sabem que já está próximo do anoitecer, mas ali, naquele oceano subterrâneo, isso se torna irrelevante, e a luz implacável cansa obstinadamente seus olhos, como se navegassem sob o sol dos mares do norte. Spike está ao leme. Sirius adormece e duas horas depois, é acordado por um terrível e violento abalo. A jangada foi erguida para além das ondas com uma força indescritível e jogada a alguns metros.
-O que aconteceu?! -Gritou Sirius, desesperado -abordamos?!
Spike e Flora apontam para uma massa escura que se ergue e abaixa a uma distância de duzentos metros.
-Mas o que… -exclama Zafira.
-Aquilo é um lagarto do mar gigante? -Perguntou Mikka, assustada.
-Não só um, mas dois - exclamou Spike.
-Que… o maxilar imenso e fileirado de… dentes? Ah! Desapareceu!
A pequena jangada foi erguida para além das ondas. De fato, duas colunas líquidas ergueram-se a uma altura imensa acima do nível do mar. Ficaram todos surpresos, apavorados, estupefata diante do rebanho dos monstros marinhos. Tinham dimensões sobrenaturais, e o menor dele seria capaz de partir a jangada com apenas uma dentada. Spike queria mudar de direção para fugir da proximidade perigosa, mas do outro lado também vê inimigos não menos perigosos, várias serpentes imensas, com mais de trinta metros de comprimento, que submergir e emergia suas cabeças enormes acima das ondas.
Era praticamente impossível fugir. Os répteis aproximaram-se; dão voltas em torno da jangada numa velocidade que jamais seria igualada por comboios a toda velocidade; desenharam círculos concêntricos ao seu redor. Gerlon sacou seu mosquete com cabo de madeira, de aproximadamente quarenta centímetros e mirou nas serpentes. Zafira jogou as espadas para os outros, enquanto os dedos de Flora soltavam faíscas de seus dedos: ela estava pronta para contra-atacar com relâmpago.
Mas que efeito aquelas armas e magias poderiam ter contra o corpo daquelas criaturas coberto de escamas? Todos estavam mudos de medo. Estão se aproximando! De um lado, o “crocodilo” exageradamente grande, do outro, várias serpentes. O resto das outras cabeças haviam submergido nas águas turbulentas. Gerlon estava prestes a atirar. Spike o deteve com um sinal. Os monstros marinhos passam a cem metros da pequena embarcação e precipitaram-se um sobre o outro. Sua fúria, sua ira impediu de que os pequenos tripulantes da jangada fossem vistos.
O combate aconteceu a cem metros da jangada. Era possível ver claramente os dois monstros atracando-se. Mas então parece outras grandes serpentes e chegam para participar da luta. Eles observam o confronto atentamente. O crocodilo exageradamente grande pareceu está em desvantagem, enquanto as serpentes o atacavam e atacavam entre si. Flora encarou atentamente aquele comportamento.
Sirius encara Spike, na esperança de encontrar alguma ordem, mas o velho capitão apenas devolve o olhar e balança a cabeça de um lado para o outro, em negação.
-Um dos monstros tem todas as características de um réptil, mas ele é estranho. Um crocodilo que cresceu além do normal. Aquilo é… um mosassauro? -Disse Flora. Ela já havia visto um. Não vivo, mas apenas em rolos de papiros antigos nas bibliotecas das cidades subterrâneas dos Mymercianos, e até mesmo um fóssil completo.
Mosassauro
-E o outro? -Perguntou Gerlon, um pouco preocupado.
-Talvez uma Hidra. Talvez uma Hidra Ghidorah. É a única explicação para que as serpentes lutassem entre si, ao invés de focar inteiramente no mosassauro.
Flora tinha razão. Apenas dois monstros tumultuavam a superfície do mar, e diante de seus olhos, duas majestosas criaturas do mundo antigo. Era possível ver o olho sanguinolento dá Hidra Ghidorah, do tamanho de um homem adulto. A natureza os havia dotado de um aparelho de óptica de grande poder, capaz de resistir a pressão das camadas da água nas profundezas de que habitam.
Hidra Ghidorah
A Hidra Ghidorah, serpente de tronco cilindro, causa longa, tinha patas dispostas em forma de garras. Seu corpo é inteiramente coberto por placas ósseas reluzentes como jade e musgo, e seu pescoço, flexível como o de um pássaro, ergueu-se trinta metros acima das águas.
As criaturas se atacaram com uma fúria indescritível. Ergueram montanhas líquidas que refluem até a pequena jangada. Parece que iam naufragar a qualquer momento. Ouviram assobios de prodigiosa intensidade. Os dois animais estreitaram-se. Não era mais possível distinguir o que era uma Hidra e o que era um mosassauro. Eles tinham motivos suficiente para temer o que vinha a seguir, a ira do vencedor do violento combate.
Se passaram uma, duas horas. A luta continuava violenta e encarniçada. Os combatentes ora se aproximavam, ora se afastavam da jangada. Permaneceram imóveis, mas prontos para um possível confronto a qualquer momento.
De repente, o Mosassauro e a Hidra Ghidorah desapareceram, sulcando um verdadeiro redemoinho nas ondas. Passaram-se vários minutos. Começaram a pensar se as grandes feras haviam ido para as profundezas para encerrar o combate violento.
De repente, apareceu uma enorme cabeça de Mosassauro. A criatura está mortalmente ferido. Já não é mais possível ver sua imensa carapaça. Apenas seu focinho e parte do pescoço, que ergue-se, caiu e voltou a erguer novamente, inclinando, fustigando as ondas como um chicote gigantesco e torceu-se como um verme cortado. A água espirrou a uma distância considerável. Aos poucos, a agonia do grande réptil ia cessando, seus movimentos reduziram, suas contorções foram se acalmando e aquele longo pedaço de serpente estendeu-se como uma massa inerte nas ondas já tranquilizadas. Quanto a Hidra Ghidorah, voltou a sua caverna submarina… ou voltaria a aparecer na superfície do mar?
★★★
Felizmente o vento, que sopra com força, permita que eles fugissem rapidamente do palco da grande luta. Spike continuou no leme. Gerlon, arrancado de suas ideias mirabolantes que ressoavam dentro da sua cabeça pelos incidentes do combate, voltou a sua impaciência e contemplar o mar. A viagem retornou a sua uniformidade monótona, que não faziam a menor questão de interromper devido aos perigos recentes.
Navegavam a uma velocidade de dez quilômetros por hora. Ao meio dia do dia seguinte ao confronto, ouviram ao longe, um ruído a distância. De início, não era nada que fosse identificado, mas a medida que foram se aproximando, ele tomou forma: é um mugido contínuo.
-Em frente - disse Gerlon - algum rochedo ou alguma ilhota contra qual o mar se quebra.
Flora sobe a ponta do mastro, mas não enxerga qualquer escolho. O mar é uniforme até a linha do horizonte. Passam-se três horas. Os mugidos parecem de uma queda d'água distante. Estariam correndo em direção a uma catarata que os levaria num abismo? Em todo caso, deve haver algumas na direção do vento algum fenômeno ruidoso, pois agora ouve-se mugidos de grande violência. Vêm do céu ou do mar? Sirius se aproxima de Gerlon, que levanta a vista para os vapores suspensos na atmosfera, e eles tentam sondar sua profundidade. O céu está tranquilo. As nuvens, bem altas na abóbada, parecem imóveis e perdem-se na intensa irradiação de luz. A razão do fenômeno deve ser outra.
Gerlon examina minuciosamente o horizonte claro, sem qualquer bruma. Seu aspecto não mudou. Contudo, se o ruído provém de uma queda, de uma catarata, se todo aquele mar se precipita numa bacia inferior, se aqueles mugidos são produzidos por uma massa de água que cai, a corrente deve ativar sua velocidade crescente e pode fornecer uma medida de perigo que os ameace. Gerlon consulta a corrente. Nada, absolutamente nada.
Após quatro horas, Flora se levanta, escala o mastro e sobe na sua ponta. Dali seu olhar percorre o círculo descrito pelo oceano diante da jangada e detém-se um ponto. Seu rosto não experimentei qualquer surpresa, mas seu olhar fixou-se em algo.
-Ela viu algo -comentou Gerlon.
Todos se levantaram.
O que você está vendo? -Perguntou Mikka.
-Está meio nebuloso -respondeu ela -mas há algo no horizonte.
-Mais um monstro marinho? -Perguntou Sirius.
-Talvez -respondeu ela.
-Então é melhor mudar a rota? Tivemos sorte da primeira vez.
-Deixe como está -respondeu Gerlon.
Spike continua segurando o leme com um rigor inflexível.
Mais algumas horas depois, provavelmente a noite, estão a quase cinco quilômetros daquilo que Flora avistou. Um alto corpo escuro, enorme, acindentado, estende-se pelo mar como uma ilha… seria uma ilusão?
Seu comprimento ultrapassa os limites físico e biológicos deste mundo. Que tipo de criatura teria aquele tamanho colossal? Principalmente vivendo abaixo do mundo deles? Uma Hidra? Uma baleia? Um monstro marinho nunca visto antes? Permanece imóvel, como se estivesse adormecido; o mar não parece não conseguir erguê-lo; são as vagas que indicam em seus flancos. A coluna d'água, projetada a uma altura de cem metros, volta a cair em forma de chuva com um barulho ensurdecedor. E eles navegavam em direção aquela massa poderosa, que corresponde a mais de mil baleias.
O terror aos poucos tomavam conta de Sirius. Seu estômago embrulhava, quanto algo dentro dele queria gritar “Não, não quero prosseguir!”. Queria cortar a adriça da vela, se necessário. Gerlon sentiu a inquietação do garoto, mas não se importou.
Spike colocou a mão no ombro de Sirius.
-Se acalme, é apenas uma ilha.
-Uma ilha?! -Exclamou Sirius.
-Sim, não há necessidade de ficar nervoso.
-E essas colunas de água?
-Gêiser -disse Flora.
Um outro gêiser explodiu, espirrando mais água a mais de cem metros de altura. Os raios de luz elétrica misturam-se a esse feixe ofuscante, em que a cada gota contém todos os matizes do prisma.
-Vamos abordar -comanda o pirata. Eles tomaram cuidado com aquelas trombas d'água que afundaria a jangada num instante. Manobrando com habilidade, Spike os conduziu a extremidade da ilhota.
★★★
Sirius foi o primeiro a saltar para a rocha. Mikka foi em seguida a passos rápidos. Depois os outros.
Embora tivesse certeza de estar pisando em solo totalmente desconhecido para eles, por vezes, agrupamentos de rochedos cuja forma lembrava os do porto de que saíram, dias atrás, o que aliás, confirmava a indicação do Namida Écolita apontava. Riachos e cascatas caiam as centenas pelas saliências das rochas. Depois de alguns passos além, a disposição dos contrafortes, o aparecimento de um riacho, o perfil surpreendente de um rochedo faziam com que despertasse algumas dúvidas.
-Claro -disse Sirius - que não abordamos no nosso ponto de partida, mas a
tempestade nos levou um pouco para cima, e seguindo a margem voltaremos a
encontrar o porto Snowden.
-É o que você acha? -Perguntou o pirata.
Sirius respondeu de prontidão:
-Sim.
-Nesse caso - respondeu Gerlon -, não vale a pena continuar a exploração, e o
melhor que temos a fazer é voltar à jangada.
Sirius pareceu incomodado com aquilo, mas ele tinha bons motivos.
-É difícil afirmar, todos esses rochedos e paredões são muitos parecidos com aqueles que ficamos perto lá no Porto Snowden. Espero não estar reconhecendo aqueles paredões, ao pé de onde Flora e Spike construíram a barca.
Um sentimento de desânimo se abateu sobre o grupo. Estariam eles de volta ao marco zero? De volta ao seu ponto de partida de antes?
Mikka encarou ao redor e franziu a testa. Ela avistara algo estranho, e correu em direção a um ponto brilhante que estava semi-enterrado na areia.
Ela desenterrou o pequeno objetivo brilhante. Era um punhal. Um punhal enferrujado, com cavidades circulares perfeitos para caber jóias ou pequenas esferas. O cabo era revestido de calcário branco, e a lâmina, um aço escuro, enegrecido e opaco, quase como se tivesse sido queimado, e mesmo com aquela luz artificial causado por efeitos químicos, reluzia como num dia ensolarado. As crostas de ferrugem eram pontiagudas e afiadas.
Mikka não soube descrever o que sentira naquele momento. Seus olhos e seus dedos correram por todo o punhal. Uma sensação maior e desejo de passar seus dedos sobre o fio da lâmina lhe tomou conta. E foi exatamente o que ela fez. Cedendo ao desejo, seu dedo percorreu lentamente o fio afiado do punhal, a ferrugem ia desaparecendo a medida que um fio vermelho ia sujando. Ao final, o sangue de Mikka estava por todo o fio e seu dedo sangrava. O ferro enegrecido absorveu seu sangue, como se estivesse com sede. Ela fora possuída pelo desejo da curiosidade e da tentação, pois Mikka encarava o punhal com as pupilas selvagens e com brilhos de ganância.
★★★
Mikka levantou a cabeça e virou o corpo para voltar ao grupo mas notou algo estranho: ela não estava mais na praia. Sob seus pés não tinha mais a areia branca e fofa de antes, mas uma fina camada de água que refletia sua imagem como um espelho cristalino. Sobre sua cabeça, um céu estrelado como o topo das montanhas, nenhuma nuvem ou lua no céu, apenas infinitas estrelas que piscavam de todos os tamanhos e cores, enormes nebulosas de todas as cores possíveis e galáxias espirais.
Uma chuva de meteoros cruzaram o céu noturno, caindo no horizonte, onde a água cristalina se encontrava com o céu estrelado, fazendo aquele espelho refletir o universo acima de sua cabeça. Ela não sabia dizer onde terminava o horizonte e começava o céu, aquele mundo era confuso e vazio, como mais nada. Ela era a única pessoa ali.
Uma neblina rala vinha de alguns lugar que ela não conseguiu saber de onde. Ela olhou ao redor e não viu absolutamente nada. Ela estava completamente sozinha… se não fosse por aquilo.
Mikka franziu a testa, forçando a vista para tentar identificar o que havia ao longe. Uma figura estranha, meio desformada ou desfocada até para sua boa visão felina. Aquilo permaneceu imóvel.
Mikka deu mais alguns passos em sua direção, na esperança de conseguir ver algo mais nítido. Mas ao mesmo tempo, o receio era muito maior. Era uma figura extremamente grande, ela só conseguiu distinguir alguns detalhes de sua aparência. Seu corpo era esguio e comprido, tinha seis ou oito pernas (ela não conseguiu distinguir, mas jura ver visto dedos nas suas mãos) uma cabeça grande e redonda, como um crânio, e duas grandes presas em formato de foice projetadas para frente, como pinças de formiga. Tinha dois pares de asas enormes, como libélulas e uma longa cauda com uma ponta afiada, como a de um escorpião.
Estrela negra diabólica
Mais detalhes sobre como era seu rosto ou sua aparência real, Mikka ficaria apenas no campo da especulação, ela teve medo daquilo avançar em sua direção, mas aquilo permaneceu imóvel, apenas com dois glóbulos brilhantes como estrelas fixados nela. Mas nada aconteceu. Sua presença era intimidadora. Ela sentia o ar frio preenchendo seus pulmões e os congelando, ao mesmo tempo que seu sangue fervia e seus vasos sanguíneos se dilatavam. As batidas do seu coração estavam mais fortes, cada bombeada, ela sentia seu sangue percorrer cada centímetro.
Mas aquilo nada fez. Apenas continuava imóvel, como uma estátua, o que fez Mikka se perguntar em meio aos seus pensamentos turbulentos, se aquilo realmente estava vivo ou se era apenas algo imóvel. Suas pernas pesaram e se recusaram a fazer qualquer movimento. Não importava se uma parte de si queria se aproximar daquilo, ou se ela se afastaria. Não importa, ela não conseguia.
Aquilo permaneceu imóvel, sem mexer um músculo sequer, mas Mikka sentia que suas células estavam sendo atraídas por ele. Ela sentia seus pelos. Uma parte de si queria ir até aquilo, a parte que foi atraída pela curiosidade daquele punhal. E ela percebeu algo maléfico dentro de si. Ela sentia todas as emoções, sentimentos e lembranças ruins de si, atraídos para aquilo, como um buraco negro suga a matéria. Ela sentia que toda aquela energia ruim que se agitava dentro dela pudesse sair de seu corpo e se moldar numa imagem e semelhança a sua, porém ruim.
Aquilo soltou um grunhido infernal, um som estridente e bestial, que jamais criatura viva e obscura que se rastejasse pelos confins de Evânia, seria capaz de reproduzir.
O céu estremeceu e o ar vibrou.
-Mate todos eles.
Disse aquilo.
★★★
Mikka piscou e deu de cara com Sirius, a encarando de forma preocupada.
-Você está bem?
Ela franziu a testa.
-Eu… estou sim… mas… cadê aquela criatura?
-Que criatura? -Perguntou Sirius, confuso. -Está falando da Hidra?
-Não… a criatura oculta, que estava de trás da neblina.
Todos pareceram confuso. Eles olharam ao redor mas não encontraram nada, nem mesmo a tal neblina.
-Mikka, não há criatura oculta ou neblina por aqui -Disse Spike.
Ela olhou ao redor e não encontrou nada. Ela sentiu uma ardência na ponta do seu dedo. O sangue ainda escorria pela lâmina e pingava na areia.
Sirius soltou um grito, assustado.
-Mas o que você fez?!
-Nada, eu apenas encontrei isso no chão e…
-Você encontrou isso? Me deixe ver. -Disse Gerlon.
Mikka relutou em entregar o punhal para Gerlon. Ela sentia que ele queria tomar aquilo dela. Que ele iria rouba-la. Mas o que era isso? Porque ela estava tendo esse pensamentos agora? Ela jamais pensaria algo assim. Jamais. Ela não tinha apego a bens materiais, pois sempre esteve acostumada com o pouco e nada precioso. Ela aprendera enquanto crescia nas ruas a dar valor e reconhecer seus amigos e seus trabalhos, e não a um objeto qualquer, ainda mais uma arma. Ela não entendia, mesmo com pouco alimento disponível durante o dia, ela sempre soube dividir, não importasse se era dois órfãos, ou oito, se era apenas um pedaço de pão ou um pacote de bolacha, ela jamais negou bondade a alguém.
Mas ele era um pirata, e piratas roubam. Mas não ele, não Gerlon. Ultimamente ele tem bancado mais o herói improvável do que mais com um pirata em si. Tirando a vez que ele roubou o anel de casamento de Zafira. Não… aquilo não foi um roubo… aquilo foi diferente, era mais um contrato. Ela confiava em Gerlon, mas então porquê estava exitando?
Ela entregou o punhal para o pirata, e seus olhos ardilosos percorreram sobre o punhal. Seu olhar meticuloso analisou cada milímetro daquela arma, ele até franziu o cenho e entregou para Flora.
O mesmo com a imediata. Ela percorreu seus olhos, conferindo cada detalhe. Mikka analisou friamente o olhar de Flora sobre o punhal. Uma parte dela queria voar encima do pescoço da companheira, e a outra lutava contra seu instinto agressivo que ela desenvolvera com aquele objeto.
Flora não era tola e muito menos ingênua. Desde de que Mikka voltara do transe, ela sentia uma aura estranha vindo tanto da garota quanto do objeto. Uma aura estranha e neutra. Não era agressiva, mas não era bondosa, ela era… simplesmente estranha. De uma assinatura ímpar de tudo o que Flora já havia estudado ou visto.
Flora se recordou uma vez de quando visitou a Biblioteca de Avalon, alguns anos atrás. Ela se lembrou de um texto antigo que ela havia lido sobre o Reino de Helx, graças a um xamã dos Mymercianos, Gruz’behl, antigo líder da colônia que ela realizou seu treinamento de sobrevivência. Em uma das anotações, ela lembrou de ler uma passagem que falava do antigo Reino de Helx e seu “Deus exterior”.
A Noru ligou os pontos do que já sabia com o comportamento de Mikka. Um punhal, lâmina enegrecida e seu dedo cortado. Ela devolveu o objeto, na qual Mikka excitou, mas o pegou.
-Suponho que nenhum de nós tenha recebido um punhal como este nas nossas bagagens - disse Gerlon.
Todos balançaram a cabeça.
-Então… suponho que estamos perto da saída, só precisamos encontrá-la.
-Como você sabe? -Perguntou Sirius.
Gerlon se distanciou um pouco da praia.
-O único sinal de civilização que encontramos foi aquelas primeiras ruínas, lá trás. Poderia ser alguma cidade vizinha ou até mesmo uma parte do Reino de Helx. Caminhamos por bastante tempo e nunca havíamos encontrado um objeto assim. Se eles começaram a surgir, é porque estamos perto de algo importante, que tenha sido bastante movimentado no passado.
-E quais as chances dela pertencer a alguém, aqui no subsolo? -Perguntou Zafira - ela me parece ser bastante antiga, porém não está tão desgastada quanto era pra ser. O aço escuro me parece em ótima forma, para ela conseguir se cortar.
-Eu não sei -respondeu Gerlon, fazendo uma careta -eu não sei que tipo de povo era o Helxianos. Pode ter pertencido a qualquer um ou qualquer coisa.
Spike encarou a adaga.
-Este punhal parece ser uma arma levada por cavaleiros na cintura para causar o golpe de misericórdia, não parece ser uma adaga propriamente para um combate, apesar de funcionar bem para isso. Veja, ela não está estragada de tanto penetrar na garganta dos outros; sua lâmina está recoberta por uma camada de ferrugem que não data de um dia, nem de um ano, nem de um século, muito menos um milhão de anos.
-Mas esse punhal simplesmente apareceu por aqui? Do nada? Há algo próximo e eu não quero estar aqui para descobrir. -Disse Sirius.
E prodigiosamente interessados mais uma vez percorreram a alta muralha, interrogando as menores fissuras, passíveis de transformar-se em
galerias. Chegaram assim a um local onde a margem se estreitava. O mar vinha quase banhar o pé dos contrafortes, deixando uma passagem de, no máximo, dois metros de largura. Entre duas rochas que avançavam, via-se a entrada de um túnel escuro. Ali, numa placa de granito, apareciam runas antigas misteriosas um tanto corroídas, as runas que representavam o mal que viera de fora do universo:
ᛅᛚᚵᚮᛚ,᛫ᛆ᛫ᛂᛋᛐᚱᛂᛚᛆ᛫ᚿᛂᚵᚱᛆ᛫ᛑᛁᛆᛒᚮᛚᛁᛌᛆ
O grupo permaneceu imóvel por um tempo. Mas Flora sabia o que era.
-O que diz aqui? -Perguntou Gerlon, olhando para a companheira.
-Algol, a estrela negra diabólica - disse Flora e Mikka ao mesmo tempo.
★★★
-Como você… -Gerlon balbuciou, enquanto os outros olhavam assustado para a jovem menina.
-Eu não sei… eu só li… -disse Mikka, completamente surpresa e até um pouco assustada com o que acabara de dizer.
Flora encarou a garota e reparou que ela mantinha os braços escondidos nas suas costas. Na sua mão, ela segurava o punhal.
-Mas o que é um Algol? -Perguntou Spike.
-Não é o que é, mas sim quem é Algol. Lendas antigas contam que uma estrela cadente caiu milhões de anos atrás, onde existia o Reino de Helx prévio ao seu auge. O helxianos exploraram o local e descobriram uma criatura oculta que havia chegado de um lugar distante… do outro lado do universo. Dizem que essa criatura lhe mostrou o que hoje chamamos de Verdade Arcana. Ele deu discernimento para o Helxianos, que passaram a enxergar o mundo arcano, assim como espíritos e até mesmo deuses. Então nasceu o culto dos adoradores da estrela negra. Algol para os humanos. No antigo mundo que os homens habitavam, eles possuíam máquinas poderosas observadores de estrelas, e uma em especial, tinha seu brilho diminuído num intervalo de três dias. Isso ficou no imaginário deles. O por que deles acharem que isso era uma representação do mal, não sei. Nunca compreendi.
-Agora eu entendo perfeitamente o motivo de você não ser mais aceita em nenhuma aldeia Noru -brincou Gerlon - todo esse conhecimento sobre o mundo dos homens e evaniano vai contra tudo o que elas acreditam.
-É errado querer saber das coisas? -Perguntou Flora.
-Não, mas é quase como uma maldição saber das coisas. -Disse ele, com um olhar vazio e distante.
Flora se virou para Mikka.
-O sangue na lâmina negra. A criatura oculta na neblina. Você viu Algol. Você fez um pacto com ele e agora é serva da estrela negra diabólica. Você é provavelmente a única seguidora viva de Algol que nós conhecemos.
-O que vai acontecer comigo? -Perguntou Mikka.
-Não sabemos, teremos que descobrir. Mas até lá, vamos ficar de olho em você. -Respondeu Flora, a confortando -enquanto isso, pode nos tirar daqui?
-Como farei isso?
-Crave o punhal nas runas. Aquilo é uma variação das Runas das Estrelas. Com sorte, aquilo nos levará para fora daqui.
-Como sabe? -Perguntou Spike.
-Eu não sei, espero que Algol não seja um Deus maligno que queira que sua única serva viva morra aqui embaixo. Se nós sairmos, ele também sai.
-Então deixa eu ver se entendi: você quer levar esse monstro para lá para fora? - Perguntou Sirius, assustado - isso é loucura!
-Não, não é. Se Mikka aprender e controlar os poderes dessa criatura, vai ser mais uma grande ajuda para a batalha que estar por vir -interveio Gerlon, confiante - se Flora confia no plano dela, eu também confio.
Sirius queria protestar, mas ele não tinha certeza e convicção suficiente para questionar eles naquele momento. Ele apenas aceitou.
Mikka se aproximou das Runas. O punhal esquentou em suas mãos, mas o aço escuro esfriou, criando uma fina camada de gelo.
Mikka cravou o punhal na Runa, riscando o nome Algol. Faíscas voaram das Runas como vagalumes num campo aberto ao redor deles. E num clarão súbito, eles desapareceram dali.
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