Capítulo 51 - As cavernas de Stalactara
O grupo já estava de pé antes mesmo do sol nascer. Os primeiros feixes de luz surgiriam no leste em alguns minutos e levaria algumas horas para que o último pedaço de Pangeia fosse iluminado por eles.
Eles haviam dormido em camas de feno e lã confortavelmente, Spike em particular não sabia dizer qual havia sido a última vez que dormira sobre uma cama fofa como nuvem. Ele por um breve instante, havia se esquecido das dores em suas costas e articulações.
-Então, Sirius, o que você me diz de tudo isso? -Exclamou Mikka para o amigo, esfregando as mãos em excitação - não lembro de ter passado uma noite tão tranquila como essa lá na Cidade Baixo. Nada de barulhos de carroças ou gritos de comerciantes, nem reclamações e fofocas de vizinhos!
Se reuniram ao redor da fogueira central do acampamento e comeram bem, havia muita fartura como peixes, galinhas e frutas frescas recém coletadas ali perto. A comunidade de caçadores eram bastante unida nesse quesito, apesar de o foco não ser caçar feras naquele momento. Eles entregaram grandes bolsas de couro, com cobertores, um cantil farto de água e comida, além de alguns outros equipamentos velhos como manômetros e barômetros. Todo o apoio prestado fora recompensado com uma boa quantia em ouro que Gerlon havia deixado para pagar pelas despesas. Apesar de ter deixado mais que o fora usado, ele se recusava a receber o troco, aquilo também não era o foco no momento.
Às oito horas da manhã, eles se despediram do acampamento sob um raio de luz. As mil facetas das dunas e do mar recolhiam-no à suas passagens e distribuíam-no como chuvas de faíscas e respingos de espumas salgadas. A claridade era forte, e a luminosidade branca da areia os cegava abaixo.
Sirius, Mikka, Spike e Zafira carregavam espadas de ferro, enquanto Flora havia escolhido carregar algumas adagas, enquanto Gerlon escolheu um sabre e um mosquete “bem pirata”.
Eles caminharam por longas horas sobre o litoral. Haviam levado algumas bolsas com alimentos e água para não passar novamente por dificuldades como foi na Necrópole de Cela. Infindáveis dias abaixo da terra, sem o contato com a luz do mundo exterior era algo que eles não poderiam mais aguentar se passassem mais um ou dois dias. Mal sabiam eles…
Quase ao meio dia, finalmente chegaram aos Portões de Helx. Um imponente portão de pedra de quase dez metros de altura, esculpido na montanha e talhados com desenhos. Ou deveria ser os portões, pois agora só havia uma grande passagem que os engolia para a escuridão adentro da montanha. Aquela era a passagem que levava aos caminhos subterrâneos que o antigo rei daquela região mandou construir, já que a passagem original de Helx jazia a milhares de anos no fundo do mar.
Flora consultou o barômetro, que mais se parecia uma bússola. O aparelho marcava os parâmetros normais para o nível do mar. Só havia o nível de uma pressão atmosférica. Mais para frente, precisariam trocar o Barômetro pelo manômetro.
Eles adentraram a caverna a pararam bem diante de enormes pedras que se assemelhavam pilares, sustentando o teto. Zafira teve quase certeza de que avistou uma estátua inacabada esculpida no fundo de uma parede, engolida pela escuridão.
Os musgos cresciam pelo chão e pelas rochas, dando um aspecto úmido e gosmento a elas. Sirius ficou encantado com aquele lugar. Ele era alto e amplo, a luz lá fora não adentrava muito fundo a caverna, o caminho na frente deles seguia para baixo numa inclinação suave e quase imperceptível.
-Ei, você tem certeza que este buraco de coelho realmente é o caminho para Thiel? -Perguntou Sirius.
-Melhor uma lebre visível do que um rato em uma armadilha -Respondeu Gerlon - então se você preferir ir batendo nas portas da frente da cidade, fique a vontade.
-Mas o que vamos fazer, uma vez que já estivermos dentro? -Perguntou Mikka -Não vai dar tempo de encontrar a cidade?
-Nós fazemos o que pudermos para se misturar na multidão. -Anunciou Zafira -Nossos nomes podem ser evidentes, mas nossos rostos estão longe de serem conhecidos.
-Verdade, verdade - se aproximou Sirius - você é a nossa princesa e nós sequer a conhecemos.
-Percebi - respondeu Zafira, baixando a vista. Ela deu meia volta e seguiu em direção ao caminho, e os outros a seguiram.
-Vamos em frente. Só penetramos um um tiquinho do caminho - Disse Gerlon.
-O que você quer dizer com isso? -Perguntou Mikka.
-Aqui embaixo o caminho será penoso. Esse longo caminho que dá em um dos salões de Helx, no subterrâneo do antigo castelo, ele terminará poucos metros abaixo do nível do mar. -Respondeu Flora.
-Tem certeza?
Flora mostrou o barômetro para a garota e lhe ensinou como usar o equipamento.
De fato, após voltar a subir no instrumento à medida que desciam, o mercúrio parara em vinte e nove “polegadas”.
-Como você vê - continuou Flora - só temos ainda as pressão de uma atmosfera, e estou um pouco impaciente para que o manômetro substitua este aparelho.
O instrumento iria tornar-se realmente inútil assim que o peso do ar ultrapassasse sua pressão, calculada no nível do oceano.
-Mas a pressão sempre crescendo não pode se tornar penosa? -Perguntou Spike.
-Não. Estamos descendo lentamente e nossos pulmões irão se acostumar a respirar uma atmosfera mais comprimida. Falta ar aos aeronautas que tentam subir e chegar a Éris, pois falta justamente oxigênio nas camadas superiores. Nós teremos provavelmente ar demais. E sendo sincero, prefiro assim. -Respondeu Gerlon, mais a frente.
-Quais as chances de toparmos com criaturas nefastas por aqui? Tipo… fantasmas… ou algo assim? -Perguntou Sirius, com medo.
-Você tem um panfleto de uma dessas criaturas aqui, ora quais são as chances.
Com essas palavras, Gerlon tirou de sua bolsa, um aparelho de Ruhmkorff pendurado em seu pescoço, com a outra, provocou o contato da corrente elétrica com a serpentina da lanterna, e uma luz bastante viva dissipou as trevas do caminho.
-Sirius, ative o Namida Ecolita. -Disse Flora, que carregava outro aparelho igual ao de Gerlon. Essa aplicação engenhosa do mundo antigo, gerava eletricidade e permitia caminhar por muito tempo, criando um dia artificial, mesmo em meio aos gases mais inflamáveis que poderia haver por ali.
No momento que a escuridão os cercou naquele caminho, Sirius ergueu a cabeça e olhou para trás, no final do tubo imenso, o céu de Pangeia. O próximo que ele veria, já seria em Gondwana.
No colapso da passagem de Helx, a lava dos vulcões submarinos abrira um caminho para si por aquele túnel. Revestia o seu interior com um verniz espesso e brilhante, onde a luz elétrica se refletia, tornando-se cem vezes mais intensa.
O problema do percurso consistia em não escorregar depressa demais por uma vertente com inclinação de mais ou menos quarenta graus, felizmente algumas erosões, alguns inchaços faziam as vezes de degraus, e eles só tinham de descer, deixando suas bagagens firme ao corpo.
Mas aquilo que formava degraus para seus pés, tornava-se estalactites nas outras paredes. Porosa em alguns lugares, a lava apresentava pequenas ampolas arredondadas: cristais de quartzo opacos, enfeitados por límpidas gotas de vidro e suspensos na abóbada como lustres, pareciam acender quando eles passavam. Era como se espíritos do abismo estivessem iluminando seu palácio para receber viajantes cansados de terras longínquas.
-É maravilhoso! -gritou Mikka involuntariamente - que espetáculo! Veja essas pedras brilhantes! Esses cristais que parecem globos luminosos! - dizia ela, apontando para cristais vermelhos amarronzados ao amarelo brilhante.
Eles caminharam pelas vertentes inclinadas que o caminho conduzia. O pirata segurava uma bússola que consultava com frequência, indicava a direção leste firmemente, com um rigor impertubável. Aquela corrente de lava não obliquava nem numa direção nem noutra. Tinha a inflexibilidade da linha reta.
Entretanto, o calor não aumentará de maneira sensível. Duas horas depois de adentrarem, continuava marcando vinte e cinco graus, ou seja, um aumento de quatro graus em relação a superfície. O que autorizava a pensar que a descida era mais horizontal do que vertical. Quanto a saber exatamente a profundidade, nada mais fácil, Flora média os ângulos de desvio e inclinação do percurso, mas guardava para si o resultado de suas observações.
Deveria ser de noite, quando Gerlon ordenou que parassem. Spike e Zafira sentaram imediatamente. Penduraram as lâmpadas numa saliência de lava. Estavam numa espécie de caverna onde não faltava ar. Muito pelo contrário. Eram atingidos por certos sopros. O que os produzia? A que agitação atmosférica atribui a sua origem? Era um problema não tentavam resolver naquele momento. A fome e o cansaço tornavam-se incapaz de raciocinar. Não é possível descer e caminhar por sete horas consecutivas sem gastar energia. Eles estavam exaustos. Foi com grande prazer, portanto, que ouviram a ordem de parar. Flora espalhou algumas provisões sobre um bloco de lava, e todos comeram com apetite. Havia algo que preocupava Sirius e Gerlon: já consumiram metade da reserva de água. O pirata e a imediata contava reabastecer nas nascentes subterrâneas, mas até então não haviam encontrado nenhuma. Sirius não conseguiu evitar chamar sua atenção para o problema.
-A ausência de nascente o surpreende? -disse o pirata.
-Claro, até me preocupa. Só temos água para mais um dia e meio, quem sabe, dois.
-Fique tranquilo, pulguento. Garanto que encontraremos água e muito mais do que necessitamos.
-Quando?
-Assim que sairmos desse invólucro de lava - disse Flora - Como você quer que as nascentes jorrem através dessas paredes?
Flora sabia o que estava dizendo. Ela foi treinada pelas Norueguesas para sobreviver por cada cenário e situação. Não é atoa o relacionamento saudável e firme entre as Norueguesas de Ramdahmut e os Mymercianos, elas tinham formigueiros tão grandes quanto vastos reinos da superfície, tudo debaixo da terra. E abaixo de Sarin, havia uma enorme colônia que as Norueguesas iam praticar sobrevivência por lá, sendo ensinadas pelos próprios Mymercianos.
-E se essa corrente se prolongar por muito tempo? Parece que ainda não descemos muito na vertical. - comentou Sirius.
-Por que essa suspeita? -Perguntou Zafira.
-Porque, se tivéssemos avançado bastante para dentro da terra, o calor não seria mais forte?
Gerlon tirou da bolsa um termômetro e jogou para Sirius, que quase o deixou cair no chão.
-Qual a temperatura que o termômetro está marcando?
-Vinte e cinco graus, o que indica que a temperatura só aumentou uns quatro ou cinco graus desde de nossa partida.
-Correto.
-E se eu estiver aprendido corretamente na escola, a temperatura aumenta um grau a cada trinta metros no interior da terra.
-Mas algumas condições de localidade podem modificar esses números. -Acrescentou Mikka.
-Correto - disse Gerlon.
-Mas acrescentaria também que, nas proximidades de um vulcão extinto e através de geisse, observou-se que a temperatura aumentava apenas um grau a cada trinta e oito metros. Tomemos então, essa última hipótese, que é a mais favorável, e façamos os cálculos.
Spike e Zafira apenas observava atentamente.
-Calcule, então -Disse Gerlon.
-Eu não sei calcular. Tenho discalculia funcional -comentou Sirius, com vergonha.
-O que ele quer dizer é que: segundo essa análise dele, já estamos a uns… três quilômetros de profundidade, acredito eu. -Disse Mikka, tomando a dianteira.
-Correto. - concordou Gerlon - e então?
-Então que, já estamos a três quilômetros abaixo do nível do mar! -Disse Sirius.
-Seria possível? -Perguntou Zafira.
-Claro, a não ser que os números estejam errados. Ou eu esteja, e pelo meu erro, nós morreremos.
A temperatura, que deveria ser de oitenta e um graus naquele lugar, era de apenas vinte e cinco. O que provocava reflexões.
Naquela noite, eles descansaram por ali mesmo. O Namida Ecolita de Sirius ainda brilhava num verde intenso como uma floresta. Na manhã seguinte, continuaram a seguir pela galeria de lavar, uma verdadeira rampa natural, suave como os planos inclinados que ainda substituem as escadas nas velhas casas. Eles caminharam até que o Namida Ecolita de Sirius parou de brilhar.
-Chegamos a extremidade da descida. -Disse Flora.
Olharam ao redor. Estavam dentro de uma encruzilhada, onde terminavam dois caminhos, ambos escuros e estreitos. Por qual caminho seguir? Era difícil resolver.
Gerlon, entretanto, não quis parecer hesitante diante daquela situação, designou o túnel leste, e logo estavam os seis dentro dele.
Além disso, qualquer hesitação diante dos dois caminhos teria se prolongado indefinidamente, por nenhum indício poderia determinar a opção por um ou outro. Tinham de colocar-se nas mãos do acaso.
A inclinação da nova galeria era pouco sensível, e seu perfil bastante desigual. Por vezes, uma sucessão de arcos de abóbada desenvolvia-se diante deles como nas naves de uma catedral gótica. Era de se imaginar que os artistas antigos teriam pedido podido estudar ali, todas as formas daquela arquitetura cujo gerador é a ogiva. Um pouco além, tiveram que se inclinar para atravessar os arcos rebaixados de estilo romano, e grandes pilares encastrados no maciço dobravam-se sobre o assento das abóbadas. Em certos trechos, essa disposição era substituída por substrucções baixa, que pareciam obras de castores, e rastejavam por passagens estreitas. O calor era suportável. Involuntariamente pensavam em sua intensidade quando as lavas vomitadas pelos vulcões submarinos precipitavam-se por aquele caminho hoje tão tranquilo. Imaginava as torrentes de fogo quebradas pelos ângulos da galeria e o acúmulo de vapores superaquecidos naquele ambiente tão estreito.
Sirius esperava que nenhum desses vulcões submarinos despertasse justo quando eles estivessem de passagem. Ele não comunicou seus pensamentos aos outros, que não os compreenderam, talvez Spike ou Flora. Talvez. Seu único pensamento era seguir em frente. Caminhava, escorregava e até descambava, com a convicção de que, afinal de contas, era melhor admirar.
Após algumas horas de caminhada extenuante, haviam percorrido mais quatro quilômetros para o leste, mas só caminharam um quarto do percurso até sair do outro lado.
Gerlon deu o sinal de descanso, comeram sem conversar muito, e dormiram sem pensar mais.
Suas disposições para a noite eram bem simples: um cobertor de viagem, na qual se enrolavam, era toda a suas roupas de cama que tinham recebido dos caçadores do acampamento. Não tinham que temer o frio ou visitar inoportunas. Os viajantes que se embrenham pelos desertos de Madrash ou de Shandora, em Laurásia, ou das Florestas densas de Gondwana, são obrigados a montar guarda durante as horas de sono. Com eles, solidão absoluta e segurança completa. Não precisavam ter medo de nenhuma raça malfeitora, selvagem ou de demônios ferozes.
No dia seguinte, acordaram restabelecidos e dispostos. Continuaram a andar. Seguiam por um caminho de lava como no dia anterior. Impossível reconhecer a natureza dos terrenos que atravessava. Em vez de penetrar nas entranhas da terra, o túnel tendia a ficar completamente horizontal (para o alívio de Sirius). Achou que estavam voltando para a superfície e acabar saindo no meio do mar. Essa disposição tornou-se tão manifesta por volta das nove da manhã, e, consequentemente tão cansativo, que foram obrigados a moderar a marcha.
-O que houve, Sirius? - Perguntou Spike.
-Acontece que não aguento mais - disse.
-Depois de um passeio fácil desse? - disse Gerlon.
-Não estou dizendo que é fácil, mas é extenuante.
-Como? Estamos descendo!
-Estamos subindo! Faz meia hora que as inclinações se modificaram, e se continuarmos assim, com certeza voltaremos a terra firme.
-Acima de nós só tem água - completou Flora.
-Obrigado.
Gerlon abanou a cabeça como alguém que não quer ser convencido. Sirius tentou reencetar a conversa. Ele não respondeu a seu questionamento e deu sinal de partida. Reparou que seu silêncio não passava de mau humor concentrado.
-Flora? - chamou o pirata.
-Sim? - respondeu a imediata.
-Provavelmente estamos perto de um dos salões do antigo castelo. As elevações provavelmente nos levaram a uma das câmaras.
Flora apenas concordou com a cabeça.
Sirius pegou seu fardo com coragem e seguiu com rapidez atrás do grupo. Ele fazia questão de não se afastar. Sua grande preocupação era não perder seus companheiros e Mikka de vista. Tremia ao pensamento de extraviar-se nas profundezas daquele labirinto.
Abaixo de tanta água, jamais era possível imaginar de que havia um intrincado labirinto antigo de inúmeras ruínas infinitas.
Embora o caminho ascendente se tornasse mais penoso, consolava-se pensar que se aproximava de uma câmara do castelo. Era uma esperança. Cada passada confirmava-se e o animava antecipadamente, a ideia de rever algo construído pela civilização. Que desse conforto de algo construído ali, tão fundo e isolado do resto dos continentes.
Ao meio-dia, as paredes da galeria mudaram de aspecto, o que foi percebido pelo enfraquecimento da luz elétrica refletida nas muralhas. A rocha via substituía o revestimento de lava. O maciço era composto de camadas inclinadas, geralmente dispostas na vertical. Estavam em plena época de transição, do natural para o trabalho esculpido.
Estátuas de homens guerreiros e demônios eram esculpidos na própria parede, em forma de advertência. Um portão pesado estava destruído, dando passagem para a próxima galeria.
Estavam deixando o maciço granítico, parecendo imponente e ao mesmo tempo, assustador.
Sirius exclamou! As paredes evidenciavam claramente todas as épocas geológicas do mundo de Evânia.
Flora se aproximou da parede.
-Veja -disse, mostrando-lhe a sucessão variada de grés, calcário e os primeiros vestígios dos terrenos cobertos de ardósia. -vocês não imaginam as histórias antigas que este solo sagrado contaria, se pudesse.
-Tipo? -Perguntou Sirius.
-Este aqui, do período em que apareceram as primeiras plantas e os primeiros seres vivos.
Gerlon passeou seu equipamento elétrico pelas paredes da galeria. Nada disse e continuou a andar.
Zafira catou do chão, uma concha em perfeito estado, que provavelmente pertencera a um animal semelhante ao bicho-de-conta.
O grande salão que eles adentrava agora era oval e amplo.
O palácio de Helx foi um antigo palácio que ocupava o planalto central de Helx, a passagem que ligava os dois continentes. Mas que agora, foi invadido por mortos-vivos, morcegos, demônios e outras criaturas perigosas. No lado norte, havia um outro enorme portão de pedra que levava aos andares superiores daquela câmara. A única realeza que atualmente reside naquelas ruínas, é uma família de mandrágoras que tem causado sérios problemas a viajantes que ainda usam a passagem. Várias criaturas antigas e poderosas estão trancadas nas profundezas do palácio da caverna.
Um gigantesco complexo subterrâneo se erguia à frente deles. Flora imaginou os inúmeros conflitos que os moradores de Helx tiveram com os Mymercianos durante milhares de anos que a passagem havia sido construída. O labirinto era composto por cavernas naturais e ruínas abandonadas do próprio Castelo de Helx. Cachoeiras criaram-se com a medida das escavações sob o Théthis Norte, criando ali um bioma único. Com plantas crescendo no local por sementes adormecidas que caiam das bolsas dos viajantes que por ali passavam, assim como criaturas foram atraídas pelas cavernas e por ali decidiram viver. Há quem diga que ainda habitam criaturas que deveriam ter sido extintas há milhares de anos, ainda andando sobre aquelas cavernas.
Muitos de seus caminhos e passagens permanecem desconhecidos nos mapas atuais. Pelo estilo das talhas que adoram algumas das paredes, pensa-sd que o complexo foi construído em algum momento durante a Aliança de Nibelungo, na era de Gaiseric. Uma missão de pesquisa foi iniciada para mapear os muitos corredores aqui, mas uma infestação particularmente desagradável de criaturas prejudicou significativamente o progresso.
Em um dos cantos, ele se aconchegaram para comer, e perceberam que suas previsões não durariam mais de três dias. E, terrível expectativa, tinham pouca esperança de encontrar qualquer nascente naqueles terrenos.
Durante todo o dia seguinte, a galeria exibiu seus intermináveis arcos. Caminhavam sem dizer quase nada. Estavam sendo possuídos pelo mutismo de Spike.
A estrada não subia, pelo menos de forma sensível. Por vezes, até parecia inclinar-se. Mas essa tendência, muito pouco marcada, não poderia tranquilizar o grupo, pois a natureza das camadas não estava se modificando, sinal de que eles provavelmente estariam ainda longe da saída.
A luz elétrica fazia os xistos, o calcário e os velhos grés vermelhos das paredes faiscarem com esplendor. Pareciam estar num fosso aberto. As paredes e as muralhas eram revestidas por magníficos gêneros de mármore, alguns de um cinza-ágata com veios brancos caprichosamente nítidos, outros encarnados ou de um amarelo manchado de vermelho, mais além, amostras de mármore raiado de vermelho enegrecido, no qual o calcário se destacava em cores vivas.
A maioria desses mármores apresentavam pegadas de animais primitivos. A criação progrediram de forma evidente desde a véspera. Em vez de trilobites rudimentares, eles viam vestígios de uma ordem mais perfeita: entre outras coisas, peixes ganóides e Sauropteris, nos quais a observação de paleontólogos soube descobrir as primeiras formas de répteis. Os mares devonianos eram habitados por um grande número de animais daquela espécie, que foram depositados aos milhares nas rochas de nova formação.
Tornava-se evidente que estavam subindo a escala da vida animal de Evânia, cujo topo é ocupado por evanianos, homens, Gimnis, gigantes, fadas, centauros, faunos, elfos e anãos.
Após uma noite, Sirius começou a sentir tormentos de sede, o pequeno grupo embrenhou-se de novo pelos labirintos cobertos por um véu de água salgada das galerias. Após dez horas de caminhada, perceberam que a reverberação das lâmpadas nas paredes diminuíram singularmente. O mármore, o xisto, o calcário e o grés das muralhas cediam lugar a um revestimento escuro e sem brilho. Num momento em que o túnel se tornara muito estreito, Mikka encostou na parede da esquerda.
Quando tirou a mão, ela estava completamente negra. Olhou com mais atenção. Estavam em plena hulheira.
-Mas o que…? -exclamou ela.
Flora se aproximou:
-Uma mina de carvão.
Todos pararam.
-Uma mina sem mineiros - disse Sirius.
-Com certeza, essa galeria perfurada através das camadas de hulha não foram feitas por homens. Mas pouco importa se foi construída ou não pela natureza - Disse Flora
Eles seguiram mais em frente. Meia hora depois, chegaram numa ampla escavação. O teto era sustentado milagrosamente por abóbadas em equilíbrio.
Essa caverna tinha trinta metros de largura e cento e cinquenta de altura. O terreno havia sido violentamente afastado por uma comoção subterrânea. Cedendo a algum impulso poderoso, o maciço terrestre deslocou-se, deixando aquele vasto vazio onde os viajantes passavam.
Toda a história do período hulheiro estava escrita naquelas paredes escuras, e um especialista, geólogo, poderia acompanhar com facilidade as diversas fases. Os leitos de carvão eram separados por extratos de grés ou de argila compactos e como que esmagados pelas camadas superiores.
Nessa era do mundo evaniano, que precedeu a era secundária, o planeta foi recoberto por uma vegetação compacta em virtude do calor tropical e da umidade persistente. Uma atmosfera de vapores envolvia todo o globo, escondendo ainda os raios do sol.
Daí a conclusão de que as altas temperaturas não provinham desse novo centro. Talvez até mesmo os astros dos dias não estivessem pronto para desempenhar seu brilhante papel. Os climas ainda não existiam, e um calor tórrido espalhava-se por toda a superfície do mundo, igual na Linha Indominus (o Equador evaniano) e nos pólos. De onde vinha? Do interior do mundo.
Gerlon havia conhecido um cientista humano, anos atrás, e ouviu um pouco sobre suas teorias sobre o mundo de Evânia. Um fogo violento espalhava-se pelas entranhas do esteróide, sua ação era sensível até nas últimas camadas da crosta terrestre, privadas da ação benéfica dos eflúvios do sol, as plantas não davam flores, nem perfumes, mas suas raízes extraíram muita vida dos terrenos ardentes dos primeiros dias. Com o tempo, as primeiras árvores colossais foram nascendo e crescendo, até chegar nos tamanhos e exagerados de hoje.
Havia poucas árvores também, assim como plantas herbacéas, imensos gramados, licopódios, asterofilitas, famílias raras cujo espécimes contavam então aos milhares.
Então interveio a ação da química natural: no fundo do mar, as massas vegetais a princípio viraram turfa. Depois, graças à influência dos gases e sob o fogo da fermentação, sofreram uma mineralização completa. Assim formaram-se as imensas camadas de carvão, que o consumo excessivo deve, no entanto, esgotar em cinco mil anos, claro, dependendo de quem encontrasse esse tesouro quase infinito de carvão. Depende de qual império…
Refletia tudo isso enquanto consideravam as riquezas em carvão acumuladas naquela parte do maciço terrestre. Ora, quem se importaria de regredir a utilizar energia em carvão? Sendo que o evaniarites são mais eficazes e mais energéticos que qualquer outra coisa que há em Evânia? Essas, com certeza (a mina de carvão) nunca seriam exploradas novamente, pensariam isso que os antigos habitantes do reino de Helx talvez explorassem no passado longínquos deles, pois o aproveitamento daquelas minas afastadas exigiriam sacrifícios demais. Além disso, para quê, se a hulha ainda pode ser encontrada na superfície da terra em um grande número de regiões? Mesmo em Pangeia ou em Gondwana, até mesmo em Laurásia. Aquelas camadas intactas que se via, assim permaneceriam até a última hora do mundo.
Enquanto isso, caminhavam, e, sozinhos, esqueciam-se do longo percursos para se perder em seus pensamentos individuais, aprisionados em seus próprios mundos particulares. A temperatura permanecia mais ou menos a mesma que a da passagem entre as lavas e xistos, e Sirius esperava que não ficasse pior.
Felizmente o caminho era iluminado pelos engenhosos e antigos (e rústicos) aparelhos de Ruhmkorff. Se, por azar, estivessem devidos aquelas galerias com tochas, uma terrível explosão acabaria a viagem, suprimindo o grupo.
A excursão na hulheira durou até a noite. As trevas sempre profundas a dez passos, os impediam de estimar o comprimento exato da galeria, e alguns deles começavam a acreditar que não terminaria nunca, quando, de repente, se separaram com um muro. Nenhuma passagem pela direita, nem pela esquerda, nem por cima e nem por baixo. Haviam chegado a um beco sem saída.
-Pegamos um caminho errado? -Perguntou Mikka, deixando o cansaço lhe abater.
Flora analisava cada centímetro do muro a frente deles.
-Vamos descansar essa noite. Amanhã, voltaremos pelo caminho, e veremos outras alternativas.
-O seu Namida Ecolita não previu isso? -Perguntou Zafira, incomodada.
-Não, por isso não falei nada o caminho inteiro. -Respondeu Sirius, com um pouco de culpa.
-Não teremos mais forças para voltar! -Disse Zafira, claramente irritada -estamos perdendo tempo! E pra piorar, nossa água termina amanhã!
-E coragem? -Perguntou Gerlon, colocando sua bolsa no chão e encostando a cabeça.
Os outros não ouseram responder, e o imitaram.
★★★
Na manhã seguinte, partiram logo cedo. Tinham que andar depressa, pois estavam a três dias (ou seriam quatro?) de marcha da encruzilhada. O Namida Ecolita de Sirius permanecia frio e escuro. Secretamente, ele tentava de alguma forma fazê-lo funcionar, seja dando batidinhas leves, proferindo palavras estranhas que ele achava que estava recitando feitiços mágicos, ou conversando com ele como se fossem velhos amigos.
Zafira suportou todo o sofrimento da volta em um silêncio furioso. Spike, com sua resignação de sua natureza pacífica, e Sirius e Mikka, se lamentando e entrando em desespero, achavam que não conseguiram ter coragem e esperança a tanto azar.
Como Sirius havia previsto, a água acabou no final do primeiro dia de caminhada para a volta. A provisão líquida reduziu-se então a genebra, mas o licor infernal que os caçadores e contrabandistas lhe deram, queimava a garganta. Principalmente Mikka, já aí aguentava mais vê-lo e passara a achar sua temperatura sufocante. O cansaço paralisava de tempos em tempos. Por mais de uma vez, ela caira, inerte. Então, eles paravam. Spike e Flora procuravam reconfortar os mais jovens como podiam. Gerlon e Zafira começava a dar os primeiros sinais, mesmo que penosamente, uma fadiga extrema e algumas tonturas devido a privação da água.
Foi apenas no caminho da volta, que os primeiros encontros com criaturas mortíferas aconteceram.
As primeiras criaturas que eles encontraram eram semelhantes a pequenos diabretes, de escama verde escuro, com aspecto de musgo, uma boca grande e dentes tão pequenos quanto agulhas. Os diabos verdes vivam com um sorriso diabólico no rosto e suas asas membranosas exalavam um forte odor de carniça. Gerlon, Spike e Zafira deram conta de oito deles, até umas enorme manada vinda de algum lugar do teto, desceu sobre eles e eles tiveram que recuar o mais rápido possível.
Finalmente, arrastando-se de joelhos, de quatro, Sirius e os outros chegaram semimortos ao ponto de encontro de duas galerias. O Namida Ecolita de Sirius voltou a brilhar , pulsava em intervalos curtos um verde brilhante e denso. Sirius jogou-se ao chão como uma massa inerte, estendido no chão de lava. Encostados na paredes, Gerlon e Flora mastigavam alguns biscoitos. Seus lábios intumescidos soltavam longos gemidos.
-Pobres crianças - dizia Spike ao encarar Sirius e Mikka, exaustos.
Não estavam habituados a ternura selvagem da jornada, mas sentiram-se tocados pela compaixão do velho capitão. Estendeu suas mãos trêmulas entre as de Mikka. Ele as abandonou. Seus olhos estavam úmidos.
Pelo canto da visão, Sirius viu alguém pegar um cantil de dentro da bolsa. Para sua grande surpresa, aproximou de seus lábios.
-Beba -disse uma voz feminina.
Ao abrir seus olhos, Zafira o tentava ajudar a dar pequenos goles.
-Beba - repetiu.
E erguendo o cantil, esvaziou o cantil inteiro em segundos entre seus lábios.
Um gole de água umedeceu a boca de fogo do chowchow. Um gole somente foi o suficiente para trazê-lo de volta a vida, e o ânimo foi restaurado.
-Este foi o último gole -disse a princesa - guardei com cuidado no fundo do meu cantil. Lutei bastante para resistir a maldita tentação de beber. Mas estava reservado para você.
Sirius se sentou, incrédulo. Um sentimento de culpa se abateu sobre ele. Se ele tivesse prestado mais atenção que seu Namida Ecolita não estava funcionando, todo aquele caminho não lhes teria tirado uns bons dias de avanço. Suprimentos perdidos num caminho inútil agora estavam se esvaindo. Ele encarou o rosto de seus companheiros sobre a luz dos aparelhos de Rumhkorff. Assim como ele, eles estavam abatidos e cansaços.
-Guardei para quando chegarmos nessa encruzilhada, você cairia de cansaço, e guardei minhas últimas gotas para reanima-lo.
-Porque… porque você fez isso? -perguntou o garoto.
-Que tipo de rainha eu serei, se não puder cuidar de apenas um único órfão? Como poderei cuidar de meu povo, se não posso cuidar de uma única pessoa?
Sirius abriu um leve sorriso. Zafira o ajudou a ficar de pé.
-Obrigado -disse.
Embora ainda estivesse com sede, a água foi muito revigorante. Os músculos de sua garganta, contraídos até então, relaxaram, e a inflamação de seus lábios passou a doer menos. Já conseguia falar.
Entraram numa outra grande galeria, e em pé, enormes corpos robustos e fortes estavam frentes um para o outro, inertes. O detalhe que mais chamou atenção é que eles não possuíam cabeças, e nem pescoços. Mas seus peitos moviam-se como os pulmões incham ao respirar. Onde deveria estar seu pescoço e sua cabeça, um colar de ferro que se prende ao seu corpo como correntes.
Sendo um homem condenado, seu sangue se transformou pela tortura em puro veneno, queimando suas veias. Ataca sem restrição ou piedade, pois somente no momento em que separa a cabeça do torso de suas vítimas ele conhece o alívio da agonia. O colar que ele usa tem o formato da flor cujo veneno percorre sua alma torturada e é incrustada com máfia para evitar que qualquer soro alivie seu sofrimento. Nos tempos antigos, certas tribos cortavam as cabeças dos caídos e entregavam o corpo a um enterro aquático, o que explicaria encontrar várias dessas criaturas abaixo do mar. Ao comer os chefes das famílias perdidas, acreditava-se que seria possível vincular suas almas como espíritos protetores. Tais práticas foram abandonadas há muito tempo, mas seu legado por ser visto nos cadáveres encharcados que desde então surgiram para escavar a terra em busca de seus parentes enterrados.
O que lhes faziam pensar se encontram seus familiares presos naquelas cavernas, antes ou depois de serem mortos após o colapso de Helx.
Um a um, aquelas criaturas iam caindo, Spike tomava a vanguarda do confronto, seguido por Zafira e Gerlon. As criaturas eram poderosas, apesar não terem cabeças e nem armas, seus socos poderosos rachavam rochas e até o chão quando acertados, o que lhes faziam redobrar a atenção.
Sirius, Mikka e Flora correram pela lateral, próximos a parede a um caminho a frente. As criaturas eram poderosas, apesar de serem mais lentos. Spike utilizava sua espada de aura roxa, ela destroçava as estátuas das criaturas com facilidade.
Os combates não eram para valer, era apenas para abrir caminho. O suficiente para que temporariamente, desse espaço para se afastarem o mais rápido possível, antes que mais criaturas nefastas surgissem da escuridão.
★★★
Desde o início da jornada até Arghar, já tiveram muitas surpresas: acreditavam estar imune a elas os tornariam indiferentes a qualquer estupor. Ao ver, contudo, aquelas ruínas tombadas a milhares de séculos. Sirius foi possuído por um assombro próximo a estupidez. Não somente via as ruínas do antigo reino que ali habitava, ainda seu Namida Ecólita não havia voltado a funcionar. A menos que isso fosse um sinal de má-fé, já não podia colocar em dúvida a força de vontade de chegar até ali, encarando a realidade da viagem.
Enquanto essas reflexões giravam em turbilhão na mente dele, Gerlon tinha um acesso estupendo em relação aquela jornada. Ele se mantiveram focado desde do início. Notara que seus comentários sarcásticos haviam diminuído drasticamente a ponto de virar motivos de cochicho entre Mikka, Flora e Zafira.
Spike encorajava Sirius nos momentos mais difíceis daquela jornada. O ex-capitão era muito bom em motivar eles quando o simples pesado momento de querer jogar tudo para o alto quando tudo parece difícil ou impossível. Afinal, ele foi um capitão do exército de Henry. Ele foi capitão de Snowden. Sirius se perguntou se seu irmão estivera motivado o bastante para segui-lo, a ponto de sacrificar sua vida pelo reino.
Eis que, mais ou menos, ouvindo o entusiasmo de Spike, o jovem chowchow sentiu que o entusiasmo transmitido por aquelas palavras começava a dominar-lhe. Um fogo interior ardia em seu peito. Esquecia de tudo, os perigos da viagem, os riscos do retorno. Queria fazer aquilo, não porque ele achava que tinha que fazer, mas porquê ele TINHA que fazer. Havia alguém na Capital Império que precisava dele, e ele não a abandonaria.
-Avante! - Disse Spike.
Já precipitada em direção à escura galeria, quando Gerlon o deteu, e ele, o homem de impulsos, o aconselhou a ir com paciência e sangue frio.
★★★
Até certo tempo, deve-se confessar que as coisas estavam indo bem até então e que não tinha do que reclamar. Se a média das dificuldades não aumentasse, não deixariam de alcançar seus objetivos. E então, finalmente, uma vitória! Chegaram a ter esses pensamentos “à la Gerlon” (pelo menos era o mais otimista do grupo. Seria devido ao meio estranho em que viviam naquele momento? Talvez.
Durante algumas horas, foram levados para o fundo do maciço interno por inclinações mais rápidas, algumas de surpreendente verticalidade. Em certos momentos, avançavam dois quilômetros.
Descidas perigosas, para as quais a habilidade de Gerlon, Flora e Mikka lhes foram muito úteis. O impassível pirata e a inabalável bruxa Noru sacrificavam-se com uma incompreensível desenvoltura, e graças a eles, superaram vários obstáculos, que somente os outros não teriam conseguido ultrapassar.
Por exemplo, seu mutismo aumentava a casa hora que passava. Era capaz até de impregnar neles. Os objetos externos exercem uma ação real sobre o cérebro. Os que estão presos entre quatro paredes acabam por perder a faculdade de associar as ideias e as palavras. Quantos prisioneiros se tornaram imbecis e até loucos por não exercitar o raciocínio. No dia seguinte após a última conversa à suas últimas conversas, a rotina tornara quase que uma repetição dos dias que passaram ali embaixo.
Suas sucessivas descidas haviam nos conduzido a uma profundidade de cento e vinte e seis quilômetros, ou seja, havia cento e vinte e seis quilômetros de rochas, fósseis, oceano, continentes e impérios e reinos sobre suas cabeças.
Naquele dia, o túnel seguia um plano pouco inclinado. Sirius caminhava à frente junto a Flora, que carregava um dos aparelho de Ruhmkorff e o Gerlon, o outro. Examinaram as camadas de granito. De repente, quando Sirius e Flora se viraram, perceberam que estavam sozinhos.
“Bem”, pensou Sirius, “ou estávamos andando depressa demais, ou os outros se distrairam vendo outras coisas. Vamos voltar até eles. Felizmente a subida não é das piores”.
Voltaram atrás. Caminharam por uns quinze minutos. Olharam. Ninguém. Chamaram. Nenhuma resposta. Sua voz perdeu-se em ecos cavernosos de repente.
Sirius começou a ficar nervoso, porém Flora se manteve inabalável. O corpo do Chow Chow foi percorrido por um arrepio.
-Calma - disse Sirius em voz alta. - Tenho certeza de que nos encontraremos meus companheiros. Não há dois caminhos! Não, não… ora, estávamos na frente, basta voltar.
Flora permaneceu fria e em silêncio. Parece que ela estava apenas esperando que o garoto se auto controlasse por si mesmo.
Ela seguiu em frente, e Sirius a seguiu. Subiram por mais uma meia hora. Prestava atenção para tentar ouvir algum chamado que, naquela atmosfera tão densa, podia chegar a eles de longe. Reinava um silêncio extraordinário na imensa galeria.
Pararam. Não conseguiam acreditar no isolamento que lhes assolava. Sirius adoraria ter se enganado e não perdido. É mais fácil encontrar o caminho quando só se engana.
-Vejamos - repetia Sirius - como só há um caminho, e eles o seguem, devemos reencontra-los em breve. Basta subir mais um pouco. A menos que… como não nos vissem e tenham se esquecido de que nós estávamos mais a frente, talvez tenham tido a idéia de voltar.
Flora se aproximou.
-Procura se acalmar. Você atribulado desse jeito, não vamos sair daqui. Para onde o Namida Ecolita está apontando?
Sirius olhou para o amuleto. O cristal verde brilhava num tom esmeralda e um feixe de luz apontava para o caminho a frente deles.
-Não mudou de direção.
-Muito bem, mesmo nesse caso, se nos apressarmos, não deixaremos de encontrá-los.
Sirius repetiu as palavras de Flora na mente, nada convencido, mas lhe pareceu reconfortante.
Além disso, para associar essas idéias tão simples e reuni-las em forma de raciocínio, demoraram muito tempo.
Uma dúvida lhe assaltou-lhe. Será que eles estavam mesmo na frente? É claro, Spike e Zafira estavam bem atrás deles, e na frente de Mikka e Gerlon. Até pararam por alguns momentos para amarrar melhor a bagagem em seu ombro. Esse detalhe voltavam a sua cabeça. Foi justamente naquele momento que deve ter continuado.
“Além disso” pensou o garoto “há um meio seguro de não me perder, um fio que não quebra para guiar-me nesse labirinto, o meu fiel amuleto, e o nosso riacho”.
Riacho? Sim, RIACHO! Sirius agora conseguia ouvir som de água corrente vindo de algum lugar. Talvez passando tanto tempo no silêncio e na escuridão, ele começou outros sons que antes não chegavam aos seus ouvidos. Flora pareceu notar que ele começara a ouvir também.
Bastava agora subir o seu curso e forçosamente encontraram as pistas do resto do grupo.
Esse raciocínio reanimou os dois e resolveram recomeçar a andar sem perda de tempo. Como bendisse então a precaução de Gerlon, que impediu do ex-capitão de fechar o entalhe feito na parede de granito! Dessa forma, além de saciar suas sede, a fonte benéfica iria iria guiar eles pelas sinuosidades da crosta terrestre.
Antes de começar a subir, acharam uma ablução que lhes faria bem. Abaixaram para mergulhar o rosto na água. Estavam pisando num granito e áspero! O riacho não estava mais correndo a seus pés.
★★★
Não conseguiria descrever seu desespero. Nenhuma palavra conseguiria transmitir o que Sirius estava sentindo. Estava enterrado vivo (assim como ele costumava pensar) tendo como perspectiva morrer em meios as torturas da fome e da sede. Passava maquinalmente as mãos ardentes pelo chão. Como aquela rocha parecia ressecada. Como teria abandonado o curso do riacho? Afinal, ele não estava mais ali! Então compreendeu o motivo daquele silêncio estranho quando, pela última vez, prestou atenção para tentar ouvir algum chamado de seus companheiros. Quando deu o primeiro passo, o conduziu para àquele caminho imprudente, não reparou na ausência do riacho.
É evidente que, naquele momento, uma bifurcação da galeria abrira-se diante deles, enquanto Spike e Gerlon, obedecendo aos caprichos de uma outra inclinação, ia junto ao grupo em direção as profundezas desconhecidas. Como voltar? Não havia qualquer pistas! Suas pegadas não deixaram qualquer marca no granito.
Quebrava a cabeça procurando a solução para aquele problema insolúvel. Sua situação resumia-se a uma só palavra: perdidos!
Sim, perdidos a uma profundidade que se parecia incomensurável! O peso dos cento e vinte e seis quilômetros de crosta terrestre nos ombros era terrível. Sirius se sentia esmagado.
Tentou voltar seus pensamentos as coisas cotidianas, o que consegui com enorme dificuldade. Capital Império, sua casa, Zaya, o céu azul e brilhante acima de Henry, a brisa refrescante do céu no convés da Bichano… todo aquele mundo sob o qual eles estavam perdido passou rapidamente pela sua memória sobressaltada. Numa vivida alucinação, reviu os incidentes daquela viagem, a travessia, Burlmugaron, Arrokoth, Rahma Haruna, Selena também. Disse a si mesmo que, se conservasse na sua situação qualquer sombra de esperança, seria sinal de loucura, e que era melhor ficar desesperado.
De fato, que poder sobrehumano poderia leva-lo de volta a superfície do mundo e desconjuntar as enormes abóbadas que se escoravam sobre a sua cabeça. Quem conseguiria recolocar-se no caminho certo e fazer com que ele voltasse para junto de seus companheiros?
-Maldito pirata! Maldita viagem! -gritou em desespero.
Foi a única palavra de censura que lhe veio aos lábios, pois compreendeu quanto aquele pirata também infeliz deveria estar sofrendo a sua procura (ou de sua companheira).
Quando se viu assim, desprovido de qualquer possibilidade de auxílio, incapaz de tentar algo para se salvar, pensou no auxílio do céu. As lembranças de sua infância, de sua mãe, que lhe amava muito e ao seu irmão. Ao cheiro de biscoitos e cafés na tarde. As brincadeiras de seu pai, enquanto ensinava Snowden a empunhar uma espada voltaram a sua mente. Recorreu à oração, embora tivesse pouco direito de ser ouvido pelas deusas, ao qual se dirigia tão tarde, e implorou com fervor. O recurso à providência o acalmou um pouco, e conseguiu concentrar todas as forças da inteligência em sua situação. Tinha víveres para três dias mais, e seu cantil estava cheio. No entanto, não podia ficar separado por mais tempo que isso.
Deveria subir ou descer?
É claro que subir! Sempre!
Deveria chegar ao ponto em que abandonaram a nascente, à bifurcação funesta. Ali, com o riacho a seus pés, sempre poderia subir ao tipo de onde voltara. Como não pensara nisso antes?! Era a sua chance de salvação! O mais importante era, portanto, reencontrar o curso de Spike.
Flora o ajudou a se levantar e, sustentando-o nos seus ombros, subiram a galeria. Era uma vertente bastante íngreme. Caminhavam cheio de esperança e sem maiores problemas, como um homem que não tem de optar por um caminho.
Por cerca de meia hora, não foram detidos por qualquer obstáculo. Tentava reconhecer o caminho pela forma do túnel, pelas saliências de certas rochas, pela disposição das cavidades. Mas nenhum sinal particular chamou sua atenção, e logo tornou-se evidente que aquela galeria não os conduziria à bifurcação. Não tinha saída. Deram com uma parede impenetrável e caíram na pedra.
Era impossível descrever o pavor que o garoto sentira, o seu desespero. Estava aniquilado. Sua última esperança acabara de romper naquela muralha de granito. Não tinha como tentar uma fuga impossível naquele labirinto cujas sinuosidades se cruzavam em todos os sentidos! Deveria enfrentar a pior de todas as mortes! E, coisa estranha, pensou que, se um dia seu corpo fossilizado fosse encontrado a cento e vinte e seis quilômetros nas entranhas da terra, o fato levantaria seríssimas questões científicas. Queria falar em voz alta, mas apenas tons roucos atravessaram seus lábios ressecados. Eles ofegavam. Além de todas essas angústias, foi possuído por um outro terror. O aparelho de Ruhmkorff de Flora estragou-se só cair. Não havia qualquer meio de consertá-lo. Sua luz estava se apagando e iria lhe faltar.
Via-se a corrente luminosa diminuindo na serpentina do aparelho. Uma procissão de sombras moventes desenrolou-se nas paredes obscurecidas. Nem ousava mais abaixar as pálpebras de medo de perder o menor brilho de luz, seja do brilho emanado pelo Namida Ecolita ou pelo brilho noturno dos olhos felinos de Flora.
A todo instante achava que iria apagar-se e que a escuridão o invadiria. Finalmente, um último clarão terminou no aparelho de Ruhmkorff tremulou. Acompanhou, aspirando com o olhar. Concentrou nele todo o poder de seus olhos, como na última sensação de luz que lhes fosse concedido sentir, e submergir em trevas profundas. Na Ferraz nas noites mais escuras, nunca a luz desaparece completamente, é difuso, é sútil, mas por menos luz que reste, a retina do olho acaba conseguindo vê-la. Ali, nada! A total escuridão transformava num cego em todos os sentidos do termo. Foi então que perdeu a cabeça. Ergueu-se com ajuda de Flora, os braços ao redor de seu pescoço, tentando apalpadelas das mais dolorosas. Começou a fugir, precipitando-se pelo inextrincável labirinto, sempre descendo, andando pela crosta terrestre como habitantes das falhas subterrâneas, chamando, gritando, urrando, Flora deve ter arranhado a palma das suas mãos por causa das saliências das rochas, caindo e erguendo o garoto, que por sua vez, seus pés doíam bastante.
Para onde foram conduzidos aquela caminhada a esmo? Continuava a ignora-lo. Depois de várias horas, sem dúvida quase sem forças, Sirius caiu como uma massa inerte ao longo da parede e perdeu qualquer sentimento de vida.
★★★
Quando voltou a si, seu rosto estava molhado, mas molhado de lágrimas. Não sabia dizer por quanto tempo tinha ficado desmaiado. Não tinha mais qualquer meio de noção de tempo.
Nunca houve solidão tão grande quanto a de Sirius, nunca um abandono tão completo.
Flora tinha as mãos trêmulas, perdera muito sangue com as incongruências das rochas, a escuridão ali embaixo era mais escura e negra que o habitual. Ela tinha uma excelente visão noturna, conseguia enxergar como se fosse dia, mas ali era demais. Ela já havia imaginado se seria por causa das criaturas negras que ali habitavam.
Sirius lamentava não estar morto e ainda ter tempo pela frente. Não queria mais pensar. Afugentava qualquer ideia e, vencido pela dor, rolou para a parede oposta. Já sentia que iria desmaiar novamente, ou talvez até morrer, quando um barulho violento o chamou atenção deles. Parecia um estrondo prolongado de um trovão, e ouvi as ondas sonoras perdendo-se pouco a pouco nas longínquas profundezas do abismo.
De onde vinha o barulho? Sem dúvida de algum fenômeno do centro do maciço terrestre, ou haveria alguma batalha acontecendo ali? A explosão de um gás ou de alguma poderosa base do globo. Continuou prestando atenção. Queria saber se o ruído se repetiria. Passaram-se trinta minutos. O silêncio reinava na galeria. Nem ouvi mais as respirações ofegantes de Flora, ou as batidas de seu próprio coração. De repente, no seu ouvido, colado à muralha por acaso, acreditou ter surpreendido palavras vagas. Inatingíveis, distantes. Estremeceu.
-É alucinação? -Perguntou para si mesmo, esperando que Flora falasse alguma coisa.
Mas não. Prestando mais atenção, ouvia-se realmente um murmúrio de vozes. Sua fraqueza, porém, não permitiu que entendessem o que diziam. Contudo, havia gente falando, tinha certeza disso.
Por um momento, temeram que aquelas palavras não passassem de alucinações, transmitidas por um eco. Sirius pensou que talvez tivesse gritado inconscientemente. Comprimiu os lábios e colou novamente o ouvido na parede. Flora o encarava com estranheza.
-Há realmente gente falando!
Arrastando-se por alguns metros aos longo da muralha, ouviu claramente. Conseguiu até captar algumas palavras incertas, estranhas, incompreensíveis. Chegavam a ele como se estivessem sendo pronunciadas em voz baixa, de certa forma, murmuradas.
As palavras “Pulguento” foi repetida várias vezes num tom de indignação. O que significava? Quem pronunciava? É claro que Gerlon. Ora, se Sirius os ouvia, eles conseguiriam ouvi-los também!
-Socorro! -gritou Sirius com toda força. -Socorro!
Prestou toda a atenção, espreitou uma resposta, um grito, um suspiro na escuridão. Nada. Passaram-se alguns minutos. Sua cabeça fervilhava de idéias. Achou que a sua voz esmaecida não conseguia alcançar seus companheiros.
-Só podem ser eles! - repetia - Não deve haver outros seres vivos pensantes cento e vinte e seis quilômetros abaixo da superfície da terra.
Voltou a prestar atenção. Escorregando seu ouvido pelas parede, Flora encontrou um ponto estratégico onde as vozes pareciam atingir o máximo de intensidade. Mais uma vez, ouviu-se “Pulguento”, depois aquele ribombar que lhe arrancara do torpor.
-Não - disse. - Não estou ouvindo essas vozes pelo maciço -disse Flora, com um olhar preocupado.
-Como é?! -Disse Sirius, em desespero.
-shhh!
A parede é de granito e nem a maior detonação conseguiria atravessá-la. O barulho vinha pela própria galeria. Deve haver algum efeito acústico bastante singular. Tentaram escutar novamente e dessa vez, sim, ouviram claramente seus nomes percorrer o espaço.
Mikka, Gerlon e Zafira quem os pronunciava. Conversavam entre si, e a palavra Pulguento era repetida várias e várias vezes, em diversas situações. Para que fossem ouvidos, eles deveriam falar ao longo daquela muralha, que serviria para conduzir suas vozes como o fio conduz a eletricidade. Não podiam perder tempo. Bastava que seus companheiros se afastassem um pouco para que o fenômeno de acústica fosse destruído. Então aproximaram-se da muralha e pronunciaram da forma mais clara e possível o seguinte:
-ESTAMOS AQUI! PESSOAL, ESTAMOS AQUI!
Sirius esperou na maior ansiedade. O som não era extremamente rápido ali. A densidade das camadas de ar não aumentava sua velocidade, só aumentava sua intensidade. Alguns segundos, séculos, passaram-se antes que estas palavras chegassem a ele:
-Sirius? É você?
-Sim, sim! - respondeu Sirius.
-Mas que cacetada, onde está você?
-Perdido na maior escuridão!
-Flora está com você?
-Sim!
-E quanto ao aparelho de Ruhmkorff ?
-Apagou, quebrou.
-Como?
-Ele começou a falhar e quebrou.
-E o riacho?
-Desapareceu, não consigo ouvir o som das águas.
-Certo, mantenham-se calmos.
-Esperem um pouco, estamos exaustos! Acho que Flora está com as mãos sangrando. Não temos mais forças para responder, apenas falem com a gente.
-Certo, então não fale, me escuta. Procuramos vocês subindo e descendo a galeria. Impossível encontrar vocês. Mikka chorou muito por você. Finalmente, achando que estava no caminho da gente, tornamos descer dando tiros. Agora, apesar de nossas vozes poderem se encontrar, não podemos chegar até vocês. Mas não se desespere, Sirius. Já é algo positivo podermos ouvir vocês.
Enquanto isso, Flora refletia. Sua excelente visão, que a permitia enxergar mesmo no escuro, notou que a esperança havia voltado para o rosto do garoto, mesmo que ainda vagamente.
Flora aproximou seus lábios da muralha:
-Gerlon?
-Sim?
-Antes de mais nada, temos que saber a distância que nos separa.
-Isso é fácil.
-Você está com o cronômetro? Tem algum dentro da sua bolsa?
-Sim.
-Muito bem. Pronuncie o nome de Sirius e marque com precisão o momento em que disser. Vou repeti-lo assim que nos alcançar, e você também deverá observar o momento em que nossa resposta chegar.
-Bem, e a metade do tempo entre a minha pergunta e sua resposta indicará o tempo que a minha voz leva para chegar até vocês.
-Exatamente, Gerlon. Está pronto?
-Sim.
-Muito bem, preste atenção, vou pronunciar seu nome.
Flora colou seu ouvido à parede e, assim que a palavra “Sirius” chegou até ela, respondeu imediatamente “Gerlon” e aguardou.
-Quarenta segundos - disse o pirata. -Quarenta segundos entre as duas palavras; portanto, o som leva vinte segundos para subir. Ora, calculando… vocês estão há pouco mais de quatro quilômetros.
-Quatro quilômetros? -murmurrou Sirius.
Flora franziu os lábios.
-Devemos subir ou descer?
-Descer, e pelo seguinte motivo: chegamos a um espaço amplo, onde desembocam muitas galerias. Aquela em que vocês entraram, não pode deixar de dar aqui, pois parece que todas as fendas, essas fraturas do globo dispersam na imensa caverna que estamos. Levantem-se e comecem a andar! Caminhem, arrastem-se se for preciso, escorreguei pelas vertentes e com certeza encontrará os braços da Mikka abertos para recebê-lo no final do caminho. Em frente, pulguento, ela está muito preocupada com você!
Essas palavras animaram o garoto.
-Certo, estamos indo. Assim que nós deixarmos este lugar, não poderão entrar mais em contato.
-Sabemos, cuidado com as possíveis criaturas que encontrarem, se Flora realmente estiver ferida, Sirius, tudo dependerá de você!
-Eu não estou morta, são apenas alguns cortes! -Exclamou Flora.
Ao fundo, ela conseguiu ouvir uma risada abafada de Gerlon.
-Até logo.
Foram as últimas palavras que ouviram. A surpreende conversa através da massa terrestre, a mais de quatro quilômetros de distância, terminou com essas palavras de esperança. Sirius rezou para agradecer as deusas por ter lhe conduzido ao único ponto onde a voz de seus companheiros podiam lhes alcançar naquelas imensidões escuras.
O magnífico efeito acústico era facilmente explicável pelas leis da física. Provinha da forma do corredor e da condutibilidade da rocha. Há muitos exemplos dessa propagação de sons não perceptíveis nos espaços intermediários. Flora havia se lembrado que o fenômeno foi observado em vários lugares, entre outros na galeria interna da cúpula de Saint Khouder, em Memphis, e principalmente naquelas curiosas cavernas ocultas nos confins de Sarin, aquelas latomias localizadas perto de Ramdahmut, a mais maravilhosa do gênero, conhecida pelo nome de Orelha de Dionísio.
Lembrou-se de tudo isso e percebeu com clareza que, se a voz do pirata chegava até eles, é porque não havia qualquer obstáculo entre eles. Seguindo o caminho do som, chegaria necessariamente como ele, se as forças não os abandonassem.
Levantaram. Mais se arrastavam do que caminhavam. A inclinação era bastante íngreme. Deixaram-se escorregar.
Logo a velocidade da descida aumentou numa proporção assustadora e ameaçou transformar-se numa queda. Não tinha mais forças para frear. De repente, o solo fugiu sob seus pés. Sentiram que rolava e batia na aspereza da galeria vertical, um verdadeiro poço. Sirius bateu a cabeça numa pedra pontiaguda e perdeu os sentidos.
★★★
Quando voltou a si, estava deitado em espessos cobertores na penumbra. Mikka rezava, espreitando um resto de vida em seu rosto. Ao primeiro suspiro, pegou sua mão; quando abriu os olhos, deu um grito de alegria.
-Está vivo! Está vivo! - gritou Mikka
-Sim - respondeu com a voz fraca.
Mikka o abraçou fortemente
Sirius se sentiu tocado pelo abraço caloroso da amiga, e mais ainda com os cuidados com que se prodigou. Para ela, tal efusão só poderia ser provocada por grande provação.
Naquele momento, Spike e Zafira se aproximaram. Viu que as mãos dos dois jovens se tocavam.
-Bom dia - disse Zafira.
-Bom dia - murmurou Sirius. Pelo canto só olho, viu que Spike abriram um sorriso tímido. -Onde estamos nesse momento?
-Amanhã, garoto, amanhã -Disse Spike -Hoje você ainda está muito fraco; não é bom se mexer por causa das compressas que Mikka e Flora colocaram na sua cabeça. Durma, e amanhã contaremos tudo.
-Pode ao menos - insistiu - dizer o dia e a hora.
-Estamos há nove dias aqui embaixo, parece uma eternidade, não é? E quanto as horas, devem ser o que? Onze e meia da noite?
Sirius estava realmente fraco, muito fraco, e seus olhos se fecharam contra a sua vontade. Precisava de uma noite de sono. Deixou-se levar pelo cansaço pensando que o seu isolamento durará cinco longos dias.
Quando acordou no dia seguinte, olhou ao seu redor. No seu leito, feito com todos os cobertores, fora instalado numa gruta encantadora, enfeitada de magníficas estalagmites, o solo recoberto de areia fina. Nela reinava a penumbra. Não havia qualquer tocha ou lanterna acessa, mas alguns clarões inexplicáveis iluminavam de fora por uma abertura estreita. Ouviu também um murmúrio vago e indefinido, semelhante ao gemido de ondas que se quebravam na praia, e às vezes o assobio da brisa.
Perguntava-se se estava bem acordado, se estava mesmo acordado, ou se estava ainda sonhando, se seu cérebro, rachado na queda, não estaria ouvindo sons imaginários.
Mas nem seus olhos e nem seus ouvidos poderiam lhe enganar a esse ponto. “É um clarão do dia!”, pensou, “esgueirando-se pela fenda das rochas! São murmúrios de ondas! A brisa está soprando! Será que me enganei ou voltamos a superfície? Será que me carregaram até nosso destino?
Sirius fazia todas as perguntas irresponsáveis para si mesmo quando Mikka e Gerlon entraram.
-Bom dia, flor do dia - saudou Mikka alegremente - aposto que está se sentindo bem.
-Estou muito bem - respondeu o garoto, erguendo-se das cobertas.
-Tinha certeza que sim, pois você dormiu com muita tranquilidade - disse Gerlon, de braços cruzados - Mikka e Flora se revezaram para velá-lo e notaram que você estava se curando gradualmente.
-De fato, me sinto recuperado, e para provar, honrarei o desjejum que vocês não deixarão de me oferecer!
-Quanto a isso, não temos mais comida, tivemos que usar tudo para cuidar de você.
Sirius ficou boquiaberto. Mikka gargalhou.
-Ele está zoando com a sua cara. Vou trazer sua comida, você não tem mais febre. Flora esfregou seus ferimentos com um unguento secreto Sariniano, não sei do que é feito, e eles cicatrizaram maravilhosamente, tanto suas feridas, quanto os cortes das mãos dela. Flora é simplesmente maravilhosa!
Enquanto falavam, Mikka preparava alguns alimentos, que Sirius devorava apesar de suas recomendações. E, comendo, atordoava-sd com perguntas que ele se apressou a responder.
Soube então que a sua queda providencial, os levaram precisamente à extremidade de uma galeria quase perpendicular; como chegara junto com uma torrente de pedras, entre as quaisa menor bastava para esmaga-lo, a conclusão era de que uma parte do maciço escorregara com eles. Aquele aterrorizante veículo transportara-nos assim até os braços de Mikka, onde caiu, ensanguentado, desmaiado, com uma Flora muito debilitada.
-Realmente - disse Gerlon - é surpreendente que você não tenha morrido mil vezes. Mas pelas deusas, não se separe mais, se for se separar, vá sozinho, não arraste Flora junto. Pois nos arriscamos e nunca mais rever vocês.
Sirius arregalou os olhos, surpreso, o que provocou imediatamente a pergunta:
-Onde que aconteceu?
-Tenho que fazer uma pergunta. Você está dizendo que eu estou são e salvo?
-Sim.
-Todos os membros intactos?
-Sim.
-E minha cabeça?
-Exceto por algumas contusões, ela continua exatamente em seu lugar, sobre os ombros.
-Bem, temo que a minha razão não esteja em forma.
-Fora de forma? Porquê?
-Sim, não voltamos a superfície?
-Claro que não.
-Então, devi estar mesmo louco, pois estou vendo a luz do dia e ouvindo o ruído do vento que sopra e do mar que se quebra.
-Ah, é isso?
-Daria para alguém explicar? Do que se trata exatamente?
-Não dá para explicar, pois é inexplicável. Mas você verá e compreenderá.
-Vamos sair, então -exclamou, levantando-se bruscamente.
-Não, Sirius, não, o É livre pode lhe fazer mal - Disse Mikka.
-Onde ar livre?
-O vento está forte, não quero que você se exponha dessa forma.
-Mas garanto e afirmo: estou ótimo.
-Tenha paciência, pulguento. Uma recaída pode causar transtornos para nós, e não devemos perder tempo, pois a travessia pode ser longa - disse Gerlon.
-Travessia?
-Sim, descanse hoje ainda, embarcaremos amanhã.
-Embarcar?
Essa palavra provocou um sobressalto no Sirius. O quê? Embarcar? Então tinha um fio, um lago, um mar a sua disposição? Havia uma embarcação em algum porto interior? Sua curiosidade chegou ao auge. Mikka tentou inutilmente conter Sirius. Quando viu que a sua impaciência lhe faria mais mal do que a satisfação do seus desejos, cedeu.
Sirius vestiu-se prontamente. Para o cúmulo da precaução, enrolou-se num dos cobertores e saiu da gruta.
★★★
A princípio, não viu nada. Seus olhos desacostumados com a luz, fecharam-se bruscamente. Quando conseguiu reabri-los, ficou mais do que sem ar do que maravilhado.
-O mar! - gritou.
-Sim - respondeu Gerlon -, o mar Gerlon, e me agrada acreditar que não disputarei com nenhum outro navegador ou cientista a honra de tê-lo descoberto e o direito de dar-lhe meu nome.
Um vasto lençol de água, o começo de um lago ou de um oceano, estendia-se para além dos limites da visão. Amplamente chanfradas, as margens ofereciam as últimas ondulações das ondas, uma areia fina, dourada, semeada de pequenas conchas, em que viveram os primeiros seres da criação. As ondas quebravam com aquele murmúrio sonoro típico dos meios fechados e imensos. Uma leve espuma esvoaçava com o sopro de um vento moderado, e alguns respingos alcançavam o seu rosto. Naquela praia levemente inclinada, a mais ou menos cem metros dos limites das ondas, vinham morrer os contrafortes de enormes rochedos, que se seguiam abrindo-se a uma altura incomensurável. Alguns, rasgando a margem com sua aresta aguda, formavam cabos e promontórios roídos pela ressaca. Mais além, sua massa formava um perfil claramente desenhado sobre o fundo nebuloso do horizonte.
Era um verdadeiro oceano, com o contorno caprichoso das costas terrestres, mas deserto e de aspecto terrivelmente selvagem. Se seus olhos podiam acompanhar aquele vasto mãe até bem longe, era porque uma luz “especial” iluminava seus menores detalhes. Não a luz do sol com seus feixes resplandecentes e a esplêndida irradiação de seus raios, nem o clarão pálido e vago do astro das noites, que não passa de um reflexo sem calor. Não. O poder de iluminação dessa elevada, seu brilho, na realidade superior ao da lua, acusavam com clareza, uma origem elétrica. Aquela caverna capaz de conter um oceano era preenchida como por uma aurora boreal ou fenômeno cósmico continuo.
A abóbada suspensa acima de suas cabeças, o céu, de certa forma, parecia constituído de grandes nuvens, valores móveis e cambiantes, que, sob o efeito da condensação, deviam, em certos dias, resolver-se em chuvas torrenciais. Era normal, e até tenderia a acreditar que sob tão forte pressão da atmosfera a evaporação da água era impraticável, e, no entanto, por um motivo físico que não saberia explicar havia grandes aglomerações de nuvens no ar. Naquele momento, “o tempo estava bom”. As camadas elétricas produziam surpreendentes jogos de luz em nuvens muito altas. Sombras vivas desenhavam-se em suas volutas inferiores, e, com frequência, um raio esgueirava-se até nós com uma intensidade notável entre duas camadas separadas. Porém, em suma, não era o sol, pois não havia calor junto à luz. O efeito era triste de certa forma, e soberanamente melancólico. Em vez de um firmamento resplandescente de estrelas, sentia sobre aquelas nuvens uma abóbada de granito que os esmagava com todo o seu peso, e aquele espaço não bastaria, por mais imenso que fosse, ao passeio do satélite menos ambicioso.
Lembrou-se então de um certo livro que havia lido, ainda quando criança, que em certas história, se deparou com a teoria de um capitão Galveniano que assimilava o mundo Evâniano a uma ampla esfera oca, e no interior da qual o ar se mantinha luminoso em decorrência de sua pressão, enquanto dois astros, Gargântua e Pantagruel, nele traçava suas órbitas misteriosas. Teria razão ou seria apenas um conto de fadas bobo e infantil?
Estavam realmente aprisionados numa enorme escavação. Não, era possível avaliar sua largura, já que as margens abriam-se a perder a vista, nem seu comprimento, pois o olhar era logo detido por uma linha de horizonte um tanto indecisa. Quanto a sua altura, podia ultrapassar muitos quilômetros. Não dava para ver onde aquela abóbada de apoiava nos contrafortes de granito, mas havia um grande aglomerado de nuvens suspenso na atmosfera, cuja elevação podia ser estimada em dois quilômetros, altitude superior à vapores terrestres, sem dúvida devido a densidade considerável do ar. É claro que o termo “caverna” não descreve exatamente aquele ambiente imenso. Nenhuma palavra da língua evaniana é suficiente para quem se aventura nos abismos do mundo.
Além disso, não sabia por qual fato geológico explicar a existência de tal escavação. Será que fora produzida pelo resfriamento do globo? Conhecia bem algumas cavernas célebres por causa dos livros de geografia que lera na escola, mas também não se recordava de que nenhuma apresentava tais dimensões.
Puxou na memória, a imensa caverna de Mammounth, nas ilhas Sisco, tinha realmente proporções gigantescas, pois sua abóboda erguia-se novecentos metros acima de um lago insondável. E muitos viajantes percorreram por mais de dez quilômetros sem chegar a seus limites. Mas o que eram aquelas cavidades perto da que ele admirava então, com seu céu de valores, suas irradiações elétricas e um vasto mar encerrado em seus flancos? Sua imaginação sentia-se impotente diante daquela imensidão. Contemplava em silêncio todas aquelas maravilhas. Faltava palavras para transmitir suas sensações. Acreditava estar assistindo o movimento de todo o cosmos diante dele, fenômeno dos quais sua natureza terrestre não tinha consciência. Seria necessárias palavras novas para novas sensações, mas sua imaginação não era capaz de fornece-las. Olhava, pensava, admirava com estupor misturado com uma certa dose de medo.
Medo? Sim, medo. Durante toda a sua vida, Sirius jamais poderia sonhar na aventura que sua vida se tornara nas últimas semanas. Nem no seu íntimo, nem a sua criança interior poderia sequer imaginar o mundo que havia fora da Capital Império. Pensou por muito tempo que sua vida seria reduzida a pobreza e nada mais. Teria que se conformar que aquela seria sua nova vida de agora em diante. Se ele se entregasse, desistisse de lutar por uma condição de vida melhor, jamais poderia ver o que seus olhos lhe contavam. Jamais poderia imaginar a imensidão de Pangeia, na imensidão de Evânia. O mundo era muito maior do que ele pensava, era muito maior do que os livros que lera na infância sobre desbravadores e viajantes.
O imprevisto daquele espetáculo fizeram com que as cores da saúde voltassem ao seu rosto e a seus pêlos, estava sendo submetido a um tratamento de surpresa e curado por uma nova terapêutica. Além disso, a vivacidade de um ar muito denso o reanimava, fornecendo mais oxigênio a seus pulmões.
Não é difícil imaginar que, após um aprisionamento de mais de uma semana numa galeria subterrânea de proporções colossais, era um prazer imenso aspirar aquela brisa carregada de úmidas emanações salinas.
Não tinha por que se arrepender de ter abandonado a pequena gruta obscura. Seus amigos, já acostumado com àquelas maravilhas, não se surpreendia mais.
-Você sente que tem forças para passear um pouco? -Perguntou Zafira, ao se aproximar.
-Claro! Com toda certeza. -disse o garoto.
-Então me acompanhe.
Sirius aceitou com presteza e começaram a caminhar pelas margens daquele novo oceano. A esquerda, rochedos abruptos, uns sobre os outros, formavam um amontoado titanesco de efeito prodigioso. De seus flancos desciam inúmeras cascatas que formavam lençóis límpidos e retumbantes.
Saltando de uma rocha para outra, alguns valores leves assinalaram o local de fontes quentes e riachos corriam suavemente em direção a bacia comum, procurando nas vertentes, a ocasião de murmurar de forma mais agradável. Dentre os riachos, reconheceu o fiel protetor da princesa, o ex-capitão Spike, que acabara de se perder tranquilamente no mar, como se nunca tivesse feito outra coisa desde o começo da viagem.
-Ele disse que sentia falta do mar -disse Zafira - aqueles anos preso sob tortura em Yanilad o fez perder muitas de suas sensibilidades.
A quinhentos passos, num meandro de um promontório elevado, apareceu uma floresta alta, cerrada e densa.
Era formada por árvores de tamanho médio, semelhantes a guarda-sois regulares, contornos claros e geométricos; as correntes atmosféricas pareciam não provocar qualquer efeito em sua folhagem, que, em meio aos sopros, permanecia imóvel como um maciço de árvores petrificadas. Sirius apressou o passo, não conseguia encontrar um nome para aquelas essências singulares. Não se situação entre as milhões de espécies de vegetais catalogadas na flora evâniana. Seria precisa atribuir um lugar especial na flora das vegetações? Não, quando chegaram a sua sombra, sua surpresa não foi maior do que a sua admiração. Estava diante de produtos da terra, mas de um tamanho gigantesco, mas não tanto quanto a vegetação de Echovalle.
-Flora disse que era uma floresta de cogumelos. Acho que foi daí que ela tirou a mistura que ela passou nos seus ferimentos -disse Zafira.
Estava certa (como sempre). Imagine o desenvolvimento dessas plantas típicas de ambientes quentes e úmidos. Os cogumelos tinha alguns centímetros de circunferência, porém, diante deles estavam cogumelos de quinze metros, com uma cúpula de diâmetro igual. Havia muitos. Havia milhares deles. A luz não conseguia varar sua sombra espessa, e a mais completa escuridão reinava sob aqueles domos justapostos como os textos redondos. Sirius sentia algo em seu interior dizendo para prosseguir. Um frio mortal descia daquelas abóbadas carnudas. Ele e Zafira perambularam por uns vinte minutos entre aquelas trevas unidas, e foi como um verdadeiro sentimento de bem estar que retornaram à beira do mar.
Floresta de Cogumelos gigantes
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