Capítulo 49 - Echovalle
Era estranho. Sirius adorava viajar a bordo da Bichano, mas naquele inseto ele tinha medo. De quê? Nem ele sabia exatamente. O vôo foi curto, algo em torno de dez minutos, e os dez minutos ele permaneceu com os olhos fortemente fechados. Ele fechou os olhos com tanta força que ele havia ficado zonzo.
Sirius abriu os olhos e se sentiu ofuscado por uma claridade ouro e verde, não tinha idéia do que acontecera, só sabia que estava de pé no que lhe pareciam folhas e gravetos. Lutava para inflar seus pulmões de ar que se sentia achatados, ele piscou os olhos e compreendeu que a luminosidade excessiva vinha do sol se infiltrando por um dossel de folhas. Então, um objeto se mexeu próximo ao seu rosto. Ele se inclinou para enxergar melhor e deu de cara com uma linda borboleta que havia pousado no seu nariz. Ela brilhava em todas as cores, e os padrões de suas asas pareciam pequenos redemoinhos que hipnotizavam quem olhassem atentamente para eles. Ele olhou ao redor e notou que seus amigos encaravam a bela floresta que erguia-se majestosamente na frente deles.
Echovalle é uma região florestas à nordeste de Pangeia. Um caminho aberto entre as árvores densas leva em direção a ponta da Alvorada. O leste mais extremo do continente, numa península que se projeta em direção ao continente de Laurásia. O caminho só é possível graças a uma série de pontes de madeiras e caminhos que passam por dentro das árvores, se interligando por seus galhos gigantes, que foram estradas entre elas. No entanto, muitas das pontes de árvores estão cobertas de musgo espesso e em estágios avançados de decomposição. À medida que o transporte por aeronaves e dirigíveis ganhou destaque, as estradas terrestres foram abandonadas. Agora, mais animais andam pelas florestas do que viajantes. A floresta é domínio do povo dos anãos e Gimnis que habitam a região da densa floresta. Por serem agora livres de evanianos, o número de feras raras e em risco de extinção aumentam diariamente.
Vilarejo (sem nome) abandonado em Echovalle
O primeiro pensamento de Sirius foi que estavam perdidos, por um momento, mesmo sabendo que seria tolo e perigoso pensar isso, afinal, ele estava na presença de uma pessoa que podia falar com as florestas. Pelo menos era o que ele pensava, o que o tranquilizou. Ele olhou ao redor e notou que as árvores e as suas folhas eram estupidamente exageradas, as folhas eram grossas e grandes, quase que uma cabana. O ar era úmido e a respiração ofegante só tornava tudo ainda mais quente. Não saberia dizer se os outros compartilhavam dessa sensação, mas ele se sentiu como um pequeno inseto dentro de um terrário.
Flora se distanciou um pouco do grupo e foi na direção de uma flor avermelhada, como sangue. O grupo a seguiu.
-Perinea Immortalis - disse ela, arrancando duas entre as cascas da árvore -pode nos ser útil.
No alto, vindo da copa das árvores, começou a cair água. Muita água: chuva. Eles correram o mais rápido que puderam até encontrar um grande tronco de árvore tombado para se abrigarem.
Flora tocou no tronco de árvore e começou a recitar encantamentos. Todos observaram pequenas runas se movendo nas laterais dos troncos e turbulências quase imperceptíveis no ar em torno, como se Flora tivesse lançado uma névoa de calor sobre eles.
-Feitiço para não perturbar os animais ou os povos da floresta. Esta é uma área livre de evanianos e queremos que eles continuem pensando assim.
O grupo concordou sem protestar. Eles seguiram por dentro das árvores. Subindo e descendo escadas talhadas na madeira. Atravessaram pontes em meio a chuva que caia. Mikka ia escorregando nos musgos umas três ou quatro vezes, se não fosse por Spike a ter segurado firmemente, evitando sua queda.
Eles caminharam por horas, até chegar numa grande árvore com uma porta destruída por garras. Eles adentraram e subiram as escadas.
O local estava um pouco sujo, mas abandonado. Um pequeno apartamento aconchegante suficiente para eles descansarem por enquanto. Os móveis pequenos eram todos feitos de madeira, projetados para alguém muito menores que eles. Um grande buraco servia como janela e dava para fora. A vista da floresta era belíssima. Eles viam vários insetos gigantes escondidos sobre as árvores. Feras incríveis e raras se abrigando da chuva. O frio havia expulsado o calor da umidade da tarde e chegava a medida que escurecia. Flora havia feito um feitiço para que os móveis agora fossem maiores, para lhes servir melhor. Nas prateleiras na parede, Flora encontrou algumas ervas doces.
Casas abandonadas em Echovalle
-Vou preparar um pouco de chá para nós - Ela conjurou uma pequena chama na palma de sua mão e incendiou a lenha no forno.
Gerlon achou a bebida quente tão providencial quanto um uísque de fogo na noite mais calma de sua vida, a bordo de seu navio.
Minutos depois, Mikka quebrou o silêncio.
-O que vocês acham que aconteceu com os sobreviventes de Burlmugaron?
-Com força de vontade e os ensinamentos de Esdras, eles vão se reerguer novamente - respondeu Zafira, apertando a caneca de madeira para se tranquilizar - Desde de que eles não percam a fé deles, tudo ficará bem para eles.
-Espero que dê tudo certo para eles - respondeu Mikka de volta. O chá parecia estar lhes fazendo bem. -Eu tive a impressão que a culpa foi nossa por todo aquele ataque…
Zafira baixou o olhar e suas orelhas caíram. Ela também pensava isso, e se culpava em silêncio desde de então. Eles abandonaram aquele povo sem prestar ajuda nenhuma para eles. Mas Gerlon havia sido claro o próximo passo. Não havia nada o que ele pudessem fazer ali e naquele momento.
“Você quer ajudá-los? Pare o Império, e eles serão vingados” disse o pirata para ela, no mesmo dia que eles voaram de volta para o reino de Cela.
Ela retirou o Tesserato Esmeralda de sua pequena bolsa de couro e o encarou. O artefato estava enegrecido e morto. Não emanava absolutamente nada dele. Nem sequer um resquício de Brana para avisar que está vivo.
-Há alguma chance de destruí-lo? -Perguntou Gerlon, esperançoso.
-Acho que sim - disse ela, mas no fundo, ela não quer destruir. Ela examinava minuciosamente cada centímetro do artefato. Ele estava inteiro, liso, intacto, perfeito.
Gerlon a encarava silenciosamente. Algo lhe dizia que ela tinha outros planos para aquele objeto, e isso resultaria em algo que o próprio pirata se arrependeria amargamente se continuasse.
-O que você pretende fazer com ele? -Continuou o pirata.
-Guarda-lo em segurança até descobrir o que faremos com ele - ela o pegou e o guardou novamente consigo.
O silêncio foi quebrado novamente pelo roncar da barriga de Sirius e Mikka. Eles se puseram de pé.
-Também teremos que pensar em alguma coisa para comer. Vou dar uma volta por aqui e ver se consigo encontrar algo.
O encantamento que Flora havia feito antes, começou a surtir efeito. Pela janela, eles avistaram uma companhia de anãos caminhando pela forte chuva embaixo de seus capuzes. Eles não puderam sentir a presença ou o forte odor evanianos de cachorro molhado graças a Flora. Aquela parte da floresta era bem menos movimentada e viva, talvez seja pela magia de Flora ou porque as pessoas raramente se aventuravam naquelas passagens. Aquele trecho permaneceu deserto por raros insetos ou bestas. A noite, a chuva ainda caia firmemente, mas nenhuma alteração. Zafira e Spike controlaram uma paisagem deserta, registrando enormes morcegos que voavam muito alto entre as copas, e as primeiras estrelas do céu noturno já podia ser avistada.
Sentiam fome. E um pouco de tontura. Zafira não tocara nos “alimentos” que Sirius e Mikka acharam no sótão daquele apartamento. Haviam encontrado dois grandes sacos de cereais e granolas que Flora se animou ao ver. Ela não comia isso desde de sua infância. Apesar de não ser o alimento preferido daqueles carnívoros, Zafira não tocou em um grão sequer. A parte que foi separada para Spike, ele guardou, alegando não estar com fome, quando já verdade, ele guardara sua parte para Zafira. Ele garantiria que ela comeria alguma coisa, ele estava ali para protege-la.
O silêncio circundante era quebrado por sons indistintos ocasionais e, talvez, por gravetos estalando ou animais menores sendo mortos. A natureza engolia as construções: casas pequenas e aconchegantes eram erguidas nos galhos feitos de casca de árvores e folhas, outras eram entalhadas dentro da própria árvore, como a que eles estavam ali. As pontes velhas de madeiras se mesclavam com o verde e se deixava ser engolidas pela natureza. Diferentes espécies de plantas cresciam por todos os lados.
Pensara que sentiria euforia se recuperasse o Tesserato. Mas o artefato tinha trago mais desgraça do que respostas e soluções. Mas por alguma razão isso não aconteceu. Tudo o que sentia, ali, vigiando aquela escuridão, era apreensão por tudo o que viria acontecer futuramente. Sentia que suas opções estavam acabando e ela estava entrando no modo desespero. No tudo ou nada. Estava achando que era o fim da linha.
Havia outro Tesserato em algum lugar lá fora, o Tesserato Rubi, que pertencia a família de Hércules, mas que ela não fazia a minina idéia de onde ele estava. Ela queria retribuir o império na mesma moeda. Mas, um Tesserato era suficiente? Ela tinha poder suficiente para subjulgar seu inimigo?
Nesse meio tempo, não lhe ocorria em destruir este Tesserato em sua posse. Ela tinha a ferramenta para tal tarefa, mas era mesmo o próprio Hércules, no pós vida, lhe impedindo de destrui-lo? Ele tinha planos para o Artefato? Ela não saberia responder da forma mais concreta sobre tudo isso. Era como se ela estivesse sendo controlada por algo ou alguém para poupa-lo. Seria ela escrava de sua própria mente?
Curiosamente, ela pegou novamente o artefato e o visualizou mais uma vez. Ele não roubara o calor de suas mãos, estava tão frio ali, que poderia tê-lo tirado de um balde com gelo. De vez em quando, Zafira pensava, ou talvez imaginasse, que podia sentir um batimento de coração mínino, no mesmo compasso que o seu.
Pressentimentos inomináveis a assaltavam ali no escuro, e sem dizer nada, tentava resistir. Afastá-los. Contudo eles escorriam sem descanso. Sirius e Mikka dormiam no canto, numa cama improvisada que Flora havia feito, e ela e o pirata conversavam baixinho, encarando as estrelas. Eles poderiam ir embora se quisessem. Sirius e Mikka poderiam voltar a ter a vida medíocre de antes, e quanto aos piratas, voar livremente pelos céus, longe dali e de Henry. Ela não poderia. Ela não poderia escapar para lugar nenhum. E, parece que naquela imobilidade em que tentava dominar o medo e a exaustão, que o artefato mágico em suas mãos, tinha cravado nele o tempo que lhes restava. “Que idéia idiota” disse para si mesmo, “não pense nisso”.
Suas cicatrizes onde lhe foi feita a cirurgia perene começava a formigar. Receava que estivesse provocando aquilo ao entreter tais pensamentos, e tentou redirecioná-los. Aquele era o lembrete de que ela havia conseguido dois poderes que responderiam a altura do desafio. Era o lembrete de que ela não estava sozinha, apesar de ser a última na linhagem real de Gaiseric. Pensou nos fiéis do Monte Burlmugaron, lhe esperando uma salvação daquele tormento. Pais sem filhos. Filhos sem pais. Crianças sem casa, mulheres sem família. Homens sem esperança. Todos tinham de alguma forma, depositado suas esperanças e sua fé em algo que terminaria com aquela tormenta, e Zafira não quer que seja a morte, a salvação para elas. Para ninguém. Zafira queria acreditar que ela mudara seus pensamentos e comportamentos desde do início da jornada. E se tudo isso, for as ações da antiga Zafira? A impulsiva e imatura princesa? O que lhe garantiria e a fizesse acreditar que esta é a escolha da sua nova eu? O que mudara?
Pensamentos tétricos fervilhavam e chacoalhavam em sua mente e tentou afastá-los também, porque não havia nada que pudesse fazer.
A cicatriz e os Glifos Arcanos dos dois Nefilins agora queimava. Lembrou que havia tanta coisa que ignorava: O marquês Dário estava certo quando lhe disse antes que ela ainda era imatura e que não era o momento certo para agir. Quando Gerlon lhe questionou, nos portões de Ramdahmut, o que havia mudado agora, qual a diferença entre ela e sua antiga versão?
Queria acreditar que seu pai, se ainda estivesse vivo, aprovaria suas ações para a retomada do Reino de Henry. Ou ele entregaria de bandeja o Reino inteiro, sem lutar? Abaixaria a cabeça e venderia a soberania e a liberdade para Thiel?
Seu pai. Seu pai? Seu pai… o Rei Marley…
“-Entregue, soberano Rei Marley.”
“A voz de Zafira saiu estranha, metálica, diabólica, fria. Sua espada estendida a frente por uma mão enegrecida, formada por turbilhões de trevas e malícia. O rei para quem apontava estava sentado num trono frio e mórbido. Ele sentia-se preso, embora não houvesse cordas o segurando. Ele resistia, invisível e sinistramente preso, os membros enrolados no corpo, seu rosto aterrorizado, no mesmo nível que o de Zafira, vermelho por causa do sangue que lhe afluia a cabeça. Tinha pelos absolutamente brancos e uma barba cerrada de pelos espessos: um rei cansado e atordoado por pesadelos.
“-Eu não o tenho, eu nunca o tive! Eles foram separados à milhares de anos!”
“-Não minta para mim, pequeno Rei. Eu não sou um de seus súditos asquerosos que dão a vida por você. Eu sou mais que isso. Sou mais que um Rei. Sou mais que um Imperador. Eu sou mais que um Deus. Eu sou mais que um Demiurgo!”
“As pupilas do velho Rei estavam grandes, dilatadas com medo, e pareciam inchar cada vez mais, até que seus turbilhões negros o engoliram por inteiro…”
-Zafira!
Ela abriu os olhos, ofegante, sua cabeça pulsava e seus Glifos Arcanos no seu braço ardiam. Tinha desmaiado contra a parede do apartamento: escorregara de lado pela parede e caira no chão. Ergueu os olhos para Spike, cujo olhos refletiam exaustão e preocupação. Ela nunca havia reparado antes, mas ele estava mais velho do que ela se lembrava. E para ser sincera consigo mesmo, ela não lembrava de encara-lo, nem por um segundo, desde de que fora resgatado de Bearthorn das mãos de Urie.
-Sonho - disse ela, sentando-se numa cadeira próxima e tentando enfrentar a carranca do capitão com um ar de inocência. -Devo ter cochilado, desculpe.
-Foram os Nefilins? Vejo no seu rosto, eles estavam lhe dizendo algo? - Perguntou Flora, sentindo uma presença mágica vindo de Zafira.
-Não foi bem dizendo, mas me mostrando. Foi como se fosse um sonho. Você controla sonhos?
-Eu posso lhe ensinar a Oclumência. Impedir com que o Nefilins invadam sua mente e a controle.
Zafira se mostrou pouco interessada em aprender isso agora, queria discutir o que acabara de ver.
-Uma criatura negra, feita de turbilhão de ódio, encontrou o meu pai. E não sei se tenho certeza, mas naquela noite, ele procurava por algo, e matou o meu pai quando não conseguiu. -Disse ela, olhando para Spike.
Gerlon levantou suas orelhas e suas pupilas se dilataram.
Uma criatura negra feita de turbilhões…? Pensou o gatuno.
Flora o encarou, seriamente. Ela sabia que Gerlon estava escondendo alguma coisa.
-Acho que é melhor eu assumir a vigia, seu cansaço é tanto que você está cochilando. - Disse Gerlon friamente.
-Eu posso terminar a vigia!
-Não, obviamente você está exausta. Vá se deitar.
Ele se largou de frente da janela, decidido. Aborrecida, mas querendo evitar uma briga desnecessária, Zafira se acomodou numa cama improvisada por Flora.
Spike se acomodou no chão ao seu lado. Passado vários minutos, Spike falou muito baixinho para Gerlon e Flora não ouvirem, encolhidos na janela.
-O que a criatura fez?
Zafira apertou os olhos, se esforçando para recordar de cada detalhe, então sussurrou no escuro:
-Ele matou o meu pai. Não sei dizer se aquilo era uma visão da noite do tratado, ou apenas uma visão.
-E o que ele queria?
-Não sei, mas acho que são os Tesseratos. Meu pai falou que eles foram separados a milhares de anos. O Tesserato Safira ficou em pose de nossa família por incontáveis gerações. O Rubi na família de Hércules e o Esmeralda, com o próprio Gaiseric, tanto que ele o levou para o túmulo.
Zafira fechou os olhos, pensando em tudo que vira e ouvira. Quanto mais lembrava, menos sentido fazia… Por que ele queria os três artefatos? Porque ele seguia tão afinco, a ponto de matar um rei e causar uma grande guerra?
-Queria alguma coisa do meu pai. O Tesserato Safira, talvez? Estava muito bem guardado, só foi descoberto pelos maiores ladrões que eu já vi na vida - disse Zafira, ainda com os olhos bem fechados - pediu para que lhe entregasse, mas meu pai insistiu em dizer que foram separados.
Zafira ignorou por um momento todo o caso e desejou poder dar mais uma olhada no rosto de seu velho pai.
Os ruídos da floresta soavam alto. Lá fora, galhos e rugidos de feras noturnas era frequente. Grilos zuniam por todos os lados. Só o que Zafira escuta a era a respiração pesada de Spike. Passado algum tempo, Spike perguntou:
-Você não viu o que a criatura negra segurava? Ou o seu pai?
-Não… mas a criatura carregava uma espada. Uma espada curva e de um metal negro. Eu podia sentir ela nas minhas mãos… era pesada.
Spike cerrou os olhos.
As ripas de madeira da cama de Sirius rangeram quando ele mudou de posição.
-Você acha que o império está se movendo? A intensificação das frotas imperiais para Pangeia querem nos dizer alguma coisa. Eles sabem de algo que nós deixamos passar? -Perguntou Zafira.
-Talvez. Mas não podemos perder o foco, nossa missão agora é chegar até Arghar - disse Spike.
Tiveram certeza que Leore andava procurando uma maneira de contornar o problema das frotas e das invasões. Com certeza, perder a Bearthorn foi um golpe duro que ele sentiu.
Quem é a tal criatura negra feita de turbilhão? O que ele quis dizer “ser mais que um Deus? Ser mais que um Demiurgo?” O que ele estava tentando encontrar? Porque ela foi levada especificamente para aquele momento? A morte de seu pai? Um objeto que ele está decidido a encontrar, que no passado já pertenceu a Gaiseric. E foi separado após sua morte?
Zafira ainda via o rosto de seu pai, velho e cansado. Na criatura negra feita de turbilhões, detivera seus pensamentos, quando os roncos de Sirius começaram a ecoar da cama ali perto e ela começou lentamente a adormecer.
Cedo na manhã seguinte, antes dos outros acordassem, Gerlon deixou o apartamento em busca de uma rota segura, livre de monstros perigosos, para evitar perigo. Mas parecia que para todo e qualquer lado que ele se propusesse a olhar, havia algo estranho ou suspeito à espreita de um ataque surpresa. Encontrou uma grande árvore antiga e de aparência nodosa e elástica. Ali, à sua sombra, ele se escondeu quando ouviu sons de motores se aproximando: aeronaves imperiais de Thiel voavam em esquadrões. E julgando pela direção que seguiam, provavelmente estavam se reunindo numa área que fosse de fácil acesso às campinas do norte. Falconia também não se intimidara: aeronaves em formato de falcões cortavam os céus velozmente. Gerlon pressupôs que seria um verdadeiro massacre que os falconianos iriam fazer. Afinal, eles eram o povo mais avançado tecnologicamente. Suas armas estão séculos a frente do resto do continente. Daria uma ótima batalha que ele definitivamente não queria participar. Sua missão era outra, e isso incluía não entrar em confronto com nenhum imperial até estar dentro das muralhas de Arghar.
Ele fez um reconhecimento rápido do local. Mapeou e memorizou rotas que pudessem pegar. Ouvia com suas orelhas de felinos, anãos conversando em algum lugar. Eles falavam estranho, quase que em outro dialeto que o pirata não conhecia. Só conseguiu pegar umas palavras aqui e ali como “Elfo” e “odeio”. Ele deu de ombros, isso não era problema dele. Então ele voltou para o apartamento e esperou os outros acordarem para discutir o que fariam a seguir. A chuva cessou ainda cedo, e o clima quente e úmido voltou.
Zafira, Spike e Mikka acharam melhor não pararem em lugar algum por muito tempo. E todos concordaram, com a única ressalva que o próximo acampamento (assim chamou Sirius) tivesse condições deles caçarem alguma criatura para comerem. Flora então, conjurou mais uma vez, um encantamento de ocultação evaniano, enquanto os outros arrumavam o que haviam bagunçado, apagando qualquer indício que pudessem provar que o local fora usado. Em seguida, desceram as escadas e caminharam pela floresta.
Eles caminharam por mais algumas horas. A passagem das árvores eram firmes, porém com muitos musgos. Eles estavam alto, aquelas gigantescas árvores não cresciam da noite para o dia. Eram árvores andrasonias, mas o humanos tinham outro nome: Baobás. Elas podiam chegar até três quilômetros de altura, segundo Flora, e seus cascos possuíam várias propriedades que poderiam ser usadas, desde armas, escudos até casas, iguais as que eles passaram na noite anterior. Mas elas não eram tão grandes como as árvores de Hiperion da Floresta Colosso, em Pannotia. Elas eram menores. Enquanto as de Echovalle é formada por Baobás e outras plantas e árvores de origem de florestas tropicais, chegavam “apenas” pouco mais de um quilômetro de altura, as da Floresta Colosso chegavam facilmente a quatro ou cinco. Independente das quais, o chão profundo delas era coberto por um véu de escuridão que a luz solar não chegava. Os nativos acreditam que goblins, ogros ou outras criaturas nefastas rastejam pelo chão escuro e lamacento, enquanto anãos, gimnis e outras feras preferem andar pelas pontes e galhos.
A fauna era bem diversa. Eles perceberam uma grande variedade de Vrakrash, uma variedade de louva-a-deus que vive principalmente em grandes florestas. Conhecidos pelo seu apetite insaciável, esta fera voraz pode consumir até cinco vezes o seu próprio peso no espaço de um único dia. Ele se alimenta principalmente de criaturas de tamanho médio. Conhecido por se esconder entre árvores brancas, esperando a emboscada por sua presa. Possuindo uma altura média de dois metros, eles sempre buscavam rotas quando avistavam os primeiros sinais de que uma dessas criaturas estavam por perto.
Flora contou histórias de avistamentos de Malboros, criaturas herbologicas em formato de um polvo com uma grande boca e vários olhos. Possui aspectos de vegetais como textura e anatomia, conhecido pelo seu hálito venenoso, capaz de afetar sua presa com os mais diversos efeitos. Ser o mais alto posto de Malboro e usar uma coroa de espinhoa para provar isso. Ainda não se sabe como ela passou a usar sua coroa, ou quem, de fato, a fez. A pirata contou um boato que afirma que, se um homem o matar e colocar sua coroa, ele será imediatamente transformado em um rei malboro. Se isso for verdade, pode muito bem significar que a coroa está amaldiçoada com a mais vil das magias, e a besta que a usa já foi um homem.
Depois disso, Sirius passou a andar sempre no meio da trilha, pois não conhecia a real aparência da criatura. Não há bestas esquisitas como essas nos esgotos de Henry.
O garoto se perguntou como alguém poderia viver naquele meio de criaturas nefastas e esquisitas. Não podia ser evanianos, e nem humanos. Para atormenta-lo ainda mais, na esperança do garoto se comportar e não causar problemas (o que estava sendo bem difícil, ele não tinha experiência em andar por lugares assim) Flora ainda possuia, as vezes, um calafrio na espinha. Secretamente, ela tentava acessar sua habilidade de falar com as florestas. Aparentemente, Echovalle não tinha rancor de Flora, apesar de que todas as florestas de Evânia fossem ligadas através de uma rede complexa de raízes profundas, conectadas a árvore Yggdrasil, no coração de Pannotia. Bhakmut, a aldeia Noru de Echovalle, tentava ao máximo, ocultar sua presença, apesar de não possuírem nada contra a escolha de Flora de abandonar a cultura e sua aldeia Noru. O Namida Ecólita de Sirius é mais eficaz e útil do que nas profundezas da terra. Um feixe azul de Brana que somente ele poderia ver e Flora sentia o fluxo, mas não enxergava (outro dom que ela havia perdido ao deixar Ramdahmut).
No alto de um dos galhos, Mikka avistou uma silhueta pequena, como de crianças. Haviam uma cabeça levemente maior e irregular do que as normais. A Noru explicou aquelas criaturas como sendo uma variedade de mandrágora excepcional entre sua espécie por um alto grau de inteligência, a evidência mais citada disso são as roupas, luvas e botas que ela usa. Vive à maneira dos homens e exibe uma personalidade surpreendentemente semelhante à nossa. É ricamente expressivo e gosta de fazer caretas horríveis (essa mesma brincadeira ilustrada pela máscara de abóbora que usa na cabeça).
Caminhando por algumas horas, eles se depararam com um grande portão de pedra, encoberto por musgos e plantações rasteiras, como capins. Havia desenhos e letras talhadas mas eles não souberam identificar. Em algum lugar abaixo deles, numa árvore ao lado, um grupo de anãos coberto por capuzes e gimnis usando roupas de construtores, caminhavam em direção aquele portão.
As vozes foram alteando, mas continuaram ininteligíveis à medida que o grupo alcançavam a margem da ponte. Gerlon estimava que seus donos estivessem a menos de vinte metros de distância, mas o calor e a umidade o impedia de ter certeza. O grupo se escondeu e, num tronco próximo, Flora e Gerlon grudaram suas orelhas.
Em segundos, eles ouviram uma voz masculina:
-Deve haver algumas frutas Pempom por aqui, ou ainda está muito no início da temporada? -disse alguém.
Ouviram claramente eles batendo nas árvores e nos galhos, os fazendo vibrar, assim os gimnis, seres ligados a floresta, detectavam muitas coisas que eles queriam. Eles ouviram o som de algo batendo no chão. Alguém resmungou apreciativamente. Gerlon se concentrou em uma única voz, mas ela não falava uma língua que ele já tivesse ouvido, nenhum idiota que ele já estivesse escutado chegava perto desta. Era uma língua dura e melodiosa, uma sequência de ruidos rascantes e frutas, de alguém bravo. Flora conhecia: a língua dos anãos.
Uma fogueira foi acendida e em pouquíssimos segundos, uma barraca com gravetos, uma enorme e única folha e um tronco foi erguido. Anãos eram excelentes trabalhadores e construtores. Grandes sombras passaram entre a barraca e as chamas. O aroma delicioso de frutas Pempom assado flutuou torturante em sua direção. Em seguida, ouviram tinido de talheres sobre pratos, e o primeiro homem tornou a falar.
-Tome aqui, Grandhu, Tuphim.
-Anãos - disse Flora para o seu parceiro, que apenas assentiu.
-Obrigado - agradeceram os anãos, ao mesmo tempo.
-Então, como estão as coisas em Pannotia? Tudo continua calmo e monótono como sempre? -Disse uma nova voz.
-Não muito - disse um Gimni - com esta guerra que está prestes a acontecer. A tribo Veranus fortificou todo o lado Oeste de Pannotia. Ouvi boatos de que os desgraçados de Thiel estão atravessando o Mar das Brumas e entrando sem autorização no continente.
Houve uma pausa, enquanto os talheres raspavam os pratos e canecas eram erguidas e repostas no chão.
-O que esses evanianos querem em Pannotia? Não há nada deles lá, muito menos do interesse deles. -Gruniu outro anão.
-Eles nunca estão saciados com nada, nunca! Não basta toda Evânia ser infectada com estas aberrações voadoras de metal, impérios poluindo a atmosfera, agora eles querem nossas mágicas! Há não, não vão mesmo!
-Eu também não entendo o que querem por lá. Não que seja do nosso interesse, mas eles num já possuem duas peças do Tesserato? Por que querem mais?
Gerlon e Flora cerraram os olhos, atentos.
-Eu tenho alguns primos nas colinas de Ferro que poderiam rapidamente expulsar esses evanianos de nosso lar! E depois, quem sabe, poderíamos fazer com aqueles elfos também.
Outros anãos riram, mas os Gimni não.
-Bem, essa guerra não é nossa. Mas uma coisa é certa: algo maligno está a espreita.
Houve alguns minutos de silêncio.
-Vocês também sentem? Sentiram aquela aura maligna que inundou os pobres coitados do Monte Burlmugaron? Aquilo não é deste mundo…
A fogueira criptou mais algum pouco. As sombras dançavam junto as chamas.
-Pannotia já tem problemas demais para lidar. Ouvi boatos de que forças demoníacas tomaram e infectaram os campos Elíseos com trevas. Outro dia, espectros carmesim cavalgaram muito próximo a Floresta Colosso, o que eles querem naquela região? Não há nada ali, é apenas uma Floresta de camponeses, gente humilde e comum, nada mais.
-Ouvi boatos de que eles também foram até o Entemenaque dos Fiëro. O valente príncipe Tokata lhes recusou qualquer auxílio. Dizem que eles estão procurando por alguém. Um gimni chamado Fotossíntico. Vai saber quem é este doido! Mas não importa o que ele fez, forças negras estão lhe procurando.
-Pobre coitado! -Disse um Gimni.
-Vocês não podem comunicar entre si? Tipo um whatsapp de árvores? -disse um anão, dando uma baita mordida na sua fruta Pempom.
-Tipo o que? O que você acha que nós somos? Telepáticos? -retrucou um Gimnis.
-Bem, não importa. Quando passamos por aquele assentamento nas favelas de Arghar, eles só sabiam falar em guerra, guerra, guerra, e uma princesa rebelde.
-Ei, princesas são legais! E bonitas também! -Disse um anão, sonhador.
-Sim, eu sei -retrucou outro.
-Continua -disse um Gimni, curioso.
-Bem, não tem muito o que falar. Eles parecem que são bastante orgulhosos de seu império, apesar de viverem na sarjeta. Pode perguntar pra qualquer um quando voltarmos por lá! Eles dizem que vão esmagar os Falconianos! Aquelas cabeças de passarinho sabem fazer armas que é uma beleza! Pena que eles estão totalmente entregues a tecnologia! Coitados, acham que são melhores que os anãos quando o assunto são armas!
-Esmagar os Falconianos? Eles são o que? Doidos? Biruleibes? -Disse um outro Gimni, incrédulo.
-Thiel e Falconia possuem um poderio bélico equivalentes. Ambos são referências em exércitos e tecnologias, tanto em Pangeia quanto em Laurásia, mas os Falconianos são territoriais demais e os Thieldianos, ambiciosos demais. A guerra entre as duas nações está prestes a começar! Quando eu estava nas favelas de Arghar, eu avistei várias frotas imperiais se dirigindo para cá. As primeiras chegaram hoje de manhã. Eu só quero terminar este serviço e sumir daqui! Não quero estar aqui quando Thiel trouxer a Átomos novamente para Pangeia. Pobres coitados!
-Átomos? O que seria esse “Átomos”? -disse um Gimni.
-O que é a Átomos?! Simplesmente a maior e mais poderosa arma de destruição continental de Thiel! Aquela arma é capaz de destruir um reino ou império num único disparo! Eu não sei como os evanianos chegaram a está tecnologia, algo fora deste mundo, com certeza, está contando os segredos mais íntimos do universo! O que eu não faria para ver está belezinha funcionando!
-Acho que sei do que está falando… deve ter sido a responsável pela catástrofe que dizimou o reino de Cela e Itorama. O local hoje é um oásis próximo a Fortaleza de Yanilad. Meu deus, que tragédia.
-Então você chegou a vê-la?!
-Bem, não exatamente. Tudo o que vimos foi uma densa e colossal muralha de nuvens rodopiando algo estupidamente grande, maior do que uma montanha… aquela aberração parecia o apocalipse. Bem, de certa forma, foi.
-Não sei como os Demiurgos deixaram os evanianos chegarem a este ponto. É lamentável, eles criaram uma arma para se aniquilar… Parece que eles só sabem viver em pretexto de guerras e massacres. Tolos… e pensar que os Terramarinos foram extintos por muito menos que isso!
-Pois é - disse um Gimni se pondo de pé -Bem, vamos indo. O portão não vai se arrumar sozinho. Sem trabalho, sem pagamento.
Gerlon e Flora se encararam e depois voltaram ao grupo.
-E então? O que eles disseram? -Perguntou Mikka.
-Temos que apressar o passo - anunciou Gerlon - uma frota de aeronaves imperiais estão vindo para cá. A guerra entre Falconia e Thiel vai começar em pouco tempo. Não podemos estar aqui quando ela explodir.
Gerlon possuía um olhar diferente, pensativo e preocupação estampavam em seu rosto.
-Gerlon, o que é a Átomos? Que aqueles anãos mencionaram? -Perguntou Flora.
-Eu… eu não sei. Mas você ouviu o que ele disse? Foi o responsável por destruir Cela e Itorama.
Spike cruzou os braços. Todos olharam para ele.
-Eu me lembro disso. Foi quando eu entrei na sala de guerra e anunciei a queda do Reino de Cela. Eu, por um momento, duvidei das minhas fontes, mas era verdade. O Reino foi destruído num único ataque, uma luz clareou os céus e tudo foi pelos ares.
-E você chegou a saber quem avistou essa arma? -Perguntou Sirius.
-Não. Afinal, estavam todos mortos. Pouco antes de eu encontrar Snow… seu irmão caído no cais, lembro-me de estar sempre sentindo umas vibrações no ar. Eu ignorei e também não havia nada no céu… era uma noite clara e sem nuvens.
Gerlon se afastou um pouco.
-Vamos andando, temos que correr. Temos alguns dias até chegar a Arghar.
Todos acenaram com a cabeça. Gerlon com certeza sabia de mais coisas, mas por enquanto não era hora de revelar esses segredos. Zafira já estava sobrecarregada com o pesado fardo de restaurar seu reino de volta, e isso não estava apenas em jogo, mas como todo o continente de Pangeia. A resistência reagia dependendo de como ela agia. A guerra batia em suas cabeças e era sentida no ar. Ele sempre ficará preocupado quando eles mencionavam uma criatura negra feita de turbilhão, como nos sonhos de Zafira. Ele avistou essa mesma criatura negra, duas vezes em poucos dias. Em casos diferentes, mas sempre ligados ao Império de Thiel ou as Evaniarites. Será que ele está agindo? Ele é o responsável por tudo isso? Se a resposta fosse sim, Gerlon se tinha colocado na obrigação de pará-lo, a qualquer custo. Anos atrás foi ela… depois disso, poderia ter sido ele ou outro. Mas foi ela. Ele se culpava e o amaldiçoava todos os dias, quando acordava.
O Pirata sabia que ele estava envolvido, e não era coincidência, era mais um “experimento científico” como ele diria. Gerlon sabia sim, o que era a Átomos, e ele também sabia (ou tinha um vago conhecimento) sobre essa criatura negra feita de turbilhões.
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