Capítulo 44 - As aprovações de Sedna (Parte 1)


O túnel que passava por dentro da rocha viva dobrava com uma repentina volta em ângulo reto e eventualmente abria-se para a face de um penhasco. Eles olharam para cima e avistaram a saliência era tal que eles teriam que encontrar bordas e agarrarem a elas para atravessar uma extensão de rocha antes de poder escalar.

Um rápido olhar convenceu de que nada além de morte os esperavam lá embaixo. Spike passou as mãos nas coxas mais uma vez, para limpar o último vestígio de sangue. Os ferimentos que ele sofreu, Flora havia feito uma magia de cura, mas nada extraordinário, agindo mais como primeiros socorros. As mortes dos inimigos haviam renovado sua própria energia, ele não sentia seu sangue correr dessa maneira e esquentar seus músculos a muito tempo. Nem mesmo sua luta contra Ferecks o fez se sentir desse jeito. Ele se lembrou de quando era mais novo, quando fazia expedições militares sob o comando do Rei Marley e lutava contra feras e criaturas com seus homens. Mas as consequências das batalhas sempre o esgotavam, porque, enquanto seu corpo estava inteiro, o seu espírito nunca mais esteve após a traição que o manteve preso por longos cinco anos.
A raiva encheu-o novamente ao lembrar-se de como o Império havia tramado a morte do Rei Marley, como o Império corrompeu seu melhor amigo, o prometendo recompensas vazias e falsos sonhos a todos os habitantes de Henry. Spike respirou fundo e forçou-se a retornar da maré escura que ameaçava afoga-lo. As visões seria o seu legado para sempre, a menos que ele fizesse o que fosse necessário para Zafira subir ao trono, ela necessitava sentar no trono e ele seria sua espada. Talvez fazendo isso, ela possa finalmente se desculpar por ter falhado com o Rei Marley, e só então ele poderia viver em paz consigo mesmo novamente. Tudo o que ele precisava fazer era atravessar o penhasco rochoso.

-Senhor Spike? – perguntou Mikka a sua frente – você está bem?

Ele acordou de seus pensamentos, ele estava de volta ao seu grupo. Todos o encaravam e esperavam seus próximos passos. Spike havia se destacado e liderado com pensamentos rápidos e lógicos institivamente, atravessando hordas de inimigos e os desafios que aquele lugar proporcionava a eles. Gerlon que geralmente tomava a liderança e a iniciativa do grupo, agora o encarava seriamente, esperando suas próximas ordens.

-Sim – disse ele – vamos continuar. Você está bem, pequena?

-Sim senhor! Sinto que vamos conseguir.

-Eu também, sinto que estamos perto. Espero que uma criança como você, nunca precise empunhar a espada.

Atrás dele, ele sentiu o sorriso de Zafira. Ele deu um passo, empurrou um elmo caído no chão em uma fenda pequena e estendeu os braços amplamente na direção de uma garra que mal podia alcançar. Seus dedos presos na saliência estreita de pedra permitiram que ele movesse o outro pé e assim continuasse a escalar a face rochosa do penhasco. Muitas vezes ele havia escalado montanhas para flanquear um inimigo, de modo que esse não era um desafio novo para ele. Mas precisava ser objetivo e ter mais cautela. Os outros que vinham com ele não saberiam repetir suas proezas, principalmente a princesa Zafira, que achou que nunca na sua vida fosse passar por essas situações.

-Maldição! – as palavras escaparam de seus lábios quando ele viu a protuberância de pedra a frente começou a aumentar e tomar forma. A pedra rebentou e tomou forma de uma criatura do tamanho de um homem e com cauda de escorpião, para bloquear o caminho de Spike.

Sacar sua nova espada requer uma estabilidade que ele não tinha. Ele pulou, buscou novos pontos de apoio e agarrou o escorpião. Sua cauda agitou-se como um chicote, mas Spike manteve um aperto firme em sua garganta e posicionou seu corpo de modo que a cauda mortal passasse por ele inofensivamente. Ele resmungou, concentrando toda a sua força para esmagar a traqueia blindada do monstro. A quitina rachou, a coisa começou a se debater violentamente, a cauda ficou ainda mais ameaçadora. Spike se esquivou quando a cauda zuniu pelo ar, mirando seus olhos. Uma gota de veneno que adornava a ponta do ferrão espirrou em sua testa e ardeu como fogo. Seu domínio sobre a criatura enfraquecia, enquanto o veneno escorria em sua sobrancelha, queimando-a e ameaçando pingar em seu olho.

Spike bateu o braço contra o veneno para evitar que ele lhe cegasse, mas seu braço estava coberto de sangue coagulado. O sangue entrou em seu olho, cegando-o. Assim como ele havia experienciado em batalha, o sangue caiu como o véu escuro dos rios que corresse no Inframundo em sua visão. Ele piscou furiosamente para limpá-lo. O sangue em seus olhos era melhor que o veneno que o cegaria permanentemente, mas a distinção desapareceu rapidamente quando ouviu garras raspando na rocha abaixo dele.
O monstro escorpião havia caído alguns metros abaixo, quando ele o liberou, mas agora estava voltando para matá-lo. E ele não podia vê-lo. Um zumbido de flechas passou por seus ouvidos, Flora atirava setas na esperança de afastá-lo de Spike.

Ele fechou os olhos com tanta força que lhe causou dor. Depois, lembrou-se dos corpos que ele já vira ao longo de sua vida. Raiva e lágrimas explodiram dentro dele, e sua visão era cristalina novamente. O escorpião de pedra estava a apenas alguns metros de distância e aproximando-se, sua cauda com o ferrão venenoso preparado para um golpe mortal. Spike fez um movimento feroz, pegou a criatura pelo pescoço novamente, e torceu-a violentamente. A cauda percorreu um arco sobre a cabeça da criatura, atingindo a rocha, a alguns centímetros de Spike. Com outro grito para reunir sua força e raiva, Spike juntou seus dedos, quebrando completamente sua garganta. Ele a segurava, agora suspensa, longe do chão; ele já não precisava ver claramente para terminar o serviço. O bicho se contraia debilmente, até o resto de sua vida desaparecer. Spike deixou-o cair, observando o corpo bater repetidamente nas rochas do penhasco antes de desaparecer, muito abaixo.

Spike limpou o sangue de sua mão e continuou atravessando o penhasco, ainda piscando para recuperar a sua visão completamente. Ele tinha escalado apenas alguns metros, sem nem mesmo chegar ao local por onde poderia ir direto para o topo, quando novos ruídos de garras o alertaram para outras daquelas coisas que surgiam das pedras.

-O destino exige muito de nós. De mim.

Olha por tudo que já passei e tenho que passar, meu castigo ainda é pouco? – disse ele, tentando acelerar ao longo do caminho que havia sondado pela pedra.

Spike mal havia alcançado o ponto em que poderia subir diretamente para o topo, quando mais dois monstros atacaram-no repentinamente, correndo pela rocha vertical como se estivesse em um terreno plano.

Spike encontrou uma saliência e posicionou os dois pés sobre ela. Ainda suspenso, ele arrancou uma pedra livre com sua mão direita e atirou-a com toda a força. O míssil navegou com precisão. O escorpião mais próximo reagiu instintivamente e atacou a pedra com sua cauda mortal. Essa era toda a abertura que Spike precisava para lançar uma segunda pedra, que atingiu exatamente o meio da cabeça da criatura. A cauda voou para afastar esse novo ataque, e o monstro escorpião ferroou-se.

Sem esperar que a criatura moribunda caísse do penhasco, Spike jogou uma terceira pedra, desalojando-a. Agora ele enfrentaria apenas mais uma. Esse monstro arqueou as costas e derramou lascas de pedra em todas as direções. Spike protegia seu rosto contra as agulhas calcificadas e inutilmente buscou outra rocha. Não havia nenhuma. Spike olhou para cima, traçou seu caminho até o topo do penhasco e começou a escalar o escorpião diretamente sob ele, correndo mais rapidamente do que ele podia escalar tal rocha uniforme.

A poucos metros do topo do penhasco, Spike soltou-se e caiu. Ele colidiu com o escorpião, no local ocupado por todas as oito pernas do monstro. Com um giro, Spike mudou de direção e agarrou o ferrão, que se arqueava para cortá-lo e envenená-lo.

Uma pequena gota de veneno amarelado pingava da cauda. Seu peso estava inteiramente apoiado no escorpião, e, quando o capitão caiu em cima da cabeça da criatura, surpreendeu-a tanto que suas pernas começaram a se soltar da parede, uma a uma. Spike agarrou-se à cauda que se movia violentamente até estar certo de que o escorpião não poderia manter a sua aderência à parede por mais um instante. Com uma torção feroz, ele puxou a cauda e despejou o monstro. No mesmo instante, ele chutou com força a face rochosa do penhasco e procurou um apoio.

O escorpião seguiu seus companheiros para o distante solo, e Spike pendurou-se pelas pontas dos dedos de uma mão em uma reentrância pequena e empoeirada, Pouco a pouco, seus dedos deslizaram. Ele olhou para baixo, não para ver onde poderia cair, mas para encontrar pontos de apoio, ele não poderia esquecer de que tudo o que ele fizer, seus companheiros farão igual. Impossibilitado de localizar algum por perto, ele lançou suas pernas o mais forte que pôde. A dor enlaçou a sua perna, mas seus dedos estavam bastante apoiados na lasca para que pudesse suportar seu peso. Seus dedos deslizaram, mas seus pés o apoiaram quando ele escorregou.

Ele se levantou no apoio duramente conquistado a seguiu o seu caminho rocha acima, para chegar ao topo do penhasco. Uma vez lá, Spike caiu de joelhos e fez uma oração silenciosa, se ele acreditava em deuses ou não, nas deusas ou não, não importava, embora o tipo de ajuda que ele havia recebido deles anteriormente fosse um enigma. Ele havia sobrevivido por conta de seu próprio esforço e continuaria a ser assim.

A frente, em meio ao portal aberto na lateral da montanha, procediam estampidos, barulhos de máquinas e ruídos que ele não conseguia identificar. Ele aguardou alguns minutos até que todos subissem em segurança, pelo caminho limpo sem escorpiões, assim pensou ele, o que no final se provou ser verdade. Depois de quase trinta minutos de espera e ajudando a todos a subirem até o alto. Sacando sua nova lâmina, ele se aproximou do portal e avançou pelo túnel. Eles pararam ao lado de uma esteira rolante que desaparecia sob uma saliência rochosa. Spike usou sua espada contra a pedra, mas mesmo a magia potente presa no metal não poderia mover um pedregulho sequer. Ele se virou e olhou na direção em que a esteira se dirigia e viu o que produzia ruídos desconhecidos. Enormes blocos cravejados com pregos longos colidiram repetidamente.

A única maneira de avançar era correr contra a direção da esteira rolante e passar pelo rítmico abrir e fechar da mandíbula de metal e pregos. Spike retornou a lâmina para seu ponto de descanso em suas costas, calculou a ação das mandíbulas mortais e pulou na esteira rolante.

Ele calculou mal a velocidade e foi arrastado pela esteira, para ser esmagado na parede de pedra. Ele gritou de dor e recuou. Zafira correu para socorrê-lo. Embora a face da parede parecesse ser pedra comum, seu mero toque desferiu lanças quentes de dor em seu corpo. Spike começou a correr, até equilibrar sua velocidade com a da esteira. Em seguida, ele empregou mais esforço e triunfou sobre ela, aproximando-se do seu primeiro conjunto de pedras que se esmagavam.

Além disso, havia muitos mais. Uma vez comprometido com essa aventura, ele não tinha escolha, senão mergulhar na frente e nunca vacilar. O menor erro o jogaria entre os painéis perfurantes, empalando-o. Se ele fosse para trás, voltando com a esteira transportadora, seria arrastado para a parede e receberia torturas que queimariam o âmago de seu ser.

Com tal incentivo, ele aplicou uma velocidade explosiva e com sucesso passou pelo primeiro conjunto de pedras. Monstros de lendas de Cila e Caríbdis que bloqueavam a sua passagem obrigaram-no a concentrar-se totalmente para evitar um esmagamento das garras e de seus dentes afiados. Ele disparou, verificou a velocidade necessária e irrompeu a frente, quando as mandíbulas de metal se abriram, e não recebeu nenhuma lesão. A passagem final não operava em um padrão, mas era inspirada pelo caos.

Spike virou-se quando uma faca afiada atingiu-o no bíceps, segurando-o no lugar. Percebendo o perigo de ser contido, ele impulsionou-se violentamente e deixou para trás um bocado de músculo sangrento para que pudesse correr ao longo da esteira, em direção a uma saliência de pedra, onde poderia descer com segurança. Em vez de os sons das máquinas diminuírem, Spike e os demais ouviram ainda mais alto, ao longo de um túnel que levava a uma sala que convenceu de que o Arquiteto Cadmio havia enlouquecido por causa dos Demiurgos.

Profundas ranhuras duplas formavam um campo quadrado. Rolando sem parar nas ranhuras havia rodas de lâminas dupla; suas bordas eram reluzentes e tão afiadas que Spike Tinha que fechar os olhos quando elas corriam perto dele. Do outro lado da sala, um portão de ferro bloqueava a saída, mas ele viu a solução para isso. Uma alavanca se projetava do centro de um quadrado. Bastava impulsioná-la e o portão abriria. Mas chegar a ela exigiria cronometrar  o tempo das lâminas e lançar-se de maneira mais ousada do que no seu desafio anterior. As rodas afiadas nunca paravam, nunca descansava, e iriam cortá-lo e tiras, se ele cometesse um único deslize.

Gerlon recarregou sua arma e disparou contra uma das lâminas, esperando que elas fossem destruídas, mas nada aconteceu.

-Eu não estou muito afim de rever aquele cara de novo não – resmungou Gerlon.
O grupo ficou ali durante alguns minutos refletindo sobre o que fazer. Até aquele momento, esse grande salão era o mais mortal de todas. O risco de morte era mais alto do que qualquer coisa que eles já enfrentaram, até mais que na tumba de Gaiseric. Spike sabia que não poderia arriscar muito, ele tinha certeza de todos ali, Mikka era a mais frágil e que tinha a maior chance de morrer, e ele definitivamente não queria isso.

-Não podemos desistir... – disse Zafira, baixinho.

-E nem podemos recuar – completou Sirius.

-Flora – Spike a chamou – você sabe magias de vento?

-Sim – respondeu ela confusa – mas como isso nos ajudaria?

-Preciso que você me ajudasse a chegar até o outro lado.

-Mas eu não sei se conseguiria levita-lo. Você poderia cair direto para as lâminas e morrer.

-Então me dê apoio. Irei saltar o mais alto que eu puder, enquanto isso, com ajuda dos ventos, me torne mais leve e me aterrisse ao cair.

Se ele preparou e com um salto poderoso, ele pulou por cima de uma roda. Ele sentiu o ar ao seu redor o tornando mais leve, como se mãos de vento o ajudasse a flutuar, e caiu ileso no meio de um quadrado, o vento sob a sola de seus pés rodopiavam, amaciando seu pouso. Ele ficou ereto quando as rodas passaram ao lado e atrás dele. Spike calculou a periodicidade da roda a frente e pulou quase na mesma hora que ela passava, alcançando um quadrado que ficava mais perto da alavanca. Só então ele percebeu que o ritmo frenético das rodas mortais havia aumentado. Quanto mais perto ele chegava da alavanca, mais rápido as lâminas rolavam.

Ele buscou sua nova espada no intuito de destruir qualquer uma das rodas em seu caminho, mas parou. Será que o Arquiteto Cadmio teria imaginado um ataque contra as serras e encontrado uma maneira de preveni-lo?  O metal das rodas carregavam um brilho prateado diferente de tudo o que Spike já vira antes. Embora sua nova espada fosse aparentemente forjada na magia, Spike obedeceu seus instintos, que lhe dizia que a lâmina era a arma errada para usar contra as rodas. Eles tinham outros armamentos, claro, mas a nova lâmina deveria estar intacta para cumprir seu objetivo.

Spike abandonou o punho de sua espada e mergulhou para a frente, dependendo da sua coordenação e habilidade inatas para esquivar-se do movimento mortal das rodas.

Ele tropeçou no quadrado que segurava a alavanca, recuperou o equilíbrio e moveu a estrutura com toda a força. A resposta foi tudo o que ele esperava. O portão de metal do outro lado da sala fez barulho e tiniu ao abrir. Spike levou alguns segundos para reunir a sua sagacidade e começar a saltar sobre as rodas para sair da câmara, quando viu o portão descendo lentamente.

-Você é diabólico, Cadmio. Rápido, movam-se depressa!

Flora fez alguns gestos de mão e runas começaram a emanar ao seu redor.

-Rápido! Façam igual ao Spike! – Gritou Flora.

Um a um começaram a pegar distância e saltar por cima das rodas afiadas. Flora realizava magias de vento e o salto era impulsionado, fazendo todos saltarem mais distante, passando por cima de Spike. Gerlon pensou em uma meia dúzia de maldições para lançar o Arquiteto Cadmio. A alavanca, uma vez puxada, permitia que a porta permanecesse aberta durante um curto período de tempo. Mais duas vezes Spike utilizou a alavanca e contou o tempo para determinar o quão rapidamente ele deveria saltar e desviar por metade da câmara cheia de foices redondas da morte.

Não era muito, mas seria o suficiente.
Flora foi a última a pousar suavemente diante da porta e ela fez um sinal com a cabeça para Spike, que permaneceu segurando a alavanca, dando tempo do grupo atravessar. Spike fechou os olhos e respirou fundo. De repente sua audição canina se tornou ainda mais ampla e aguçada. Os sons das lâminas emanavam curtas e breves vibrações tão fracas que não era perceptível, mas ele detectou no ar. Ele ativou o “Hiper Foco”. Uma magia arcana em que ele aumentava todos os seus sentidos ao limite. Spike se preparou, puxou a alavanca e saltou para o quadrado adjacente. Pegando velocidade, saltou para o próximo, e para o próximo; então percebeu que o portão estava se fechando, e ele ainda tinha mais dois quadrados para atravessar. Ele irrompeu em uma explosão de velocidade que permitiu a uma roda passar pelo seu peito, abrindo um corte superficial sobre as suas costelas. Girando e usando o impacto para adicionar velocidade, ele saltou alto sobre a última roda que bloqueava o acesso ao portão, deu uma cambalhota e passou pela porta com apenas alguns segundos, e alguns centímetros excedentes.

Spike deitou de costas, olhando para o teto baixo do corredor, enquanto recuperava sua força. Com o estalido de metal e pedra para trás, eles seguiram em frente, através de um túnel até sair na frente de um cômodo com um enorme portal circular. Pressionando seus olhos contra uma rachadura no meio da estrutura de pedra, ele viu um altar lá fora, sob aquela neve fofa e branca das montanhas. Mesmo com seus esforços mais poderosos, ele não conseguiria arrombar a porta a partir da pequena rachadura. Eles tiveram uma visão tentadora de onde deveria ir, mas nenhuma dica de como abrir aquela porta.
Gerlon se virou e olhou o imenso aposento onde estavam.

Ele correu os olhos para cima e encontrou algo que parecia familiar. Bem acima das bordas e passarelas do aposento ele avistou uma estátua. Um grande homem de quatro braços equilibrando o mundo em seus ombros vigorosos. Seu rosto era coberto de barba, grandes dentes bestiais e dois grandes chifres. Todas as suas labutas haviam trazido o grupo para um lugar onde que só poderia ser descrito como um santuário em homenagem aquela criatura. Correndo na direção de um ponto que ficava abaixo de uma passarela a quase oito metros sobre sua cabeça, Gerlon captou os detalhes, e o que eles poderiam fazer para avançar.

Eles não sabiam, mas aquele era Thádala, um ser das subespécies dos gigantes que auxiliou o Arquiteto Cadmio na construção de Rahma Haruna. O Arquiteto Cadmio construiu a grande estátua em homenagem a seu amigo. Thádala estava esmagado pelo peso do mundo. A carga deveria ser aliviada. Spike se dirigiu para uma manivela situada atrás da imponente estátua, e hesitante, pressionou-a. A manivela moveu-se um pouco, até sua resistência aumentar a ponto de Spike ter de se esforçar ainda mais. Desviando o olhar da estátua para a passarela, uma segunda alavanca, acima da estrutura. Revelou-se. Com a mente repleta de possibilidades, Gerlon chegou a uma decisão rápida e aplicou-se a girar a manivela.

Pouco a pouco ela se movia. Com mais esforço, ela girou em um círculo completo. Com ainda mais empenho, forçando os músculos e com suor escorrendo enquanto a resistência aumentava, ele conseguiu girá-la totalmente pela segunda vez, ficou mais fácil após a Flora lhe ajudar. A estátua agora tinha somente metade do mundo em seus ombros. Sabendo que tinha tido sucesso em descobrir o que deveria ser feito, Gerlon inclinou as costas, firmou-se no chão e começou a mover a manivela a uma velocidade constante. Com cada giro, o mundo levantava um pouco mais dos ombros de Thádala, até que a estátua já quase não estivesse dobrada pelo peso nas costas.

Apesar do melhor esforço de Gerlon e Flora para girar a manivela ainda mais, eles agoram encontraram total resistência. Ele afastou-se e olhou de volta para a segunda alavanca, em cima da plataforma e do outro lado do aposento. Ele colocou impulso total em suas pernas, para saltar e atingir a passarela. Gerlon estava no mesmo nível dos olhos de Thádala. Embora as órbitas fossem esculpidas em pedra fria, ele sentiu que aquele gigante encarava-o com alívio.
Ele aplicou pressão na alavanca da passarela. Esta requisitava um pouco esforço em comparação com a que Spike havia manuseado. Gerlon recuou quando viu a estátua ficar um pouco mais alta e levantar o globo enorme em sua direção. Sem lugar para se esconder, Gerlon esperava a morte. Em vez disso, o globo terrestre saltou duas vezes e rolou sob a passarela. Gerlon observou enquanto a pedra colidia com o portal que ele fora incapaz de abrir. O tamanho do globo correspondia exatamente ao diâmetro da porta.

Os outros olharam para o altar, onde um sarcófago de ouro envelhecido brilhava sob a neve e céu nublado e frio. Eles pularam a passarela e foram descobrir qual era a nova armadilha que o Arquiteto Cadmio havia colocado em seu caminho.

O frio intenso fustigou eles quando saíram para fora do templo. Lentamente, eles viraram o rosto para cima e se deleitaram com a brisa gelada, saboreando-se depois de estar preso dentro de um templo escuro. Eles respiraram fundo e sentiram o ar encher seus pulmões. Os ferimentos de Spike já não doíam mais, e ele balançou os braços, sentindo o poder fluir mais uma vez através dos seus músculos. Junto com isso, o veneno que havia ameaçado sua visão estava purgado de seu sistema. A cegueira era uma memória que ele não se importaria de não revisitar, e era uma das poucas lembranças das quais poderia se libertar.

Eles não tinham tempo a perder, porque a recordação do avanço da nova frota imperial incitava-os tanto quanto o seu ódio por Leore. O Grão-Sacerdote Esdras não precisava ter avisado, mas sabiam que o tempo era escasso, e encher seus pulmões para lhes revigorar não ajudaria a completar sua missão, assim pensou Zafira.
Eles correram ao longo de um caminho pavimentado para a base do altar, onde o grande sarcófago brilhava à luz do sol. Zafira e Spike apertaram os olhos contra o reflexo brilhante quando chegou a borda do esquife; em seguida, aprumou-se para que pudesse olhar para dentro da tapa.

Alguém de grande importância havia sido enterrado dentro desse caixão chamativo. Seus dedos se enroscaram em torno da borda. Zafira abriu um sorriso, ela estava prestes a recuperar a Gran-Solaris, ela já se imaginava empunhando sua espada. Todos, com exceção de Mikka, se propuseram a ajudar o grande sarcófago, e lá,havia apenas um corpo ressequido.

-Isso é... tudo? – ela olhou para cima, para o céu, com os braços estendidos – isso não pode ser o tesouro de Gaiseric! Ninguém além dos herdeiros do rei pode obtê-lo!
Zafira curvou-se, agarrou a cabeça do esqueleto e sacudiu-a com força. A cabeça saiu do corpo facilmente, deixando para trás uma nuvem de poeira de sua medula espinhal arruinada. Mikka saltou para os braços de Sirius, com medo. Ela ergueu o braço e atirou o crânio para o alto, como se pudesse investir contra os céus com essa relíquia para mostrar o seu desdém. Ela curvou-se diante do caixão e enfiou sua cabeça entre as suas pernas.

O crânio descreveu uma curva para cima; e seguida, voltou para baixo, retraçando a trajetória para aterrizar nas mãos de Gerlon. Ele o jogou novamente, dessa vez para o outro lado. A cabeça tombou lividamente sob as nuvens e, em seguida, fez um trajeto circular para retornar. Gerlon começou a lançá-la no ar mais uma vez, então o senso comum assumiu e substituiu sua dúvida. Se o crânio se provava tão difícil de se livrar, talvez eles devessem mantê-lo.

-Olha, princesa – disse ele para Zafira – talvez ainda não tenha acabado. Esse pode não ser o verdadeiro tesouro do rei. Nós ainda não terminamos.

-Porque acha isso? – Perguntou Zafira.

-Talvez tenhamos desviado do caminho em algum momento. Não é hora de se lamentar, ainda temos como recuperar o tesouro.

Ele entregou o crânio para Spike. Ele pendeu ao lado do caixão e correu os dedos sobre os glifos gravados nas margens douradas. Pouco a pouco as palavras tornavam-se claras. Gerlon balançou para trás e olhou para o crânio que estava nas mãos de Spike.

-O neto de Arquiteto Cadmio? Seu avô colocou o seu corpo dentro desse caixão bonito para quê?

Ele virou a grade, com um som áspero como a pedra arrastada sobre a pedra, e uma cavidade enorme se abriu na base do altar.

Gerlon encarou por alguns segundos o buraco à sua frente e simplesmente se jogou. Ele passou pela borda do poço e caiu durante o que parecia ser uma eternidade. Mas ele não caiu até o Inframundo; ele caiu com um impacto duro no fundo do poço. E um agachamento, ele olhou e viu que havia um corredor possível de seguir.

-Olá? Pessoal? Podem descer! Está tudo bem, é até divertido! – gritou ele da mesma cavidade que ele viera.

-Você está vivo? Você ficou louco? – gritou Flora lá em cima.

-Quase isso, não podemos parar agora gente, venham logo!

-É seguro? – Gritou Sirius.

-É mais seguro do que beber água.
Ele ouviu alguns murmúrios entre o grupo lá em cima, eles ainda estavam em dúvidas se deveriam descer ou não. Após algum tempo de discussão, ele ouviu um som estranho descendo pelo tubo. Pela mesma cavidade que descera, surgiu Spike com o crânio ainda em mãos.

-Sabia que você não me decepcionaria – disse Gerlon – você entende como isso é importante.

-Eles estão com medo, releve – retrucou Spike – senhora Zafira, por favor, pode vir.
Um outro barulho de alguém descendo ecoou. De repente, Zafira estava lá. Spike a ajudou a se levantar.

-Ótimo, venham um de cada vez! – gritou Gerlon.

-Ele disse para irmos todos de uma vez? – ecoou a voz de Sirius pelo buraco.

O barulho tornou-se muito alto. Um vento gelado saiu da cavidade e de repente, gritos agudos foram se tornando mais altos à medida que se aproximava deles. De repente, três pessoas caíram sobre Gerlon, por sorte, a cavidade tinha diâmetro suficiente para passar três pessoas.

-Eu falei que deveria vir os três separadamente! – brigou Gerlon, se levantando.

-Eu falei para você, mas você nunca me escuta! – brigou Mikka com Sirius.

-Jurava que havia escutado para irmos os três, já que nosso tempo é curto – respondeu Sirius com dor nas costas.
Mais afastado deles, Spike ergueu o crânio e olhou para suas órbitas vazias. Depois fitou o único caminho à sua frente.

-É por aqui que seu avô escondeu o tesouro do rei?

Spike não esperava resposta, e não obteve resposta nenhuma. Ele andou pelo corredor decrépito, alerta para um ataque inimigo. Os outros o seguiram. Quando eles chegaram ao fim, acharam uma porta enorme, estampada com a insígnia de um crânio, bloqueando seu caminho. Spike pressionou a porta, tentando forçá-la.
Como ela não se moveu, ele passou os dedos sob a borda e tentou levantá-la, até suas costas doerem como se fossem rachar. Ofegante, Spike percebeu que a força bruta não iria triunfar. Mas como ele poderia derrotar essa porta?

Ele recuou dois passos para adquirir uma visão melhor do padrão da porta. Após vários minutos de estudo, ele deixou que a raiva latente dentro dele viesse à tona. Dois movimentos rápidos com sua nova espada para que ele pudesse usá-la contra a pesada porta. Golpear repetidamente não produziu nenhum resultado, nem mesmo as magias elementais de terra e pedra de Flora adiantaram, embora o ar tivesse se enchido com um cheiro acre de metal queimado, depois de uma dúzia de ataques. Spike rosnou, redobrou seu esforço e finalmente se afastou; a raiva ainda não havia desaparecido, mas um semblante de racionalidade esgueirava nele.

-O senhor já tentou usar o crânio?- disse Mikka – A porta tem o padrão de um crânio gravado nela.

Ele levantou o crânio do neto do Arquiteto Cadmio e posicionou-o de modo a combinar com o contorno da porta. Andando para a frente, viu que a pequena depressão no centro do desenho combinava perfeitamente com a caveira na sua mão. Ele empurrou-a para a frente. Por um momento pensou que nada aconteceria; então sentiu o crânio sendo puxado de suas mãos e tragado pela porta, até que apenas um contorno permaneceu. Mikka fez uma careta de nojo.

-Eu não deveria ter dito isso – disse Mikka, enjoada.

Spike soltou sua ira mais uma vez. Dessa vez a porta se levantou, lentamente, um centímetro de cada vez. Quando ele pôde passar por baixo dela, mesmo agachado, deu uma cambalhota e ficou em pé do outro lado. Quando a porta voltou para seu lugar, Spike rugiu em fúria irracional. Manter as visões escuras encurraladas havia sido fácil o suficiente enquanto ele lidava com os lacaios do Inframundo, ou quando havia superado o templo, mas agora a realidade aterrorizante de seus pesadelos rodou sobre ele como uma mortalha envolvendo um morto.

Lutando para manter as memórias presas, ele tropeçou cegamente pelo corredor, como se pudesse escapar dele, seguindo em frente sem se importar por onde tropeçava, desde que os pesadelos não assumissem o controle de sua mente. Bloqueando seu caminho estava o corpo esparramado de um guerreiro vestido com uma armadura ao estilo thieldiano; sua mão sem vida ainda segurava uma espada. As únicas marcas de batalha que ele lutara eram as manchas negras cheirando a sangue de mortos-vivos que o pintavam da cabeça aos pés. Spike passou por cima do seu corpo e encontrou mais ossos espalhados ao longo túnel, que se estendia gradualmente em declive, até atingir um portal em arco.

Ele olhou através da porta para uma cena infernal: a vasta câmara estava iluminada por chamas provenientes dos corpos de homens mortos. O fedor dessa fumaça negra era pior do que o cheiro do sangue dos mortos-vivos. No centro da câmara iluminada de vermelho, havia uma pirâmide enorme de crânios; a luz lhes emprestava uma ilusão macabra de vida pela dança das chamas.
Mil crânios.

Spike não sabia o número, mas ele sabia, por que ele mesmo havia feito pirâmides assim no passado, quando serviu ao Rei Marley durante o início da invasão, a cinco anos. Pirâmides como essas foram levantadas com os chefes de tropas e esquadrões de Thiel.

Por mais que tentasse, ele viu que era impossível conter as visões agora. As memórias rugiam para ele como um oceano inundado de um dique quebrado. O aposento, o templo, a busca pelo tesouro do rei Gaiseric, tudo isso foi arrancado de sua mente, e as visões que o dominavam eram de anos atrás, os bons anos, quando ele fora um dos mais jovens capitães de exército de Henry, guiando o exército do Rei Marley para a vitória após vitória...

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O campo de batalha ficou em silêncio; era o silêncio da morte. Ele podia ouvir apenas os corvos draconianos e os abutres mórbidos a distância, para anunciar que suas barrigas estavam cheias com as carnes dos soldados caídos. Nenhum outro som. Nem mesmo o gemido de um homem ferido, mas ainda vivo.

Spike não ouviu nenhum sobrevivente porque ele havia ordenado isso. Ele havia ordenado morte completa.
Sem piedade. Sem prisioneiros. Sem clemência.

Seus homens investiram pesado contra o exército mais fraco, e quando seu comandante tentou se render, Ferecks abateu seus mensageiros. Qualquer soldado ferido demais para deixar o campo teve a garganta cortada pelos seguidores da unidade militar. Por uma recompensa, e para tomar uma orelha como troféu. Spike pagava seus homens de acordo com a quantidade de mortos. Uma prática que ele tinha junto ao seu amigo Ferecks.

O sangue saturava o chão; andar entre as pilhas de cadáveres era muito parecido com caminhar na lama após uma chuva pesada. Exceto pelo fato de que isso era sangue. Litros de sangue. Litros de mil golpes, punhaladas, focadas e gargantas cortadas.

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Ele sentiu uma tontura momentânea, e o próximo segundo anunciava uma nova visão: ele montava uma máquina em forma de cavalo e brandia a espada encharcada de sangue.

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-ATAQUEM! – o comando atravessou sua garganta e pôs o seu exército em movimento. Spike se inclinou e varreu as laterais com sua espada, enquanto montava. Guerreiro após guerreiro morria enquanto ele passava correndo. Os corpos empilhavam-se. Ferecks ria alto em algum lugar ao seu lado quando o exército se apressou para a... derrota.

Spike deitado de costas olhando para um céu que carregava a cor de uma ferida bruta. Nuvens pesadas fervilhavam acima do campo de batalha, e o exército imperial matava sua clemência. Tudo o que Spike ouvia era o ruído de seus melhores soldados sendo assassinados pelo império. Ele tentou sentar-se, mas não pôde; um de seus braços estava preso a terra por uma lança imperial. Ele estendeu a mão e puxou a arma de seu braço.

Elevando-se sobre Spike estava um Marechal; ele segurava em sua mão forte um vasta espada de dois gumes, como se fosse uma grande lança afiada, do qual escorria sangue henryniano. Seu sorriso estava escarlate  com o sangue dos pescoços henrynianos que ele havia mastigado. Ele caminhou para a frente, levantando a espada para esmagar a vida do maior capitão do Reino de Henry...

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E, e seu pesadelo, Spike não conseguia parar de gritar as mesmas palavras que havia naquele dia negro, há cinco anos.
-Desgraçado! – as palavras ecoaram em seus ouvidos e em sua memória de uma vez. Spike cambaleou, e viu-se novamente no Templo de Rahma Haruna; em suas mãos sua nova espada emanava uma aura roxa.

Ele enxugou o suor da testa com sua mão trêmula. Ao seu redor, seus amigos estavam preocupados com ele. Ele estava grato pelas visões terem parado; quem poderia saber que outra memória tomaria conta dele? Essa era a pergunta que ele não suportava responder.

O fogo queimava, e o cheiro de carne assada o interrompeu. Isso também era-lhe familiar, por seus anos de luta, embora felizmente não tenha provocado nenhuma outra lembrança. Spike agachou-se em um canto, mantendo a grande lâmina brilhante baixa, mas pronta.

Sons de alguém engolindo rápido a sua comida e fungando vieram das proximidades, roncos e estalos de lábios, como de um glutão em uma festa. Eles andaram furtivamente em torno do monte de cabeças cortadas, inclinando-se para pegar um vislumbre do festeiro.

Um ciclope estava agachado, mastigando só poderia ser a coxa de um soldado. Os dentes amarelados e quebrados esmagaram o fêmur, permitindo que o ciclope ruidosamente sugasse o tutano.

Quando terminou, ele atirou casualmente o osso de lado e caçou outro pernil. Enquanto ele arrancava a segunda perna do cadáver, algum instinto selvagem advertiu a criatura da abordagem vindoura de Spike.

Ele levantou a cabeça, piscando o grande olho; a sua boca estava aberta, pedaços de carne humana pendendo de seus dentes cariados.
Spike levantou a sua nova espada e continuou. Esse ciclope era meramente uma besta – não era como seus irmãos de outros tempos, que eram ótimos artesãos e pedreiros. Esse em particular parecia demasiado estúpido e imbecil para saber o que é uma pirâmide, quanto mais construir uma. O monstro não devia estar sozinho. Sirius segurou os braços de Mikka e se esconderam atrás de uma outra pirâmide de ossos.

-Onde estão os seus parceiros nessa festa macabra? – Perguntou Gerlon, sacando sua arma.

Como resposta o ciclope se levantou e pegou uma barra de ferro maior do que Spike. A barra zuniu no ar e veio de encontro a espada de Spike.
Spike virou a lâmina para encontrar a arma do monstro com a ponta da sua. Um giro de mão cortou a barra em duas, os pedaços deslizaram pelo chão.

O olho do monstro se arregalou em espanto, e ele se virou para fugir. Para Spike, um inimigo em retirada era apenas um que ele ainda não havia matado. Ele saltou atrás dele, brandindo a sua nova espada com o braço elevado para acertar aquele ser na parte de trás de seu ombro esquerdo, em um corte limpo e sem resistência. O enorme braço carnudo da criatura e sua mãos de dedos medosos caíram no chão.

Antes que o ciclope entendesse o quão profundo era seu ferimento, Zafira o poupou-o do choque. Seu movimento seguinte levou a katana diretamente onde o pescoço encontrava o ombro. Músculos e ossos deram lugar a uma lâmina. Quando a navalha afiada cortou a coluna da fera, suas pernas já não podiam carregá-lo em sua fuga, e com um único tiro de escopeta de Gerlon, a criatura caiu de cara no chão, com um baque retumbante. 

Quando o grupo chegou a porta que levava a outra sala, duas vezes mais alto que o tamanho daquela onde o ciclope estivera banqueteando-se, uma onda de calor ameaçou chamuscar os pelos deles; parecia que a maior parte do salão estava entregue a uma fogueira enorme, não muito diferente daquela do lado de fora do templo. Suspensa sobre o fogo por uma longa corrente estava uma gaiola; e no interior da gaiola havia um corpo. Lentamente, a corrente alongada baixava a gaiola no poço de fogo.

Zafira avançou, então congelou quando Gerlon a segurou fortemente pelo braço: um fio fino pressionando sua perna. Spike usou a parte plana da lâmina da espada para traçar o caminho do fio. Ele levava a uma simples pedra que reforçava o apoio de uma parede lisa. Em vez de recuar e liberar a pouca tensão que ele já aplicava ao fio com a perna. Spike cuidadosamente dirigiu sua nova espada para baixo da pedra, para não deixar o fio afrouxar-se.

Com o lado plano da lâmina segurando o fio esticado e a espada segura no chão, Spike e Zafira recuaram. Ele foi examinar o apoio. O fio quase invisível corria através de um pequeno orifício na base da coluna.

Do outro lado, a pedra havia sido escavada onde o fio se enrolava em torno de um jarro de argila tapado com uma rolha.
Se eles tivessem avançado um centímetro, o fio teria envolvido o jarro e feito a rolha saltar para fora, derramando o seu conteúdo. Spike decidiu que valia a pena ver o que essa armadilha teria feito a eles.

Ele andou de volta para a porta e empurrou o cabo de disparo. A rolha libertou-se, lançando um fluido preto e grosso da boca do jarro. Gerlon balançou a cabeça, rindo. Que armadilha miserável! Mesmo que o melado preto fosse um veneno mortal, qualquer um que desencadeasse a armadilha já teria passado de sua zona de alcance e estaria bem longe do tal líquido.

Mas sua risada desbotou quando o melado preto começou a esfumar e queimar a pedra abaixo. Um instante depois, toda a parede foi derrubada e bateu contra a pedra com força bruta, e no chão ao lado da parede, onde um homem ágil poderia ter saltado para escapar da parede caindo, havia uma grande piscina da substância negra escaldante. Uma substância que destruiu a pedra em segundos, o que teria feito a carne de  meros mortais?
Gerlon decidiu que eles poderiam viver sem saber a resposta.

Agora a fumaça, ou algum tipo de gás, era liberada pelo líquido enquanto ele queimava a pedra, e o gás ondulou sobre a superfície borbulhante e negra. Um bocado de fumaça se arrastou para cima, sobre suas mãos, e, onde o gás o tocou, sua pele enegreceu, empolou e começou a queimar, e Spike decidiu que poderia também viver sem saber como é a sensação de ter um membro necrosado, como Gerlon.  A seção do piso sobre o qual ele se estava começou a afundar, quando o óleo negro ferveu através de seus cantos.

A três ou quatro metros ao lado da porta do aposento havia outro apoio, que também sustentava um desses braseiros eternos. O cheiro de veneno começou a ficar cada vez mais forte, pois queimava seus pulmões. Mikka começou a tossir violentamente. Eles aceleraram correndo para frente tentando escapar dali. Eles pararam alguns metros à frente por um momento, enquanto tentavam recuperar o fôlego, mal se livraram do perigo, e olharam para trás, para o lugar de onde vieram. Seus pulmões queimavam com os vapores mortais. Eles deram um solavanco quando o homem murcho dentro da gaiola se levantou do chão da jaula, onde ele havia enroscado e amarrado a barras, para olhar para o grupo.

-Há mais, vocês sabem. Paredes, o óleo é apenas o começo.

A voz era rachada com a idade rouca o suficiente para que Spike e Gerlon pudessem acreditar que o ancião que agora se levantava tivesse respirado um pouco desse gás de vez em quando.

-Você faria melhor em escapar daqui. Você estaria nessa gaiola, se eu não tivesse chegado aqui primeiro.

Gerlon se apoiou na parede e ficou ereto, elevando-se sobre o frágil ancião dentro da gaiola.

-Nós não teríamos sido presos nessa gaiola.
Não? Então talvez vocês devam continuar em frente sem pensar. Deve haver mais armadilhas para pegar os impulsivos.

O cabelo do homem estava chamuscado, e sua roupa era tão negra quanto fuligem dos cadáveres cremados. Ele apontou para as chamas no poço abaixo deles.

-Vocês estarão de volta em breve mesmo, de qualquer maneira.

Gerlon cerrou os olhos.

-Você estudou esta armadilha. Fale-me sobre ela.

Gerlon olhou para o fogo abaixo e para os estranhos tubos em espiral que desapareciam nas paredes do poço. Eles realizavam algum tipo de trabalho, mas ele não sabia qual, e a falta desse conhecimento poderia ser mortal.

-Desde que cheguei aqui, há muito tempo, eu tive tempo para estudar e pensar. O calor ferve a água, e o Arquiteto Cadmio usa o vapor para ativar os motores de grande potência, como aqueles Mynghast construiu em Alexandria.

-Uma eolípila? Que dispositivo ela ativa? – Perguntou Gerlon.

- A Anticítera, que controla todo o templo de Rahma Haruna.

-Eu já ouvi falar sobre o dispositivo de vapor, mas não dessa Anticítera. Se o fogo morrer, ela pararia de funcionar?

-Deve haver muitas fogueiras como essa – disse aquele humano carbonizado, mas Gerlon sabia que ele mentia – cessar a geração de vapor aqui não significaria nada, uma vez que você atingisse as entranhas do templo.

-E como chegamos as entranhas?

-Por ali, se você for corajoso o suficiente.
O homem apontou para uma enorme porta trancada e gravada com o selo oficial de Yurifon, Demiurgo dos céus. Gerlon achou que o homem disse a verdade dessa vez, mas tinha que haver mais do que isso.

- O que é tudo isso? – Perguntou Sirius.

-Tudo o que? – Indagou Gerlon enquanto maquinava algum plano.

-Ora! Isso! Mynghast? Alexandria? Eolípila? O que é Anticítera?

Flora se aproximou de Sirius.

-Se me lembro bem, Mynghast de Alexandria foi um sábio e engenheiro, o primeiro a provar o efeito da pressão do ar sobre os corpos. De Alexandria, pois ele era de lá. Ele inventou a eolípila, o primeiro motor a vapor.

-E Anticítera é um artefato de um mundo antigo que acredita-se ter a função de navegação e podia prever ciclos astronômicos – completou Zafira.

Sirius coçou a cabeça, confuso.

-É muita informação. Como assim mundo antigo?

Acima deles, o velho resmungou.

-Agora que eu ajudei vocês, me libertem desta jaula.

Depois de uma breve deliberação, Gerlon sabia o que tinha que ser feito. Ele começou a balançar a jaula em arcos cada vez maiores para que pudessem chegar à beira do poço.

-Graças às deusas! Serei eternamente grato a vocês! Que as deusas abençoe a Rainha Zafira para todo o sempre!

-Esteja satisfeito em saber que o seu sacrifício serve ao propósito das deusas – Disse Gerlon.

Os pés de Gerlon encontraram um ponto de apoio ao lado do poço, e ele estava em pé, firme, ao lado da alavanca de controle da posição da gaiola. Ele empurrou o braço longo de madeira sobre o dispositivo de modo que a gaiola ficasse dependurada sobre o meio do poço de fogo.

-Não, você não pode fazer isso. Tudo o que eu quero é viver!

-As deusas exigem um sacrifício – disse Gerlon friamente.

-Gerlon, não! – Gritou Zafira atrás dele. Ela se incomodou que ninguém estava fazendo nada para impedir de que o pirata matasse alguém que suplicasse por sua vida.

Pelo que ele pôde discernir, apenas esse tributo às deusas abriria o caminho para a próxima parte do templo.

-Não, por favor, não! POR FAVOR NÃO! – Suplicou o homem.

Gerlon puxou a alavanca. Abaixo, bicos de gás acenderam e enviaram ondas de calor ondulantes. O homem gritava enquanto Gerlon baixava a gaiola para ser consumida pelo fogo.

-Oh, deusas de Evânia, acolham esta pobre alma embaixo de suas asas e blá blá blá – debochou Gerlon – nos proteja enquanto seguimos em frente.

Ele ignorou os gritos de agonia vindos do poço e se dirigiu para a entrada que conduzia para longe desse matadouro. O tesouro de Gaiseric estava quase em suas mãos.

-Você está ficando louco?! Porque você o matou? – Zafira avançou para cima de Gerlon.

-Não se preocupe com ele. Pelo visto você foi a única que não percebeu não é? – Indagou Gerlon.

-Percebi o'que?!

-Ele não era real. Era apenas um espírito sendo manipulado por Sedna para se libertar. Ela vem nos testando desde que entramos em Rahma Haruna. Se não fosse por nós, você já estaria reprovada e morta e o mundo destruído.

Zafira piscou seus olhos fortemente. Ela não ouvia mais os gritos agonizantes daquele homem. Gerlon continuou.

-Até Sirius e Mikka perceberam que ele não era real. Em momento algum falamos nossos nomes, e ele disse o seu. Sedna sabe quem você é e sabe que você está aqui. Ela está tentando lhe corromper a todo custo.

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