Dia 1


— Os deuses não têm piedade de nós, garota. Eles são egoístas e tomam o que é nosso.

Olhei para a velha deitada na cama. O tubo perfurando seu braço que estava acoplado a uma bolsa de soro, os olhos cansados e os fios brancos descendo pelos ombros como um rio de prata.

Tudo que eu queria nesse momento era não estar aqui.

— Tipo Poseidon e Thor? — franzi o cenho, sem saber o que dizer, ao passo que ela me encarava fixamente com seus olhos azuis, quase leitosos pela catarata — Se sim, espero que seja o Thor do Chris Hemsworth.

Sabe, era por isso que ninguém queria ser o enfermeiro a enfrentar Theresa James. Ela vivia na casa de repouso há mais de seis meses. Veio para cá logo depois de ter um derrame. A família a abandonou aqui, porque não conseguiam achar um enfermeiro que cuidasse dela o dia todo. Para mim, pareceu só uma desculpa para jogá-la em qualquer canto.

Theresa passava o dia dormindo ou falando sozinha sobre coisas ocultas, deuses e magia. E ainda encontrava um tempo para aterrorizar a bunda de todos os funcionários da casa de repouso.

Essa tarde, Danny, Helena e eu resolvemos tirar no palitinho quem iria trocar o urinol, as roupas de cama e verificar os tubos de Theresa. E, de novo, o imbecil do Danny roubou.

Admito que tinha um pouco pena de Theresa. Ninguém queria ser esquecido depois da velhice, justamente pelas pessoas que você amou e criou ao longo de toda sua vida. Eu entendia a dor de ser esquecida, ainda que em circunstâncias diferentes.

Claro, isso não me fazia querer atender Theresa. Eu ainda morria de medo dela.

— Não seja tola, menina! — ela exclamou — Esses personagens não passam disso: personagens. Todos eles foram inspirados nos verdadeiros deuses. Os verdadeiros são imortais e comem, trabalham, convivem com a gente sem sabermos. Eles nascem dos piores sentimentos humanos, da tristeza, da vingança, da fúria... E são poderosos. Como são poderosos! Eles controlam esse universo como o titereiro controla a marionete, e nós somos os brinquedos favoritos deles.

Terminei de arrumar os lençóis sobre o corpo franzino da velha. Esperei que ela acabasse seu discurso, tentando manter a expressão neutra e o pensamento focado na soneca que tiraria no sofá da sala de descanso daqui a vinte minutos.

— Eles nos assombram, eles querem o que é nosso. Se eles não conseguem, eles arrebatam... — Theresa repetiu, juntando as mãos — O pior que pode acontecer com qualquer pessoa é um deus se apaixonar por você — Theresa empurrou o corpo para frente e sussurrou, me encarando no fundo dos olhos. Um arrepio desceu pela minha espinha.

É só uma senhora de oitenta anos, Rosalie, falando sobre deuses e coisas imaginárias.

— Certo — pigarreei.

— Cuidado — Theresa murmurou, olhando para os lados.

Em um movimento rápido, a velha agarrou meu braço com seus dedos ossudos, puxando-me para perto. Eu me sobressaltei. O puxão de Theresa era forte demais para sua idade e eu tive o instinto de gritar, de empurrar seu corpo contra a cama e chamar pelos seguranças do lado de fora, mas imaginei como contaria sobre essa situação para Danny e Helena.

Eles começariam a rir que nem idiotas, porque eu não sabia lidar com uma velha praticamente morrendo.

— Você está sendo perseguida por um deus. Eu posso sentir. Você precisa se afastar antes que ele a arrebate também.

Essa situação era o tipo de coisa que acontecia apenas com Rosalie Triggs.

O seu professor erra seu nome e como ela não tem coragem de corrigir, fica sem nota no final do semestre, o cara que ela gosta invade o banheiro químico quando ela está lá dentro, a velha louca do hospital resolve lhe assediar... Parecia que algum deus de Theresa me odiava, isso sim.

Ela soltou meu pulso e se recompôs.

— Onde está meu lanche da noite, menina? — disse como se não tivesse acabado de sentenciar a minha morte.

Apertei o braço, a carne ainda latejava e, se meus olhos não estivessem focados na idosa à minha frente, eu veria a marca vermelha dos seus dedos no tecido branco da minha pele.

— V-vou providenciar — murmurei tão baixo que duvidei que ela tivesse escutado. Também não fiquei ali para esperar uma confirmação, dei o fora do quarto no mesmo instante.

Nunca mais.

Nunca mais eu veria aquela velha maluca, nem que eu tivesse que enfiar cada palito colorido na boca grande e imbecil de Danny. Eu nem era paga o suficiente para esse trabalho.

Um arrepio desceu pelo meu corpo só de pensar mais uma vez nos olhos leitosos de Theresa. Avisei a outro funcionário para levar sua comida e corri pelos corredores brancos da casa de repouso.

Não era nada demais, pensava comigo mesmo.

Minha tia, uma vez, me disse que alguns idosos eram como bebês recém-nascidos em um mundo novo e desconhecido, eles precisavam ser auxiliados e, às vezes, eles falavam palavras desconexas ou pensavam de forma diferente.

Theresa não podia me assustar. Passei por muita coisa nesse lugar. Eu já havia sido pedida em casamento por um coveiro de oitenta e nove anos que me mandou rosas de túmulo no Dia dos Namorados. Theresa só representava um medo para o idiota que desse ouvidos às baboseiras que ela falava.

Entrei na sala de descanso e me joguei na cadeira.

Ainda faltava uma hora para meu turno acabar e não tinha ninguém por perto. Helena deve estar ajeitando a sessão de cinema de hoje no salão principal (Theresa se recusava a participar) e o babaca de Danny sumiu em algum buraco do prédio. Provavelmente matando as horas enquanto eu era assombrada por velhinhas.

Eu me sentei na cadeira e apoiei a cabeça na mão que não estava dolorida, senti meu corpo cansado se acomodar no estofado. Lentamente, meus olhos se fecharam.


Acordei assustada e suando.

Olhei confusa para a sala branca antes de lembrar onde estava. Franzi o cenho. Uma ideia estava na minha cabeça, uma memória sem detalhes. Era como os primeiros segundos da manhã quando você lembra de um sonho, porém a imagem dele está se esvaindo do seu cérebro pouco a pouco e, no minuto seguinte, você não sabe mais o que sonhou.

Ergui o rosto. Percebi o que havia me assustado — alguém tocava Waterparks no volume máximo.

— Sério, seu idiota? — reclamei para Danny, sentado do outro lado da mesa, comendo uma salada verde e parecendo feliz. Ele era a única pessoa em sã consciência que comia salada apenas pelo prazer.

— Você está dormindo no seu turno quando sabe que é proibido — ele rebateu.

Soltei o ar pelo nariz.

Danny era uma coisinha irritante de um metro e setenta, corpo esguio, cabelos pretos como carvão e uma pele tão pálida que era possível ver a linha esverdeada do seu vaso sanguíneo próximo ao olho direito.

Ele começou a trabalhar recentemente na casa de repouso, há cinco ou quatro meses, talvez mais... Eu não sabia dizer. O fato é que ele testa minha paciência todos os dias desde que chegou aqui.

— ...Apesar de compreender. Você está destruída, parece que um caminhão de lixo te atropelou e ainda deu ré no seu corpo semiconsciente apenas para garantir que você estava morta, mas de alguma forma, você sobreviveu — Danny disse, enfiando um pedaço de tomate na boca.

Eu chequei meu bafo com a mão e fiz uma careta para ele.

— Vai pro inferno, Danny.

— Não posso. Sou uma boa pessoa e tenho um rosto bonitinho demais para estar no inferno — ele deu de ombros.

Não me dei o trabalho de responder. Puxei minha bolsa na mesa ao lado da poltrona e peguei o celular. Era meia noite e dez, meu turno acabou há meia hora.

Havia também uma notificação com uma mensagem de Nathan.

Escutei o barulho de algo acertando o chão e a música parou.

— Ah, merda — Danny se levantou para pegar o celular que caiu.

— Veja só, os deuses realmente estão do meu lado — murmurei para mim mesmo, me levantando.

Tinha que pegar o ônibus agora ou não chegaria a tempo de ver Nathan no palco.

— Eu vou explodir! — Helena entrou na sala falando naquele seu tom maternal de sempre.

Não achava que era humanamente possível para Helena elevar o tom de voz. Ela era a enfermeira mais simpática do hospital. Todos os idosos gostavam dela, inclusive quando me viam entrar no quarto, logo perguntavam "O que houve com a doce Helena?"

Um velho na ala 5 até mesmo quis transferir a herança para seu nome (era apenas um relógio de corda antigo, mas o que vale é a intenção).

— Acho que a ala 2 está se unindo contra a gente. Eu providenciei essas séries europeias que se passam no século 18 e, agora, eles estão dizendo que não aguentam mais ver um rei ou rainha. Eles querem e, cito a senhorita Harold, "violência e muito sangue" — Helena disse rapidamente, se sentando no sofá em que eu estava antes.

— Foi assim que a Revolução Francesa começou — Danny disse e ele mesmo riu. Apenas ele ria das próprias piadas.

— Rose, querida, ainda está aqui? — Helena finalmente percebeu minha presença.

— Perdi a noção do tempo, mas já estou indo.

— Antes de ir, você deveria passar no quarto de Theresa. Ela está enchendo o saco de todo mundo perguntando sobre você.

Os idosos queriam dar heranças para Helena e pesadelos para mim.

— Desculpe, não posso. Amanhã, eu passo lá, ok? Estou indo — falei apressada já passando pela porta.

— Tchau, Rose.

— Au revoir, Margarida — Danny disse — Seu nome é Rose, mas eu troquei por outra flor — ele explicou com um sorriso nos lábios.

Revirei os olhos e bati a porta.

Quando cheguei ao ponto perto do hospital, meu ônibus passou reto por mim. Soltei um grunhido alto. Claro, não bastava o dia estressante que eu estava tendo.

Olhei para o relógio.

Eu podia andar até o bar onde me encontraria com Nathan. Era uma caminhada de trinta minutos e seria exaustivo, considerando que tive que cobrir dois turnos hoje. Porém, pelo lado bom, lá teria bastante álcool e Nathan me prometeu uma carona depois do seu show.

Suspirei e comecei a andar.

Quando cheguei no bar, Nathan estava no palco, dedilhando seu violão e cantando. Eu sorri e me acomodei em uma mesa próxima.

Somos eu e você contra o mundo — ele cantou, sua voz suave espalhando pelo bar como névoa na madrugada fria.

Aproveitei para admirá-lo de longe, enquanto ele não me via de cima do palco.

A música durou uns dois minutos, ele cantou um cover do The Smiths em seguida e finalizou a apresentação.

Nathan agradeceu e desceu do palco com o violão nas mãos. Uma garçonete foi na sua direção e disse alguma coisa que não pude ouvir bem. Ele abriu um dos seus sorrisos enormes e brilhantes. Percebi que não só a garçonete, mas as outras pessoas também o encaravam, encantados pela sua beleza e pelo seu jeito confiante de andar.

— Você é minha garota predileta, Jenna — Nathan disse ao pegar o copo de cerveja que ela lhe ofereceu.

Desviei o olhar e pedi para o garçom uma dose de uísque. Era sábado, eu merecia, depois de aturar um dia cheio de Theresa, Danny e idosos me dizendo para ser mais simpática.

Nathan ergueu a cabeça e nossos olhares se encontraram. Ele abriu o mesmo sorriso, pediu licença para a garçonete e veio na minha direção.

— Veja se não é minha garota predileta.

— Você acabou de dizer a mesma coisa para Jenna ali — falei, cruzando os braços. Mesmo assim, não pude evitar o frio que percorreu meu estômago ao escutar aquelas palavras.

— Você não deveria ter ouvido isso — Nathan brincou daquele jeito cafajeste e se sentou na minha frente — Obrigado por ter vindo.

— Eu nunca perco suas apresentações — sorri de lado.

Desde que Nathan começou a tocar em bares, eu sempre estive lá para lhe encorajar. Mesmo antes, quando ele ainda não tinha tomado coragem para fazer shows ao vivo, quando ele era apenas o garoto com o violão na faculdade e não me conhecia, eu estive lá. Apoiando e invisível ao seu olhar.

— Como foi o trabalho? Você está...

— Destruída, parece que um caminhão de lixo me atropelou e ainda deu ré no meu corpo semiconsciente apenas para garantir que eu estava morta, mas de alguma forma, eu sobrevivi? — completei, agradecendo quando o garçom colocou minha bebida na mesa.

— Eu não seria tão específico — Nathan semicerrou seus olhos castanhos da cor do uísque no meu copo. Eu os observei, hipnotizada.

— Muito engraçado.

— Você só precisa se divertir um pouco mais, Rose, é bem simples — ele bebeu metade da sua cerveja em um gole — Sabe o que eu acho?

— Lá vamos nós...

— Você deveria arrumar um cara — falou. Ele sempre dizia isso. Porque, para Nathan, música, uma garrafa de cerveja e uma mulher ao lado era o suficiente para uma pessoa ser feliz — Você não está com ninguém desde que David te deixou há dois anos... E é muito injusto você ser a pessoa prejudicada no final.

Sorri fraco.

— Você é inteligente, engraçada e linda. Pode conseguir qualquer cara.

Agradeci pela pouca luz no bar, porque tinha quase certeza que estava vermelha.

Sim, eu posso conseguir qualquer cara, Nathan, exceto o cara que eu realmente quero, respondi mentalmente.

— Nem todos nós nascemos para ser cafajestes como você — provoquei e ele riu — Três dias e Carol foi substituída por Jenna.

— Não ainda. Mas esse é o plano — Nathan abriu aquele sorriso provocador — A vida é curta demais para me comprometer.

— Óbvio — murmurei, brincando com a marca que o copo deixou no tampo de madeira — Não esqueça que, hoje à tarde, iremos ao orfanato Pôr do Sol pintar as crianças.

— Eu tinha esquecido, mas acabei de lembrar — ele se apoiou nos dois pés de trás da cadeira.

— Você prometeu!

Todos os sábados, eu fazia trabalho voluntário no orfanato da região. Não era meu hobby predileto, na verdade, eu nem gostava tanto assim de crianças, mas sempre senti que tinha um compromisso com o orfanato.

E eu não gostava de estar em dívida com ninguém. No final, as crianças sempre me subornavam com bolo para pintá-las mais de uma vez. Era divertido.

Todo fim de semana, eu convidava Nathan para me acompanhar, porque queria que ele conhecesse o orfanato, porém sempre surgia algum compromisso que o impedia de ir. Dessa vez, eu o fiz prometer e conhecendo ele como conhecia, ele nunca quebrava promessas.

— Eu irei. Você sabe que adoro crianças! — A cadeira fez um barulho quando ele voltou a se apoiar nas quatro pernas.

— Diga o nome de três crianças que você conhece.

Nathan passou a mão pelos cabelos castanhos escuros. Eles estavam meio molhados pelo suor, ainda sim, estavam lindos. Seus fios formavam cachos perfeitos que iam para todos lados e nem pareciam reais.

— Macauley Culkin?

— Macauley Culkin não é mais criança — rebati.

— Eu estarei lá! Te prometi, Rosie, lembra? Somos eu e você contra o mundo — ele se aproximou e senti o cheiro do seu perfume masculino.

— Você está citando sua própria música?

— Você me pegou, é inteligente demais para mim — Nathan deu um suspiro falso. Eu ri e chutei seu pé embaixo da mesa.

— Ei, Nate. Estou saindo agora e meu apartamento está vazio — A garçonete Jenna apareceu com um sorriso no rosto.

Nathan a encarou, não seus olhos, mas seus peitos apertados em uma blusa de alças. Ela não pareceu se importar nem um pouco, inclusive se apoiou na cadeira vazia, nos dando uma visão completa.

— Hã... bem, eu não posso — ele coçou a nuca — Prometi levar Rose para casa.

— Quem? — ela bateu os cílios enormes, então me olhou e enrugou a testa como todos faziam quando percebiam que eu não era uma ilusão do cérebro, uma tentativa da retina de preencher espaço, e sim, uma pessoa real — Oh.

— Ah, não, não. Somos amigos. Praticamente irmãos — Nathan explicou antes que ela perguntasse.

Apertei meus dedos contra a palma da mão.

— Rose, você não se importaria se...? — Nathan apontou com o queixo para Jenna — Eu sei que te prometi uma carona.

— Não, vá em frente. A estação fica aqui do lado, posso pegar o metrô — disse, balançando a mão com desprezo — Eu não me importo.

Mas eu me importava.

Muito.

E queria que ele pudesse ler isso nos meus olhos. O problema é que ele nunca parecia sacar.

— Você é minha garota predileta e falo sério agora — Nathan abriu um sorriso e, como idiota, eu o perdoei — Amanhã te vejo no orfanato.

Observei ele se levantar e pegar a mão de Jenna.

Juntos, eles formavam uma imagem bonita. Ele, alto e forte com seus cabelos cacheados e olhos amarelados hipnotizantes. Ela, cílios enormes, pele escura, e corpo tão curvilíneo quanto o violão de Nathan.

Quando fui ao banheiro e me olhei no espelho, vi os lábios finos demais, os olhos escuros grandes demais e as bolsas roxas embaixo deles. Passei a mão pela minha franja e o resto do cabelo, a ponta dos meus dedos desfazia os nós conforme descia pelas madeixas que batiam nos ombros.

Meu cabelo não era nem próximo do volume perfeito de Jenna. Um dia, ele foi castanho, mas, agora, era uma cor pálida de madeira estragada. Meu corpo não se comparava ao dela, eu tinha peito e bunda de menos e gorduras na barriga demais.

Por que alguém não ficaria com Jenna?

Suspirei. Essa não era eu. Eu podia ser uma garota bonita quando queria. Só não hoje. Hoje, eu queria ter sido a garota que Nathan levava para casa, que ele dizia ser a garota predileta dele e com convicção.

Eu sempre amei Nathan Church.

Desde a primeira vez que o vi na faculdade.

Era o primeiro dia de aula e ele estava deitado na grama do campus, os braços atrás da cabeça, o sorriso no rosto e os olhos claros como mel sob o sol brilhante daquela tarde. Todas as garotas olhavam para ele e suspiravam. E, mesmo que eu quisesse ser diferente delas, não podia negar o efeito que Nathan surtia em mim.

Nathan estudava Música e eu, Enfermagem. Nós não tínhamos aulas juntos. Mas a faculdade obrigava todos os alunos a fazerem dois semestres de algum idioma a escolha, eu optei pelo Espanhol, porque parecia o mais simples da grade. Quando entrei na sala de aula, Nathan estava lá, sorrindo para uma garota asiática que estava tão corada quanto a sua blusa vermelha.

Creio que isso distraiu bastante Nathan. Ele ia mal nas aulas, estava prestes a reprovar até que, um dia, me parou no corredor e pediu ajuda para a prova de Espanhol. Eu estranhei. Como não poderia? Não era o tipo de garota bonita que ele saía e ia tão mal quanto ele nas aulas de Espanhol.

Mas o cérebro humano age de forma engraçada. Mesmo sabendo da impossibilidade daquela situação, ele sempre imagina "e se?".

Bom, esse "e se?" se estendeu por semanas, meses e, seis anos depois, eu estava me olhando no espelho de um bar sujo, me comparando com uma qualquer.

De um jeito ou de outro, Nathan foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Antes dele, eu era uma garota comum com problemas familiares, perdida na vida adulta e, então, eu tinha uma firmeza. Uma rocha que me prendia ao chão. Algo especial.

Suspirei, peguei a bolsa e fui embora antes que o metrô fechasse e aí eu estaria perdida de fato.

Cheguei no apartamento apertado no centro da cidade em alguns minutos. Já eram três e quatro do sábado, dia sete.

Alimentei meu cachorro, Chandler. Comi o iogurte velho da geladeira. Troquei o uniforme da casa de repouso e fui me deitar, sem antes parar alguns segundos para encarar a foto minha e de Nathan num porta-retrato na cabeceira.

Balancei a cabeça e fui dormir. Tinha que acordar daqui a oito horas para ir ao orfanato e depois aproveitar o resto da folga que eu tinha vendo Friends e me arrependendo das minhas escolhas de vida. Eu chamava isso de um sábado normal.

Antes de fechar os olhos, senti uma dor no pulso e me lembrei do puxão de Theresa horas antes. Esfreguei a mancha vermelha com os dedos. Tenho que admitir: a velha maluca tinha força.

Adormeci e sonhei de novo, mas não consigo lembrar o quê.


Por alguns minutos, fiquei parada em frente ao prédio feio, pintado de azul para simular um céu com um sol brilhante e amarelo nascendo no meio. As paredes descascavam por quase toda extensão do desenho. Era a mesma pintura de 17 anos atrás, sem nenhuma mudança sequer.

O prédio pertencia ao governo, mas sobrevivia mais com doações da população próxima do que com o dinheiro mandado pela capital.

De qualquer forma, as crianças se vestiam bem, se alimentavam tão bem quanto Danny e, pelos gritos que podia se ouvir a uma quadra de distância, também estavam felizes, apesar da espera de algumas por um pai ou uma mãe.

Respirei fundo. O primeiro sábado do mês era especial, eles faziam uma festa enorme, contratavam brinquedos e chamavam voluntários para cozinhar, se vestir de algum personagem ou fazer pinturas como eu. A maioria desses voluntários eram adultos que, um dia, moraram no orfanato.

Olhei para o celular na minha mão. Havia mandado uma mensagem há uma hora para Nathan, perguntando onde diabos ele estava. Até agora, não tive nenhuma resposta.

Estava quase desistindo de esperá-lo no sol quente até que meu celular vibrou na minha mão.


Nate: eu esqueci completamente das crianças!!!

eu e jenna acabamos parando em uma festa 

ela disse que o sonho dela era se casar de vermelho com um cantor e eu soube que era minha deixa

n sei explicar como mas acabei com ellen na minha casa

estou com uma enxaqueca fodida e ela fez panquecas, seria rude ir agr

posso remarcar???? :(


Eu respirei fundo.

Por que estava surpresa? Nathan nunca quebrava promessas, exceto se essas promessas fossem feitas para mim.

Disse para ele que estava tudo certo. Recomendei fazer uma compressa na cabeça e tomar algumas pílulas.

Uma hora se passou lentamente e eu estava implorando pela minha cama. Já havia pintado três dragões, duas borboletas e um garoto estranho pediu para desenhar uma vaca na sua bochecha, porque ele amava vacas.

Estava organizando as tintas numa mesinha de madeira que a diretora havia me arrumado. As tintas eram minhas, mas eu só usava nos eventos do orfanato.

— Tia Rose?

Eu me virei. Era uma garotinha negra de cabelos cacheados. Ela se chamava Emma e costumava trazer bolo pra mim sem intenção de me subornar.

— Oi, Emma, o que você quer que eu pinte? — forcei um sorriso, erguendo o pincel na direção do seu rosto.

— Quero que você faça estrelas no meu rosto — disse tão autoritária quanto uma garota de oito anos conseguia ser — Quero parecer uma deusa!

— Todo mundo está aficionado por deuses esses dias — murmurei, pegando uma tinta amarela e começando a pintar a pele escura de Emma.

— Você parece triste, tia — ela disse, fechando os olhos.

— Apenas preocupações adultas — falei baixo — E um garoto — admiti, dando de ombros.

Ah, Deus, não acredito que estava desabafando com uma garota de oito anos. Justo quando eu achava que não podia atingir mais o fundo do poço.

— Garotos são estúpidos, a inspetora Weston vive dizendo isso.

— Ela não está errada — sorri.

Terminei as estrelas no rosto de Emma e fiquei feliz com o resultado. Ela parecia ter uma constelação própria passando pelo seu nariz.

Eu virei o espelho para ela se olhar.

— Queria ser bonita como você, tia Rose — Emma disse, espremendo o nariz e as estrelas amarelas — Se eu fosse como você, talvez alguém já teria me levado pra casa.

Engoli em seco.

Apertei o espelho na minha mão. Eu sabia melhor do que ninguém a sensação de não querer viver no próprio corpo, de desejar ser um outro alguém. Mas Emma era nova demais para isso.

— Não somos tão diferentes, Emma — falei, a voz saindo mais fraca que o normal. Apesar da música alta e as crianças correndo e gritando ao nosso redor, ela entendeu e me olhou com curiosidade — Também morei aqui. Por cinco anos, vi meus amigos irem embora com suas famílias e orava todas as noites para ser a próxima. Cheguei até mesmo a desistir dessa ideia. Achava que ninguém jamais gostaria de mim.

— Mas isso não aconteceu — Emma completou com uma voz esperançosa.

— Não — sorri — Um dia, uma moça bonita e um homem alto que não podiam ter filhos apareceram e me levaram pra casa.

É claro que essa moça e esse homem conseguiram ter seu primeiro filho alguns meses depois e me jogaram de escanteio como um problema em que eles se meteram e perceberam tarde demais que foi um erro.

Emma não precisava saber disso. Talvez ela tivesse a sorte que não tive.

Passei mais outra hora pintando as crianças, comi mais bolo do que deveria e fui direto pra casa quando a festa terminou.

Chandler me recebeu aos pulos. Eu dei banho nele, o alimentei e, então, preparei um jantar com as sobras da geladeira que incluíam um tomate, macarrão que minha tia trouxe semana passada e um resto de mostarda.

Nathan me mandou mensagem perguntando como tinha sido. Respondi apenas com um "OK". Tive o ímpeto de chamá-lo para vir aqui, podíamos tomar o champanhe que comprei há três meses para nós dois. Eu sempre dizia que o chamaria para tomar esse champanhe, mas, no final, nunca o chamava.

Então, o resto da minha folga se resumiu a ver os mesmos episódios de Friends com a companhia de Chandler.

Como sempre.

Algumas vezes, pensava que isso não podia ser tudo o que há para mim por aí. Eu queria mais. Queria viver uma vida completa. Pelo menos uma vez, queria inverter os papéis e ser a pessoa que os outros olhavam e pensavam: "Queria ser como ela".

Fui dormir às 21h30. Amanhã, teria que cobrir o turno de Helena e o meu, precisava estar descansada para lidar com os velhos do Lugar Feliz.

Peguei no sono rapidamente. Sem sonhos dessa vez.

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