16
Winter's pov:
"A vida não é justa, e eu me sinto uma tola por pensar que devia ser."
É o coração da Somi.
Olho para o teto do meu quarto e outra onda de pesar me agita por dentro com intensidade. Sinto cada ponto da cicatriz arder no meu peito. Os pontos que seguram meu coração no lugar. Sinto-o batendo contra o osso do tórax. E fico deitada ali respirando, usando as técnicas que aprendi para controlar a dor e o pânico.
Quando cheguei em casa na noite anterior, subi direto para o quarto, peguei meu notebook e pesquisei o nome de Somi no Google.
O primeiro link foi o anúncio do funeral. Meus olhos começaram a ler a notícia, mas então se deteram na data. Na data da morte de Somi.
Foi o mesmo dia da minha cirurgia. Na minha cabeça, ouço, “Achamos um doador compatível. Uma jovem morreu de forma trágica em Seul, mas a família acatou o seu último desejo." Um calafrio percorre minha espinha, desce pelos braços, pelas pernas, e me deixa eletrizada, como se eu tivesse colocado o dedo numa tomada. A incisão no meu peito começa a formigar.
— Droga!
Coloco a mão no peito. Sinto a batida sob a palma da mão e uma lembrança me invande. Avanço até minha escrivaninha e vasculho alguns desenhos até encontrar aquele em que estava trabalhando há algumas semanas. Enfim esses traços fazem sentido para mim.
É como se durante todo esse tempo o órgão dentro do meu peito estivesse tentando me dizer através da arte a quem ele pertencia. Estivesse tentando me contar a sua história.
Respiro fundo, volto até a cama e começo a fazer meu ritual da manhã: verifico minha temperatura e minha pressão.
A temperatura está normal. A pressão sanguinea está…? Olho para o aparelho. Está… Pisco, olho direito, forçando a vista como se isso bastasse para mudar o que vejo. Nada se altera. A pressão está alta. Eu me lembro dos acontecimentos do dia anterior e do estresse que isso está causando. Tenho certeza de que esse é o motivo da alteração.
Eu me sinto bem, não me sinto? O medo atravessa minha mente como uma faca afiada. Lembro-me de tudo pelo que passei nos últimos dois anos.
Lembro-me de ouvir meus pais lamentando toda noite quando eu estava doente. Lembro-me da minha tia viajando para Busan sempre que possível. Com tanto medo…
Verifico meus sinais mentalmente. A respiração está normal.
Nenhuma dor.
Nenhuma sensação de letargia.
Coração acelerando? Só quando estou perto de Jimin ou quando estou em alguma situação estressante.
Lembro-me da noite anterior. Eu estava assustada, só isso.
Concluo que estou bem. Não sou médica, mas, depois de tudo pelo que passei, deveria ter pelo menos recebido um diploma de auxiliar de enfermagem.
Faço uma pausa e me sinto melhor ao lembrar que tenho uma consulta com a dra. Moon na sexta-feira.
Levanto-me para pegar meus comprimidos e tentar comer alguma coisa no café da manhã. Tenho certeza que minha tia já preparou tudo, como sempre.
— Bom dia, querida — Ela sorri quando entro na cozinha.
Minha mente está tomada por pensamentos conflitantes, mas não quero que minha tia perceba isso. Por isso eu os afasto e abro um sorriso para ela. Quero abraçá-la, mas tenho receio de que ela perceba o quanto estou emotiva.
— Tudo bem? — Yongsun pergunta. Ela não se refere apenas à minha temperatura e à pressão sanguínea, eu sei.
Queria poder contar a ela sobre o que descobri. Queria contar que estou com o coração de Somi. E, mais do que tudo, queria contar que estou frustrada com o fato de que meu destino não está em minhas mãos. Mas sei que não posso. Não posso preocupá-la com isso. Então abro a geladeira para pegar o suco, assim não tenho que olhar para ela enquanto minto.
— Sim.
— Você quer alguns crepes? Deixei um prato sobre o balcão.
— Obrigada. — Coloco o suco sobre o balcão e me sento para me servir.
— Você parece cansada. Está se sentindo bem?
— Sim. — Procuro responder com a confiança de que não tenho nada.
— Ficou acordada até tarde pintando?
Ela me conhece muito bem.
— Fiquei. — E é verdade. Eu precisava desviar meus pensamentos de Jimin e do fato de que estou com o coração da ex namorada dela.
Na noite passada, meus dedos descobriram os pedidos de desculpa que o pincel me oferecia. As cores choraram por mim. A arte me entende quando eu mesma não sou capaz. É o cobertor que me protege de todos os medos reais que existem. Me concentrei em finalizar uma das minhas telas enquanto viajava pela estrada do mais puro escapismo. Então me entreguei ao momento, esqueci tudo ao meu redor, todo o sofrimento, toda a mágoa.
Ao menos por algumas horas eu encontrei um lugar de paz.
— O que acha de irmos ao shopping comprar algumas coisas para sua viagem no final de semana? — Ela pergunta, trazendo-me de volta a realidade.
Eu tinha esquecido desse detalhe. Estou muito tentada a dizer que essa viagem talvez nem aconteça mais, porque não sei se Jimin vai querer a companhia da garota egoísta que ficou com o coração da sua ex namorada. Preciso convencê-la a esquecer essa ideia.
— Não posso, hoje. — Digo, depois busco desesperadamente uma desculpa. — Eu… prometi a Ningning que iria ajudá-la a… — Ajudá-la com quê? Droga! — Ajudá-la com as pesquisas para sua dissertação.
— Ah… — A decepção da minha tia é evidente. Se olhar para ela, vou ver esse sentimento em seus olhos e me sentir culpada.
Largo meu crepe inacabado no prato, afasto-o e dou um gole no meu suco.
— Tenho uma consulta na sexta, não é? Podemos almoçar juntas.
Os olhos dela se iluminam.
— Certo, vamos fazer isso, então. — Ela sorri. Um sorriso de verdade. Sei que é de verdade por causa da sua expressão.
Minha tia se levanta para pegar mais uma xícara de café. Então, sem querer estender essa conversa por muito mais tempo, trato de acabar o meu café da manhã, mas não tão rápido a ponto de levantar suspeitas.
Hoje entro mais tarde na galeria, o que significa que tenho um tempo livre que posso usar ao meu favor. Quase me esqueci de que devo encontrar com Jimin pelos corredores. E, por “quase”, quero dizer que eu não parei de pensar nisso um segundo sequer. Estou especialmente desanimada para o meu trabalho hoje.
[…]
Estou sentada na cama de Ningning, no quarto dela, que, aliás, é incrível. Indo contra minhas expectativas, não há nada fora do lugar. No closet, as roupas estão organizadas. Nas prateleiras, estão dispostos matérias para pintura dos mais variados tipos. Chego uns dez minutos antes de contar, num tom bem casual, sobre a minha última descoberta.
— Você está de brincadeira! — Ela exclama, num tom nada casual e que só contribui para aumentar meu nervosismo.
— Eu definitivamente queria que tudo isso fosse uma brincadeira.
Ela passa a mão nos cabelos e caminha de um lado para o outro no quarto.
— Isso vai ser muito interessante…
— Isso não tem nada de interessante. Por favor, não dê a esse assunto mais importância do que tem.
Estou sendo sincera quando digo isso, mas preciso admitir que eu mesma estou dando mais importância do que deveria.
Estou tremendo por dentro. O que Jimin vai dizer quando eu contar a verdade? Quando souber que o coração de Somi está batendo em meu peito?
A foto de Yizhuo e Aeri na mesinha de cabeceira desvia a minha atenção e, como estou precisando de uma distração, pego o porta-retrato para olhar de perto. Elas parecem felizes.
Ningning solta uma risadinha.
— Só quero ver o que Jungkook vai achar disso.
— Jungkook? — O nome escapa dos meus lábios como se eu estivesse me referindo a um objeto desconhecido. Coloco o porta-retrato de volta na mesinha de cabeceira. — Quem seria esse?
— Ele é o irmão de Somi. Uma pessoa incrível em vários aspectos, mas que, segundo Jimin, nunca aceitou muito bem o fato da irmã ser doadora.
Maravilha, como se eu precisasse de mais um problema.
Sinto um aperto no peito quando olho nos olhos de Ningning. Seu sorriso desaparece. Embora eu queira confortá-la dizendo que vai ficar tudo bem, não posso. Eu mesma estou completamente sem reação diante da noção de que minha vida está prestes a sofrer outra reviravolta a qualquer momento.
Fico ali durante vários segundos buscando uma saída. Não encontro nenhuma. Estou num beco sem saída. Volto a olhar para Ningning, com um suspiro.
— O que vamos fazer? — Pergunto, como se também fosse problema dela. Não que ela se importe em dividir o problema comigo. Descobri que ela é esse tipo de amiga.
— Você vai precisar conversar com Jimin — diz Ningning.
Me jogo em sua cama, me sentindo sem argumentos. Parte de mim quer desistir de tudo isso, mas meu instinto diz que, se eu fizer isso, nunca mais terei coragem de encarar Jimin. O segredo vai ficar guardado dentro de mim. E lentamente vai me envenenar.
— Porque você não me contou que Somi era doadora de órgãos quando te falei do transplante?
— Não te contei porque… Nem sei, acho que fiquei tão imersa no que me falava que esqueci desse detalhe. Além disso não imaginei que uma coincidência dessa pudesse acontecer, sabe? — O sorriso malicioso de Ningning é tão genuíno que não consigo ficar brava.
— É, acho que você tem razão — respondo.
— Você vai encontrar com a Karina hoje, né?
— Estou saindo para a galeria em alguns minutos. Então, você imaginar que vamos nos encontrar.
— Certo. Então me deixe fazer só uma perguntinha. O que está acontecendo de fato entre você e Jimin? E não me diga simplesmente que está a fim dela, porque não é só isso. Vejo em seus olhos cada vez que fala o nome dela.
Eu me sento na cama e inspiro fundo, tentando decidir quanto eu conto a ela e quanto mantenho em segredo.
[…]
Por volta das 9hrs, Jimin está parada em frente ao seu escritório. Ou, mais precisamente, está me esperando. Fui surpreendida logo que saí da casa de Ningning com uma mensagem dela dizendo que queria me ver quando eu chegasse na galeria. Apesar do desfecho desagradável da tarde passada, eu não tinha como recusar algo assim. Se ela percebe alguma coisa na minha expressão, não comenta.
Talvez ela devesse. Preciso tomar um choque de realidade.
Quando me aproximo, tenho o vislumbre do seu sorriso que tanto adoro. Meu… o coração de Somi bate na minha caixa torácica como se eu estivesse correndo uma maratona.
Minha vontade de chorar está voltando, e quando sinto suas mãos nas minhas costas, me jogo nos braços dela, unindo nossos corpos. Ela segura delicadamente meu rosto, estudando-me.
— Tudo bem? — Ela pergunta.
— Sim — digo, porque não consigo pensar em outra coisa.
Não consigo pensar em nada. E quando encontro seu olhar, percebo que há tantas emoções faiscando em seus olhos que não consigo distingui-las. Não sei se, de algum modo, ela já sabe sobre o coração de Somi ou se está confusa com meu silêncio repentino.
Há tantas coisas que preciso lhe dizer, mas juro que não sei por onde começar. Sim, eu ensaiei, praticamente memorizei palavra por palavra, mas agora me deu um branco.
— Você disse que queria me ver, precisa de alguma coisa? — Pergunto, desviando o olhar.
Ela segura meu rosto com a ponta dos dedos, obrigando-me a encará-la.
— Não acha normal que eu queira te ver simplesmente por quero estar em sua companhia?
Respiro fundo, surpresa.
— Bom, sim…
Jimin inclina a cabeça, seus olhos estão estreitos.
— Aconteceu alguma coisa?
Ela parece preocupada com a possibilidade de que eu esteja escondendo algo importante.
— Não. — Uma hora recupero o controle da minha boca. A explicação paira nos meus lábios. — Eu só… estou um pouco ansiosa com o novo projeto de restauração em que vamos começar a trabalhar.
Nossos olhares se encontram novamente. Seus suaves olhos castanhos ainda brilham com uma emoção que não consigo decifrar.
— Ah, claro. — Ela diz, passando a mão nos cabelos. — Nesse caso talvez seja melhor você voltar para o laboratório.
Constrangida e furiosa comigo mesma por estar agindo assim, sinto meu rosto corar.
— Acho que você tem razão — Dou meia-volta tão rápido que é quase um rodopio e disparo pelo corredor. Eu tentei. Realmente tentei. Mas não consigo fazer isso aqui. Não consigo dizer que estou viva porque a ex namorada dela morreu.
— Minjeong? — A voz dela soa atrás de mim. A opção de fingir que não ouvi paira em minha mente. Mas não posso fingir. Paro.
Antes que me vire, ela está ao meu lado. O clima de inverno me causa um arrepio. Está esfriando, mas não estou com frio. Estou entorpecida.
— Podemos almoçar juntas hoje? — Ela pergunta, enfiando as mãos nos bolsos. Parece nervosa, mas porque?
— Tudo bem. Te encontro mais tarde.
Antes que Jimin possa dizer qualquer coisa, avanço em direção ao laboratório de restauração.
É inevitável sentir como se eu estivesse criando uma barreira emocional entre nós, sendo que ela nem sabe ao certo o que está acontecendo. Estou com raiva de mim mesma. Não sei se estou simplesmente chateada com o que aconteceu ontem ou se é com o que aconteceu na minha vida os últimos dois anos inteiros.
A única coisa que sei é que recentemente só me senti feliz de verdade nos instantes que passei com ela. O fato de que posso perder tudo isso me assusta.
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