06


Winter's pov:

"Não tenha dúvidas. Apenas confie no coração existente na sua mente."

Na sexta-feira, estamos envolvidos na restauração e conservação das primeiras pinturas a óleo de Hong-do. Nossa sala é diferente de todas as outras da galeria. As mesas ficam dispostas de forma minimalista pelo cômodo, e há pelo menos duas áreas reservadas para pesquisas e análises. No laboratório ao lado, estão dispostas as telas nas quais temos que trabalhar.

No início da semana, fui relegada a tarefas secundárias, como fazer pesquisas ou auxiliar a arquivista-­chefe em seu trabalho. Hoje, no entanto, estou sentada em uma cadeira no laboratório de restauração, segurando pincéis e cobrindo cuidadosamente parte da superfície da obra‑prima de Hong-do com um verniz protetor.

O professor Park havia me garantindo que eu aplicaria as segunda e terceira camadas depois que uma aluna de pós‑doutorado houvesse completado a primeira. Ele não queria interromper o trabalho que ela havia começado antes da minha chegada, mas estava bem interessado em ver o meu potencial já que tive excelentes recomendações mesmo ainda sendo uma aluna em formação. 

Toda essa pressão deveria afetar o meu desempenho, mas não afeta. Eu adoro o cheiro das tintas, a calmaria do laboratório. Em Busan, toda vez que eu estava com a cabeça muito cheia, pegava meu material de trabalho e saia para desenhar, pintar ou simplesmente apreciar alguma criação.

Tem algo de sobrenatural na arte, algo capaz de fazer os problemas parecerem menos importantes, minha situação parecer menos dramática.

Nem sequer percebo as horas passarem e quando menos espero está na hora de fazer uma pausa. Enquanto volto do meu almoço, sou acompanhada por Jaehyun, um dos estagiários da minha equipe. 

— Fiquei sabendo que você foi designada para o trabalho de restauração hoje. — Ele comenta, abrindo um grande sorriso. — Parece que o professor Park está bem interessado em extrair o máximo de cada um dos estagiários. 

Não respondo, mas ele continua.

— Ah! Estou com as radiografias da obra na minha mesa. Quer dar uma olhada? 

— Acho melhor você entregar esse material ao professor Park. Não vai querer causar nenhum problema como o que aconteceu da última vez. 

Ele leva a mão a nuca, constrangido.

— Bom, você tem razão. Eu só…

Ele continua falando por um bom tempo, mas eu mal presto atenção porque nesse momento vejo Jimin entrando no corredor.

Ela parece não ter dormido nada na noite anterior. Está vestindo um casaco xadrez e seu cabelo castanho ainda está úmido do banho. Nossos locais de trabalho estão separados por apenas alguns centímetros, mas Jimin parece estar a quilômetros de distância.

Eu não sou próxima o suficiente para perguntar o que a está incomodando, se dormiu mal ou se quer conversar.

E depois da noite de ontem, ela deve me achar uma intrometida. Eu podia simplesmente ter pegado minhas coisas e ido embora. Não era minha intenção ter entrado em um assunto tão pessoal com ela, mas quando a vi parada ali, olhando para mim, achei que seria a oportunidade perfeita para conversar com ela. 

Yoo Jimin, uma garota que eu não sei por que desperta tanto o meu interesse. Isolada emocionalmente do mundo, mas que de vez em quando abre um sorrisinho que me passa a impressão de que no fundo não quer estar tão sozinha.

Além disso, tem a velha sensação de familiaridade, tem algo no jeito dela que me faz se sentir bem. 

Jaehyun é o primeiro a chegar na sala. Antes de entrar, ele empurra os óculos nariz acima e diz:

— O professor Park me pediu para pegar alguns documentos e impressões na sala de arquivo… — Ele franze a testa. — Mas não lembro onde ela fica.

— A última sala no fim do corredor — diz Jimin baixinho, indicando Jaehyun com a cabeça.

E então ela roça o polegar no lábio inferior. Juro que faz isso em câmera lenta, fazendo com que eu encare sua boca enquanto ela fala. 

— Alguns documentos são antigos, então tome cuidado.

— Sim! Obrigada pela informação srta. Yoo — exclama Jaehyun, saindo em disparada pelo corredor sem perceber meu coração acelerando no peito enquanto eu encaro Jimin, que se recusa a olhar para mim.

Eu quero perguntar como ela está, mas não sei como.

— Então… — ela diz, passando a mão nos cabelos e virando-se para mim. — Soube que ficou encarregada da finalização da restauração da obra de Hong-do. 

— Bem, sim. Acredito que estou fazendo um bom trabalho. Mas ainda preciso discutir algumas coisas com o professor Park.

Ela balança a cabeça. 

— Eu tenho certeza de que seu trabalho é exemplar, Minjeong — diz, cruzando os braços na frente do corpo. — Caso contrário, minha mãe não aceitaria que você trabalhasse na galeria.

— Eu sei… só não posso desperdiçar uma oportunidade como essa.

— Não te conheço a muito tempo, mas sei que não vai — ela diz com um pequeno sorriso. — Enfim, acho melhor voltarmos para o trabalho. 

Não me oponho à ideia. Sinceramente, eu estou feliz só por ela estar falando comigo.

Passo o resto do dia focada no trabalho, mas durante a tarde tenho um encontro com o meu orientador da faculdade, o sr. Hwang. Eu e ele nos conhecemos há pouco mais de uma semana, mas já posso dizer que nos damos muito bem. 

O Sr. Hwang era um cara magro, gay, 50 anos, que fuma cachimbo e usa boina. Atribui seu fascínio pela arte a um caso de amor que tivera com Leonardo da Vinci. É claro que o caso de amor tinha sido uma viagem de álcool incrível, já que Leonardo da Vinci morreu séculos anos antes de o Sr. Hwang nascer. Mas ainda assim parece uma história de amor lendária da maneira como ele conta.

Olho para o céu nublado antes de sair do prédio da faculdade, mas então paro de repente quando escuto alguém me chamar.

Viro para trás e vejo que Yizhuo está parada no corredor há poucos metros de mim. Quando meu olhar encontra o dela, começo a me preparar mentalmente para o que virá. Ela sorri e acena ao ver que a reconheci. Então pega suas coisas, se despede de alguns amigos e se aproxima. 

— Minjeong! Olha só que coincidência! — Ela diz. — O que está fazendo aqui nesse horário? 

— Tinha uma reunião com meu orientador — respondo, segurando a alça da minha mochila. Temos nos encontrado em várias ocasiões na galeria, mas ainda não sei quase nada sobre ela. 

— Está gostando da estadia em Seul? 

Dou de ombros enquanto desço as escadas. Não faz muito tempo que eu estou aqui, então tudo ainda é muito novo para mim.

Ela não se importa muito a minha resposta e me acompanha pelo campus.

— Ótimo! Então, aqui vai… Estou com tempo livre e como Giselle está ocupada hoje, vou passar em um café, e você vai comigo.

Ergo uma sobrancelha e dou uma risada.

— Não, obrigada.

Ningning faz beicinho e cruza os braços.

— Vamos. Por favor?! Eu sei que você está livre agora e vou te levar a um café maravilhoso. Além disso vai ser uma ótima oportunidade da gente se aproximar! — Ela junta as mãos e começa a implorar. — Por favor, Minjeong?!

— Ainda não entendo porque você quer tanto ser minha amiga.

— Ah, essa é fácil! Você me parece ser uma garota bem autêntica… — Ela sorri e fecha os olhos. — Estou precisando de mais pessoas assim na minha vida! E aí, estou conseguindo te convencer? 

Eu não posso deixar de sorrir.

— Isso é sério? — Pergunto, olhando para Ningning. A parte surpreendente é que ela parece estar falando muito sério. — Eu não… eu não sei bem o que deveria dizer agora. 

Ela sorri e segura meu braço.

— Vamos lá, prometo que vai ser divertido.  

[…]

De volta ao apartamento, vou direto para o meu quarto e entro debaixo do chuveiro para tentar me livrar da névoa que cobre meus pensamentos. A água escorre pelo meu corpo por vários minutos. Ao sair do banho, o espelho na minha frente parece me encarar. Apoio às mãos na pia e abaixo a cabeça, tentando entender como é possível ter a mesma aparência, mas me sentir tão diferente.

Contemplo meu reflexo no espelho e passo a mão sobre a cicatriz entre meus seios, que ainda está levemente avermelhada mesmo já tendo passado um ano. 

As vezes me pego pensando a quem esse coração pertencia, não só porque essa pessoa precisou morrer para salvar minha vida, mas porque gostaria de poder de alguma forma agradecer a família responsável. Eu sei que apenas uma pequena parcela de pessoas é a favor de um ato desses. 

Já faz um ano e a dose de esteroides é quase nada em comparação ao que tomava antes. Mas as vezes ainda tenho alguns sonhos. Lembranças embaçadas que não parecem pertencer a mim. E sempre acordo me questionando se de alguma forma elas não estão relacionadas ao doador. Minha intuição diz que sim.

Eu comento isso com alguém? Não, porque as pessoas iam me achar uma louca. 

Visto uma roupa confortável, pego meu material de desenho e saio do meu quarto. Na cozinha, me sento à mesa, olhando pela janela acima da bancada da pia. O céu está escurecendo com a aproximação das nuvens. O cheiro do ar anuncia que em breve virá uma tempestade.

Fico sentada ali por um bom tempo, o suficiente para testemunhar alguns flocos de neve cair no parapeito da janela. Tempo suficiente para me perder em pensamentos.

Talvez possamos ser amigas. Suspiro diante da minha ideia idiota. É claro que não podemos ser amigas. Ela não deixa que eu me aproxime o suficiente para isso. E mais: sua vida já é bastante complicada. Eu não posso aumentar seus problemas.

Começo a desenhar e minutos depois a mesa da cozinha está coalhada de lápis carvão, borrachas, restos de lápis apontados e papel. Dois dedos de minha mão direita estão pretos de tanto esfumaçar o papel, e eu começo a roer a ponta de um lápis enquanto examino meu mais recente esboço.

É o retrato de uma mulher com olhos expressivos e um rosto delicado. Seus longos cabelos caem sobre a testa de maneira impecável, acentuando parcialmente a beleza de sua face. Tem um nariz reto e uma boca de lábios carnudos que não sorri.

Falta alguma coisa na expressão. Eu só não sei o que é.

— Primeiro final de semana em Seul e você fica aí desenhando? — Minha tia brinca, entrando no apartamento. Ela vai até a geladeira e pega uma garrafinha de água.

— Estou — murmuro, ainda olhando para meu trabalho. 

— Você deveria sair.

Olho para Yongsun, levantando uma sobrancelha.

— Estou bem.

— Não. — Ela balança a cabeça de um lado para o outro e puxa uma cadeira para se sentar. — Você precisa se divertir um pouco. O que aconteceu com aquela sua amiga da faculdade?

Sorrio.

— Não sei bem se ela é uma amiga, mas fomos a uma cafeteira hoje pela tarde. 

Confesso que foi divertido sair com Yizhuo. Conversamos bastante e fui descobrindo muitas coisas sobre ela e a família. Seu sobrenome é Ning. Sua mãe é professora de mandarim, o pai é escritor. Seu tipo preferido de arte é a abstrata. Contei sobre meus pais e minha vida em Busan, mas não entrei em maiores detalhes. 

— Mas e outros amigos? Tipo, algum no trabalho? — Ela pergunta. 

Dou de ombros.

— Nunca fui muito boa em fazer amigos. E depois que fiquei doente eu não tinha tempo e nem disposição para isso.

— Aí está o seu problema de saúde de novo. — Ela me dá uma piscadela.

Mordo o lábio inferior.

— Desculpe. De qualquer forma, a última vez que tive uma amizade verdadeira foi há muito tempo, mas já é uma coisa do passado.

— Mas já é alguma coisa. — Minha tia baixa os olhos. — E como estão as coisas com Jimin?

Respiro fundo.

— Estão tão ruins assim? — Ela pergunta, inclinando-se sobre a mesa.

— Eu pareço tão desanimada assim? — Brinco.

— Só um pouco. Sinto muito que as coisas não tenham saído como você esperava.

— Tudo bem. Valeu a tentativa. 

Ela bate palmas uma vez e se endireita na cadeira.

— Eis o que vamos fazer: Eu vou subir, tomar um banho e depois pedir alguma coisa pra gente comer enquanto assiste um filme. — Ela diz isso com tanta animação que é impossível não rir. — Sério, Winter. Quando foi a última vez que tivemos um tempo para nós? Nem tenho certeza se ainda sou sua tia. 

— Está bem, Solar — concordo. 

Quando eu mais nova, e minha tia ainda morava em Busan, ela e eu fazíamos esse tipo de programa ao menos uma vez por semana. Depois que ela mudou por conta do trabalho, ficou impossível continuar, e logo em seguida veio minha luta pela vida. As vezes ela conseguia um tempo para ir me visitar, mas dado o momento, não conseguíamos aproveitar bem o programa.

— Você pode ir escolhendo um filme também — ela comenta enquanto se levanta e caminha em direção as escadas.

— Ah, tá. Ótimo. Então nada de filmes de artes marciais hoje, Kim! 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top