03


Karina's pov:

"Se destino realmente existe, você acha que nosso encontro foi a forma que ele encontrou de provar isso?"

O céu está mergulhando em escuridão e a brisa gélida assinala uma noite de frio mais intenso. Meus olhos se voltam para as luzes dos edifícios ganhando vida. Uma copia de Hamlet está esquecida sobre meu colo. Não sei quanto tempo passei no meu apartamento, mas isso não importa.

Depois do que aconteceu pela tarde, eu precisava espairecer e voltar para o estado de dormência no qual prefiro ficar. Ler é minha nova fuga, mas mesmo que eu tente não pensar em nada, a garota da livraria ainda passa por entre as fendas da minha mente a cada página do livro que eu viro. 

Era uma tarefa simples, livrá-la de Ningning e continuar com minha leitura. Mas foi só por os olhos nela para saber que eu não estava preparada. Aquela garota era… linda. E vê-la de alguma forma me lembrou dela. Me lembrou de tudo o que perdi e não posso mais recuperar. 

Pare, digo a mim mesma enquanto fecho meu livro com força.

Não há motivos para pensar nela. Aquela garota não passa de uma pessoa aleatória com quem por acaso eu encontrei na livraria. 

Mas aqueles olhos… Eu não consigo parar de pensar naqueles olhos castanhos.

Largo o livro sobre a mesa de centro e me levanto. Quando sinto que vou sufocar, sempre acabo no mesmo lugar, na varanda de casa, olhando para o céu enquanto minha mente é inundada de lembranças.

Quando eu estava na faculdade, passava praticamente todas as minhas tardes na galeria. Numa dessas visitas, minha mãe resolveu me contar a história da sua trajetória de vida. Somi se juntou a nós e ficamos sentadas no escritório dela o dia inteiro, absorvendo conhecimento. 

Minha mãe me repreendeu mais uma vez porque eu andava relapsa com minhas telas, dizendo que para se alcançar a maestria era necessário muita dedicação e comprometimento. Mas meu avô me ensinara que era preciso respeitar o meu tempo, ele dizia que, se não sentíamos a alma na coisa, não devíamos continuar nos forçando a fazê-la. 

Eu sempre me lembro das tardes no estúdio de arte da minha família. Lembro que Somi e eu mal conversávamos enquanto estávamos criando, que os traços e pinceladas fluiam naturalmente sobre as telas. Quando finalizávamos alguma obra, nós sempre olhávamos uma para a outra, com uma expressão de realização evidente no rosto. 

Somi sempre me abraçava e sorria. Não demorava para que esquecesse o mundo das artes e me concentrasse em beijar os seus lábios. Então não saíamos do estúdio até o anoitecer, mas fazíamos cada minuto valer a pena.  

Aquela foi uma das últimas vezes em que fomos felizes juntas.

Levo as mãos aos olhos enquanto a realidade da situação na qual me encontro faz minha cabeça doer. 

Pintar era minha grande paixão. Mas desde o incidente… bom, vamos dizer que as minhas chances de trabalhar em alguma tela no futuro são iguais às que eu tenho de voar. Uma esperança vã na qual não me agarro, porque não posso me enganar pensando que isso pode se tornar realidade algum dia. 

Quando escuto a porta da frente abrir, engulo em seco. Metade de mim torce para que seja minha mãe, e a outra metade está rezando para que não seja.

— O que faz aqui fora nesse frio? — Pergunta Aeri, parada no batente da porta. Um suspiro de alívio escapa dos meus lábios ao ver minha prima.

Uchinaga Aeri é alguns meses mais nova que eu, mas anos mais velha em termos emocionais. Esta vestindo uma de suas infinitas roupas sociais e tem os cabelos escuros soltos sobre os ombros. Ela parece bem relaxada, mesmo que tenha acabado de chegar do trabalho. 

Minha prima se aproxima e apesar de ter noção da sua presença, eu continuo em silêncio.  

O vento está gélido e afiado, e ficamos caladas, observando o céu cada vez mais pesado. 

— Soube que aceitou a proposta para voltar a trabalhar na galeria — ela diz bruscamente. 

Sobressaltada com o som da sua voz, volto minha atenção para o seu rosto. Abro a boca para argumentar sobre isso, mas acabo dando de ombros. Essa é uma das coisas que eu aprendi nesses anos de convívio com minha prima. É preciso escolher o tipo de discussão em que se vai entrar.

— Você está quieta. Pelo que te conheço, posso deduzir que aconteceu alguma coisa.

Bem. Ela percebeu rápido.

— Nada muito importante — Digo, vagamente. Não tenho vontade de explicar que passei a maior parte da tarde pensando no fato de como minha vida não tem feito muito sentido. E no fato de que não sei como consertar isso.

— Talvez possamos conversar sobre isso.

Houve uma época em que eu compartilhava tudo o que era possível com Aeri. E não é que não confie mais nela, porque confio com a minha vida. Mas ela já tem seus próprios problemas com os quais lidar. Além disso, não quero dizer a ela que o que estou sentindo é puro pânico pela perspectiva de ter que voltar a trabalhar em uma área que, por acaso, me faz recordar de tudo o que perdi.

— Obrigada, mas realmente não tem necessidade — digo, passando a mão nos cabelos.  

Ela estreita os olhos e fica me encarando.

— Por que está me olhando assim?

— Que talento você tem em querer lidar com tudo sozinha — ela diz, suspirando. — Sei que já disse isso antes, mas seus problemas são mais emocionais do que físicos. 

Ela não tem ideia do quanto está certa, e não tenho nenhuma intenção de deixar que descubra isso. Eu me tornei uma especialista em afastar as pessoas, agindo da forma mais fechada possível até levá-las ao limite. Mas com ela é diferente. Não só porque é minha prima e me conhece melhor do que qualquer outra pessoa. Mas porque vou fazer o necessário para impedi-la de perceber o quanto estou perdida por dentro.  

Inspiro o ar frio da noite para impedir que o desespero instalado na minha garganta saia na forma de um grito enraivecido. Se eu deixar que veja uma fração do que existe dentro de mim, Aeri vai ficar ainda mais preocupada. E ela não tem culpa da minha situação. Ninguém têm. Então não posso simplesmente descontar todas as minhas frustações nela. 

Abro um sorriso para ela, tentando aliviar o clima da nossa conversa.

— Como foram as coisas no hospital? — Pergunto, mudando de assunto. Diferente de mim, minha prima é formada em psicologia, então trabalha no Seul Hospital.

Se ela percebe a minha jogada, não comenta. 

— Tive algumas reuniões com a diretora geral, mas nada fora do habitual. A propósito, encontrei com Yeji. Parece que ela chegou da férias. 

Não respondo. Coloco as mãos nos bolsos do casaco, numa tentativa de aquecê-las. 

— Ela me perguntou sobre você — ela diz, colocando a mão no meu ombro. — Talvez pudessem marcar alguma coisa qualquer dia desses. Tenho certeza que assunto não vai faltar. 

— Acho melhor não… Provavelmente Yeji deve estar bem ocupada com as questões do casamento. Não vai ter tempo para jogar conversa fora comigo. 

— Bem, não foi isso que ela deu a entender quando nos encontramos. — Aeri faz uma pausa. — Veja bem, Karina, eu sei que tem essa questão toda de você se fechar para o mundo e essa fase complicada… mas precisa tentar recuperar a sua vida. 

— A última vez que eu a vi foi um pouco depois da Somi… — Minha voz falha, e respiro fundo. — Não quero vê-la de novo se isso significar ter que ouvir mais sermões sobre o fato de que desisti da minha terapia. 

— Ah. — Aeri franze o cenho. — Entendi. — Ela inclina a cabeça e dá um tapinha nas minhas costas. — Yeji não quer te ver como sua psicóloga, mas como sua amiga. De qualquer forma, você vai ter que encontrar com ela para se atualizar sobre o casamento. 

— Não vejo nenhuma necessidade disso.

— Claro que tem. Você é a madrinha. O que as pessoas vão pensar se virem que a madrinha não compareceu ao casamento?

— Yeji deveria ter escolhido outra pessoa para esse papel. 

Eu já falei isso um milhão de vezes, mas Yeji continua insistindo, sempre que nos falamos por ligação, na esperança de que eu ceda. Depois que terminamos o ensino médio, ela foi para a faculdade de psicologia, entrou para uma fraternidade e viveu os melhores anos da vida dela. Conheceu Ryujin em uma festa quando estava no segundo da faculdade, e elas estão juntas desde então. Yeji se apaixonou por ela imediatamente e agora só fala nesse casamento. 

Mas isso não é surpresa nenhuma. Os irmãos Hwang são assim em relação a tudo. Quando fazem uma coisa, é de forma grandiosa. Quando se apaixonam, é perdidamente. E agora que Yeji começou a pensar no casamento, certamente está fazendo planos grandiosos — e é exatamente por isso que eu não quero ir.

— Você sabe muito bem que eu não gosto muito de festas — argumento. 

— Eu sei, mas esse é um momento importante para ela e a noiva. Você deve lembrar que elas adiaram a cerimônia depois do que houve por respeito ao que você estava passando. 

No fundo, ela tem razão e quero atender ao pedido da minha amiga, mas não sei como vou reagir. Somi e eu éramos as madrinhas de Yeji, e, desde o incidente, ocupar esse posto sozinha tem me incomodado. 

Tenho quase certeza de que não vou me sair bem.

— Eu vou ao casamento — prometo. — E também vou tentar marcar alguma coisa com Yeji.  

— Tudo bem. Tenho certeza de que vai te fazer bem mudar um pouco os hábitos. Agora é melhor entrar, esse frio todo pode ser prejudicial à você. 

Ela já está quase na porta quando diz uma última coisa:

— Sei que pode parecer que estou forçando a barra com você, mas só quero que tente reencontrar seu caminho, sua alma. 

Não respondo, mas permito que minha mente reflita sobre o que ela disse.

[…] 

Na segunda-feira finalmente estou de volta a galeria. Depois da experiência desgastante de apresentação, vou até a sala onde ficam os pesquisadores. Cumprimento algumas pessoas com um aceno tenso antes de caminhar arrastando os pés até meu escritório.

Deixo-­me cair na cadeira e passo os olhos pelo recinto com grandes janelas. Um burburinho de conversas ainda ecoa pela sala, e as pessoas lá fora não conseguem evitar olhar para mim com expressões que vão de surpresa a incredulidade. Com o passar do tempo, eu aprendi a odiar situações assim. Eu as odeio quase tanto quanto odeio os olhares e os comentários desnecessários.

Essa situação toda está sendo sufocante, e eu não sei como impedir que ela tome conta de mim. Abaixo a cabeça entre as mãos, tentando ignorar tudo a minha volta.

Não fosse o fato de sentir dor, poderia pensar que estou tendo um pesadelo.

Meus olhos encontram com um folheto que eu deixei em cima da mesa meses antes, onde estão impressas informações sobre as ilustrações de Chiho Aoshiba que estavam em exposição para o público naquela época. 

Apesar de ter que me apresentar no laboratório de pesquisa para trabalhar, ando na direção oposta, até a sala em que costumavam ficar as ilustrações. A sala está isolada e o corredor, vazio.

O cômodo tem paredes pintadas com um azul vivo, de modo a ressaltar melhor as ilustrações feitas a pincel. Lá dentro há uma fileira de vitrines dentro das quais as obras eram mantidas a salvo da luz, da umidade e do contato humano.

Em alguns dias essa sala vai começar a ser preparada para a nova exposição na qual minha mãe vem trabalhando. A coleção de Yoo Hae Ri é impactante. Sim, ele está morando em Nova York, mas deve vir passar uma temporada em Seul. Esse fato por si só da à sua coleção um valor incalculável.

A galeria com certeza está mais do que satisfeita em exibi-­las. Minha mãe pode cobrar um preço extra para os visitantes admirarem a exposição, e usar o dinheiro para financiar alguns dos projetos de restauração da galeria, inclusive o trabalho que a equipe do professor Park está fazendo.

Estou prestes a me apresentar no laboratório de restauração quando alguém chama minha atenção. 

— Oi, você poderia me dar uma informação? — Uma voz doce e feminina diz enquanto se aproxima de mim.

Quando viro na sua direção, tudo congela. O mundo fica em silêncio, e eu estou olhando para os olhos castanhos que jurei que jamais encontraria outra vez.  

A princípio, uma estranha sensação de alívio toma conta de mim ao vê-la ali. Mas, então, assimilo os fatos. Ela não veio a galeria por um acaso qualquer do destino. Me recuso a acreditar nisso. 

— O que você está fazendo aqui? — Pergunto. Ela parece tão diferente de quando a vi na livraria.

Seu vetidinho branco combina com os sapatos. O longo casaco de inverno fecha perfeitamente o conjunto, e os longos cabelos negros não estão despojados, e sim arrumados, em uma delicada trança lateral.

— Bom… — ela sussurra. Seus lábios franzem. Vejo como ela olha para o corredor e tira alguns fios do rosto. — Tenho uma reunião marcada com a Sra. Bae, mas não sei onde fica o escritório dela.

Meus olhos se arregalam de confusão e surpresa. Principalmente surpresa. 

— Qual o seu nome? 

— Kim Minjeong. — Ela responde enquanto analisa meu rosto. Então inclina a cabeça na minha direção. — E você?

— Pode me chamar de Yoo Jimin. 

Ela não responde, porque parece igualmente surpresa. Quando ergo o olhar, vejo que está tentando organizar os pensamentos. Minjeong encara um ponto qualquer na sala e posso jurar que evita me encarar. Não há um momento em que nossos olhares se encontram. 

Abro a boca para falar, mas sou interrompida quando minha mãe entra na sala, carregando um tablet em mãos. 

— Jimin, você já… — Ela para, e vejo surpresa em seus olhos quando olha para a garota a minha frente. — Ah, você deve ser a Minjeong, certo? Não imaginei que já tivesse chegado. 

— É um prazer conhecê-la, Sra. Bae — diz Minjeong com um tom de voz suave. — Cheguei faz alguns minutos, mas ainda estava à procura do seu escritório. 

Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas é óbvio que isso não se aplica a nenhuma das duas. Tanto minha mãe quanto Minjeong sabem exatamente sobre o que estão conversando. 

Minha mãe sorri e se aproxima. Desta vez, ela a estuda, seus olhos cada vez mais interessados.

— Acredito que Yongsun já lhe situou sobre algumas coisas, mas gostaria de conversar um pouco com você. — Ela faz uma pausa. — Vamos até o meu escritório.

Minjeong acena com a cabeça em minha direção antes de acompanhar minha mãe pelo corredor. Enquanto isso eu fico ali me perguntando quantas surpresas mais a vida vai me disponibilizar ao longo da semana. 

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