Capítulo 1
Eu me arrumava para mais um dia de trabalho, hoje seria um dia daqueles. Eu estava de péssimo humor depois de ter tido uma briga com Eduardo. Mesmo depois de três meses de fim de relacionamento, não conseguia seguir sem sua presença desagradável. Eu sofri muito no início, mas depois dei um sacode em mim mesma e parei de chorar por quem não me merecia. O ruim foi começar a encontrá-lo em tudo quanto era lugar que eu frequentava. Se eu estava no bar com minhas amigas, não demorava muito e o infeliz aparecia. Eu estava cansada de tudo aquilo e prestes a cometer uma loucura a qualquer dia.
Fechei o armário, espantando toda a confusão que estava na minha cabeça. Eu não podia deixar minha vida pessoal afetar meu trabalho. Vi o exato momento que Leila entrou no vestiário e precisei me segurar para não revirar os olhos. Ela era minha chefe e não nos simpatizamos. Seus olhos analisaram meu uniforme e vi seus lábios se retorcerem em desaprovação.
— America, querida, você está atrasada mais uma vez – disse ela. – Eu vou ter que descontar do seu salário.
Olhei para ela, desacreditada, e levantei o olhar para checar as horas no relógio pendurado na parede com a tinta desgastada. Constatei que eu estava dentro do horário e voltei a encará-la.
— Eu não estou atrasada, Leila.
— Está me contrariando, garota?
Levantei as sobrancelhas.
— Estou apenas informando que você está equivocada – rebati. – São 08h, então estou dentro do meu horário.
— Eu mudei o horário – informou. – Os funcionários entrarão às 07h30 a partir de hoje, eu avisei na reunião.
Comecei sentir a raiva tomar conta de mim e precisei me controlar.
— E quando foi essa reunião?
— Foi na sexta-feira.
Trinquei os dentes e apertei os lábios. Leila mantinha a pose de rainha da Inglaterra, esperando uma resposta.
— Você deu uma reunião no dia da minha folga extra, Leila. Por que não me avisou?
A fingida se expressou como se eu a tivesse pego de surpresa e tal reação me deixou ainda mais enraivecida.
— Oh, eu pensei que tinha avisado todos. Esqueci que era sua folga, querida.
Que fingida! Ela veio confirmar o dia de folga comigo no dia anterior.
Analisei seu rosto e algo em seu olhar me fez recuar. Leila demonstrava o quanto aquilo estava lhe divertindo e a provocação estava estampada em seu rosto. Eu não poderia me deixar levar.
— Bem que você poderia ter se informado, não?
Aquilo foi à gota d'água.
Não sei como aconteceu, mas quando dei por mim estava em cima da diaba e eu lhe esbofeteava a cara. Ela tentava me parar com seus braços ossudos, mas cada vez que sua unha me arranhava mais eu sentia raiva. Seus cabelos loiros se desfizeram do coque perfeito e estava espalhado no chão e seu batom vermelho manchava seu rosto. Eu sentia toda minha frustração exalar os meus poros.
Ouvi uma voz ao fundo. Pisquei diversas vezes e encontrei Leila com uma expressão questionadora. Seus cabelos ainda estavam intactos, seu batom vermelho ainda cobria os lábios carnudos e ela ainda estava à minha frente esperando uma resposta.
— Desculpe, eu tive um pequeno devaneio – expliquei. – Tem razão, Leila.
Ela se surpreendeu, mas se recompôs com facilidade e deu um sorriso falso.
— Eu vou desconsiderar, mas que isso não se repita – Leila me deu as costas, fechei as mãos em punhos e simulei socos. Seus passos eram como de uma gazela, mas antes de ela passar pela porta, virou-se para mim. Baixei as mãos e coloquei um sorriso sem graça no rosto. – Seus pacientes estão te esperando. Tenha um bom dia, querida.
— Você também, minha querida.
Ela jogou um beijinho no ar para mim e saiu porta afora. Tentei controlar as batidas do meu coração e a minha raiva. Aquilo não podia arruinar meu dia.
Deixei o vestiário um pouco mais calma e me encaminhei para a enfermaria. Encontrei Carla e Diana, minhas amigas. Elas abriram um sorriso ao me verem e abracei cada uma.
— Por que não me avisaram que nós iríamos entrar meia hora mais cedo a partir de hoje?
Elas se entreolharam. Eu sabia que não iria gostar da resposta, então comecei a preparar meu espírito. Diana estava com um meio sorriso e Carla parecia um tanto desconfortável.
— Leila garantiu que tinha avisado você sobre isso, por isso nem disse nada – disse Carla.
— Eu nunca falaria assim de uma mulher, mas eu vou matar aquela vaca.
Diana liberou uma gargalhada, mas tampou a boca com rapidez. Carla arregalou os olhos e me encarou como se eu estivesse fora de mim. Talvez eu estivesse mesmo. Não acredito que ela armou todo aquele teatro.
— O melhor que eu faço agora é ir até meus pacientes – murmurei, indo até as fichas. – Parece que está tudo contra mim.
— Eduardo de novo? – indagou Diana.
Peguei as fichas e olhei para minha amiga. Ela estava com aquele olhar irritado.
— Parece que eu estou num pesadelo – respondi. – Aquele filho da puta não segue a vida e me deixa em paz. Seria bom demais eu não esbarrar com ele a cada meio metro. Acho que sou capaz de fazer uma loucura qualquer dia.
Ela se aproximou de mim e acariciou o meu braço. Seus olhos esverdeados diziam tudo, nem precisava que ela abrisse a boca. Carla me entregou a bandeja de medicamentos com um meio sorriso. Agradeci e me despedi delas. Iria começar a melhor hora do meu dia.
Eu trabalhava em uma casa de repouso para idosos e cinco deles era responsabilidade minha. Dava seus medicamentos, levava-os para passear, ouvia suas histórias.... Eu me sentia ligada a cada um deles.
Abri a porta do quarto e recebi um lindo sorriso quando pus minha cabeça para dentro antes de entrar totalmente. O senhor de cabelos ralos e brancos já estava todo arrumado, sentado em sua poltrona. Os olhos azuis acinzentados seguiam meus passos. Ele era alto, magro e tinha mais de oitenta anos. Seus familiares não o visitavam e isso partia o meu coração.
— Bom dia, senhor Altamir.
Coloquei a bandeja na mesinha de cabeceira e dei uma olhada em sua ficha antes de lhe dar um abraço. Ele retribuiu o gesto e pelo modo que me apertava supus que sentiu minha falta no fim de semana. O senhor deu mais um sorriso quando nos separamos e precisei preparar meu coração para o que viria a seguir. Eu detestava chamar a atenção deles, mas era meu trabalho.
— Está na sua ficha que o senhor não quis comer e se recusou a tomar seus remédios – Ele desviou o olhar e baixou a cabeça. – Tínhamos conversado sobre isso e o senhor me prometeu que iria se comportar bem quando eu não estivesse aqui.
Ele não me respondeu de imediato e aproveitei para checar sua pressão, medir sua temperatura e sua glicemia. Anotei tudo em sua ficha e ouvi sua voz rouca chegar aos meus ouvidos.
— O remédio me causa náusea e a comida do fim de semana não é a melhor do mundo. Queria que servissem comida de verdade... Uma linguicinha frita.
Cruzei os braços e seu olhar encontrou o meu.
— Linguiça frita não é um bom cardápio para quem sofreu um princípio de infarto – Ele apertou os lábios finos. – Nem adianta me olhar com essa cara. Tudo o que fazemos aqui é para seu bem estar.
— Eu sei, eu sei... desculpa.
Sorri, satisfeita. Peguei seu copinho com os comprimidos e seu copo de água. Estendi para ele e mesmo contrariado, tomou seu medicamento. Altamir me devolveu o copo e o recoloquei na mesinha.
— Daqui a pouco vai chegar o café da manhã e tem que me prometer que vai se alimentar direitinho. Eu vou ver o que consigo fazer para mudar seus remédios.
— Consegue fazer isso?
— Vou tentar — respondi.—Mais tarde vamos dar uma volta no jardim e depois quero ouvir o senhor tocar piano.
Vi a sombra de um sorriso e senti meu coração aquecer. Ele era apaixonado por música e amava tocar, até compôs uma para mim. Eu chorei, confesso.
— Você é um anjo na minha vida, America.
Emocionei-me.
— Assim vai me fazer chorar e eu tenho mais quatro pacientes para visitar – Peguei as fichas, a bandeja e me afastei. – Até mais tarde.
Ele murmurou um até logo e senti meu coração cheio de alegria. Meu trabalho recarregava todas as minhas energias. Fui para o próximo quarto, vendo o senhor Félix todo emburrado. Dei um bom dia animado, mas ele não estava de bom humor. Ele ficou calado durante toda minha avaliação e tomou seu remédio sem muita resistência. Apesar de ser ranzinza, não dava qualquer trabalho. Ele era baixo, careca, tinha os olhos de jabuticaba e uma barba branca bem aparada. Tinha setenta e cinco anos, mas eu daria cinquenta. Ele era apaixonado por arte, música e amava cultivar o jardim.
— Quer dar uma volta no jardim mais tarde? Eu estou ansiosa para ver suas peônias.
Ele abriu um sorriso.
— Elas estão a coisa mais linda do mundo – disse ele. – Eu estava ansioso para hoje, só para você ver como elas estão.
— Eu também contei as horas para vir.
Ele deu um sorriso tímido, carregado de agradecimento. Toda vez que seu filho vinha visitá-lo, ele ficava de mau humor. Eu nunca o conheci pessoalmente, mas sabia que não se davam muito bem.
Despedi-me dele e fui até meu terceiro paciente, senhor Jonas. Ele era muito alto, negro e com os olhos mais risonhos que eu já conheci. Um dos poucos que estava aqui por escolha própria. Sua família vinha toda semana visitá-lo e sempre era uma festa. Ele era apaixonado pelos netos e pelos filhos. Deixei seu quarto às gargalhadas depois de avaliá-lo e lhe dar seus remédios. Ele gostava de jogar basquete e prometi que jogaria uma partida com ele hoje. Eu queria chegar à idade dele com a mesma energia.
Entrei no quarto da senhora Judy secando as lágrimas. Ela deixou de ler o seu livro e se atentou aos meus passos. Dei-lhe um bom dia animado e recebi uma resposta tão animada quanto. A senhora era muito vaidosa, magra e as rugas não escondiam sua beleza. Seus olhos eram verdes e brilhantes, mesmo que a diabetes tivesse tirado sua visão. Conversamos um pouco enquanto estava em seu quarto e disse que depois voltaria para darmos um passeio no jardim. Ela não tinha mais ninguém e também estava aqui por escolha própria. Eu amava suas histórias e ainda mais ouvi-la cantando.
Enfim, cheguei ao quarto da senhora Nice. Ela esperou que eu a avaliasse, tomou seus remédios e me puxou para sentar em uma das poltronas. Seus olhos me analisavam com cautela e me senti intimidada. Eu nunca soube esconder as coisas dela. Vi seus lábios se contorcendo, aquilo era um indício de que já sabia de tudo.
— Eduardo te perturbando mais uma vez – murmurou. – Eu acho que preciso dar uns tapas naquele garoto.
Liberei uma risada fraca.
— Aquele garoto tem trinta e cinco anos, Nice.
— O que? Só porque ele tem aquele tamanho todo acha que eu não dou uns sopapos nele?
— Não precisa brigar com ele por minha causa.
Ela revirou os olhos.
— Você o defende mesmo quando ele não merece.
— Eu não estou o defendendo – Ela arqueou a sobrancelha bem feita. – Tudo bem, talvez eu esteja, mas é porque eu não quero que a senhora fique brigada com sua única família. Ele te ama.
— Vocês eram o casal mais bonito e mais perfeito que eu já vi, pena que meu neto é um babaca sem coração e te magoou. Agora ele está tentando correr atrás.
Baixei a cabeça e suspirei.
— Eu só quero paz — enfatizei. — Ele terminou comigo, me traiu, mas se frustrou quando viu que eu não correria atrás dele.
Ela pegou uma de minhas mãos e levantei o olhar para encará-la.
— Não deixe que ele tire sua paz — orientou. — Se precisar, pede para seu irmão surrar ele.
— Eu espero não chegar a isso.
Dei um meio sorriso e apertei sua mão. Sabia que sua intenção era das melhores e a amava demais por isso. Levantei-me da cama e peguei minhas coisas, despedindo-me logo após. Pensei sobre o que Nice me disse e saquei meu celular, desbloqueei o contato de Eduardo, mandando uma mensagem curta e direta para ele. Eu tinha que colocar um ponto final naquilo.
[..]
Eu estava no jardim com meus pacientes. Eles estavam aproveitando o pôr do sol. Nice e Judy conversavam e os outros jogavam uma partida de cartas. Sentia-me ansiosa e olhava o celular a cada minuto. Era muita falta de ética e de responsabilidade, mas eu não conseguia evitar.
Tinha passado boa parte do dia concentrada neles. Recebi uma peônia de Félix, joguei uma partida de basquete com Jonas, dei um bom passeio com Nice e ouvi Judy cantar enquanto Altamir tocava o piano. Eu sentia minha alma leve, feliz, mas agora que estava com a mente correndo solta não conseguia deixar de pensar na conversa que gostaria de ter com Eduardo. Guardei o celular e encontrei o olhar astuto de Félix. Envergonhei-me e recebi um sorriso.
— Eu estava pensando em fazer um show de talentos e um baile dançante – informei, ganhando a atenção de todos. – Vocês se apresentariam e cada um teria um prêmio. Pode ser aberto para familiares e amigos, ou pode ser apenas com a gente.
— Que ideia mais maravilhosa – exclamou Judy.
Sorri.
— Eu gostei mais da ideia do baile dançante – disse Nice. – Quer ser meu par, Jonas?
O senhor se engasgou com a própria saliva e recebeu uns tapas dos companheiros. Não era segredo para ninguém que ela tinha uma queda pelo senhor, mas ele sempre se envergonha com ela.
Ele se acalmou aos poucos, enquanto os outros riam de sua reação.
— Eu não danço, Nice.
— Ah, mas isso não é problema – informei, ganhando um olhar quase desesperado. – Eu vou ver se arranjo um professor de dança, mas isso só vai acontecer se a Leila permitir.
— Do jeito que é uma estraga prazer, acho bem difícil – murmurou Nice e os outros concordaram. – Vamos supor que estamos em um universo paralelo e que ela autorize, quando seria esse baile?
— Mais para o fim do ano para dar bastante tempo para ensaiarem.
Ela bateu palminhas, animada. Félix pigarreou e vi sua face avermelhada.
— Quer ser o meu par, Nice?
Espalmei a mão no peito, emocionada, e vi a senhora envergonhada e surpresa. Félix era tão galante que qualquer pessoa se envergonha diante dele.
— É... Claro que eu quero – gaguejou.
Ele comemorou e soltei uma risadinha. Jonas fechou a expressão e se levantou.
— Eu vou voltar para o meu quarto.
— O senhor está bem?
Ele me encarou e deu um meio sorriso, confirmando com um aceno de cabeça. O senhor deixou o jardim a passos largos e quando saiu de nossas vistas voltei meu olhar para Nice. Ela deu de ombros e um sorrisinho para Félix. Meu celular começou a tocar e o atendi sem nem mesmo ver quem era.
— Oi.
— Oi, desculpa não ter te respondido antes — explicou-se. — Eu precisei fazer uma viagem de última hora.
— Precisamos conversar, Eduardo.
Ele ficou muito tempo em silêncio e precisei verificar se ainda estava na linha. Ouvi seu suspiro e meu coração acelerou.
— America, eu... eu preciso dizer uma coisa. – Senti meu coração parar por alguns segundos para voltar a bater com toda velocidade. – Eu estou saindo com outra pessoa.
Franzi as sobrancelhas, confusa.
— E o que eu tenho com isso?
— É que você não pode mais ficar correndo atrás de mim desse jeito, entende? Sei que terminamos de uma forma ruim e...
Não conseguia mais ouvir com clareza, irada. Ele era um verdadeiro cretino!
— Você por acaso está se ouvindo? Eu não estou te perseguindo! Você que está em todo o lugar que eu vou e fica me rondando que nem um urubu na carniça.
— Eu nunca fiz isso.
— Não seja cínico! Você é um filho da puta de merda e agora está me pintando como louca.
— Tudo bem, confesso. Eu estava te rondando porque você é um tesão e eu pensei que não conseguiria arranjar mais ninguém, então...
Liberei uma risada sarcástica.
— Você só pode estar brincando com a minha cara.
Ele liberou uma respiração pesada e sabia que estava irritado. Meu coração batia desgovernado, um misto de sentimentos me afogando, tendo o ódio como principal.
— Não finja que não gosta.
— Você é um babaca! Vê se me esquece, ou vou dar parte de você na polícia. Se aparecer na minha frente, eu juro que vou fazer um estrago na sua cara. Imbecil!
Encerrei a chamada e cobri o rosto numa tentativa falha de conter meus soluços. Eu tremia de tanta raiva. Senti os braços me abraçarem, sabia que era o senhor Altamir somente pelo seu cheiro de alfazema e me deixei acalentar por ele.
...
Notas da Autora:
Amores da minha vidaaaaaaaaaaaaa!! Que saudade de postar aqui para vocês. Como é que cês estão, hein? Eu espero que estejam todos bem.
Gente, despois de tanto sufoco, trago um capitulinho para vocês. Quem quer quebrar o Eduardo na porrada levanta a mão!!! Eu quero esfregar a cara dele no asfalto. No mais, o que acharam do capítulo? Eu espero que gostem. Não esqueça de deixar sua estrelinha e seu comentário, viu? Beijo no coração de vocês.
Até sexta-feira, amores.
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