Aquela não é a Harriet
Basta um segundo para mudar vidas inteiras.
Lyle sentiu isso na pele mais do que uma vez. Na mais recente, um infrator momentaneamente daltónico ignorou o significado das cores e do posicionamento das luzes, abalroando o seu modesto e alugado veículo com uma poderosa HiLux num cruzamento movimentado, em plena luz do dia. Levaram-no para o hospital em vez da casa do irmão Logan e da sua família, como era suposto. Certamente que teria perdido o aniversário da sobrinha. O pior, contudo, é que talvez não sobrevivesse para ver o próximo.
Aquele era um desses momentos. Os rasgões que o relógio da divisão infligia no silêncio assinalavam outro conjunto de segundos que poderiam mudar vidas inteiras.
A porta tinha aberto há instantes. Naquilo que era uma sala de observações vazia, onde apenas um corpo deveria trocar calor com o ar gélido, havia dois focos de perda de radiação. Ele não estava sozinho.
— Lyle?
O timbre que penetrou os seus ouvidos, quase perfurando os tímpanos com o surgimento súbito, nunca o aterrou mais. A voz era doce, o som afável. As memórias evocadas, idílicas. Mas o formigueiro debaixo da pele que o percorria como uma longa e venenosa centopeia que arrastava as antenas antes das pata gordas e peçonhentas, em número quase infinito, marcharem pelo seu corpo até qualquer parte apetecível, talvez o coração ou o fígado, antes de o desfazerem em porções que saciassem o seu apetite carnívoro; esse formigueiro medonho denunciava tudo.
A familiaridade tinha desaparecido. A cumplicidade, a alegria e o prazer da sua companhia também, assassinados por um simples facto: aquela não era a Harriet, a sua Harriet.
O outro corpo, com passadas amortecidas pela borracha do calçado, deu a volta à secretária atrás da qual Lyle se agachava. Com a luz que se derramava da porta aberta para o breu do consultório, as feições da Dra. Harriet Reid tentaram apaziguá-lo com um sorriso. Um sorriso que o mortificou de tão cínico, amplo e reluzentemente macabro que era, o cheiro putrefacto das gengivas cinza e da língua mirrada e retorcida, mantida saudável por um qualquer encantamento, a provocar a ânsia do vómito ao mais velho.
— Ainda não deverias estar a pé, Lyle. Anda, eu levo-te ao teu quarto.
A mão delgada ameaçou invadir a bolha de espaço pessoal do homem que, recuando, tropeçou, sentindo o frio das lajes na pele áspera das nádegas antes de se levantar atabalhoadamente. Com o movimento súbito, as dores no corpo repercutiram pelos músculos, tendões e ossos, levando-o a soltar um gemido quando voltou a apanhar o jeito à gravidade.
— Lyle? Está tudo bem?
O corpo que tinha pertencido a Harriet estava em cima de si, as garras mal aparadas projetadas dos dedos cadavéricos a vincarem as dobras da pele, invocando finos riachos escarlate que tingiam tudo à sua passagem até se precipitarem para o solo. Do ponto de contacto, qual veneno que se alastra, a certeza das suas convicções irradiou pelo seu corpo em calafrios e tremores de pânico.
Poucas tinham sido as vezes que tinha estado pele com pele com a criatura que tanto o cativara nos seus fugazes regressos à civilização, mas em nenhuma dessas vezes tinha sentido tamanha repulsa na boca do estômago.
— Soltem-me! — berrou, a garganta arranhada a parir a ferros a cria do seu desespero, ao mesmo tempo que os seus braços dormentes deferiam um gancho de esquerda na figura feminina antes de a empurrarem contra o caixilho da janela fechada.
Desencabrestado, a consciência ainda oscilante depois de tanto tempo inanimada, tropeçou nos próprios pés, o instinto de levar as mãos à frente para amparar a queda a única coisa a evitar que se tornasse parte do insípido papel de parede da divisão. Depois, cambaleante, não conseguiu impedir a colisão do seu ombro desfeito e enfaixado com a moldura da porta, obrigando ao reajuste doloroso dos estilhaços do cavername antes de virar para o corredor, as passadas açodadas a tentar mantê-lo a salvo. Atrás de si, a figura de Harriet recuperava a consciência e, estalando as articulações como galhos secos que quebram ou talheres metálicos que derrapam na loiça de cerâmica, partia no seu encalço.
A hora ia alta. As luzes brancas permitiam que enxergasse o caminho aos solavancos, mais vazio que um cemitério mexicano no dia dos mortos, sitiado pelas dançantes silhuetas negras que conhecia tão bem. Estas, que sempre se distribuíram de forma uniforme pela sua visão periférica, aglomeravam-se agora num canto ou no outro, sempre que o seu corpo cansado chegava a uma encruzilhada, obrigando-o a encaminhar-se para a direção oposta da massa de espíritos inconformados com os trâmites do pós-vida.
Não podia deixar que lhe tocassem de novo e que se infiltrassem pelos lanhos que os dedos grossos tentavam fechar, ou acabaria como ela: um receptáculo de criaturas que nunca deveriam sair da periferia da visão daqueles que realmente vêm.
— Lyle... — sussurrou aquela que tentava deixar para trás, como se se encontrassem de novo no meio dos lençóis, embrulhados numa felicidade passageira e no calor um do outro, vítimas da luxúria e da solitude das suas almas. Porém, agora era como se toda a calidez se devesse a sangue recém-derramado, essa rubra água da vida que depressa esfria e endurece, deixando como trilho o desagradável cheiro metálico e as manchas escuras nos tecidos antes empapados sob o cadáver do que antes foi uma estimada relação a dois.
O seu sangue gelou-se-lhe nas veias naquele mesmo instante. Os músculos frígidos retesaram, incapazes de traduzir os pulsos elétricos que o percorriam em movimentos coerentes, obrigando-o a estatelar-se contra o carrinho de mantimentos médicos no perímetro do amplo corredor. O seu nariz não atingiu o solo, mas o fedor a antisséptico que o incomodava desde que deu por si a acordar na desconfortável e fria cama de hospital apunhalou as suas narinas quando as gavetas escancaradas derramaram ao lado da sua cabeça o seu conteúdo mais inócuo e pungente: desinfetante. Cheirava às idas ao dentista para arrancar e chumbar dentes que poderiam facilmente ser limpos e recuperados; cheirava à craniotomia a que a sua irmã mais nova não sobreviveu, mesmo com o peso da assistência na galeria superior e todas as mãos disponíveis no bloco operatório; cheirava às dores excruciantes que a verdadeira Harriet teve de mitigar uma vez, quando as bactérias carnívoras que o tinham forçado a regressar a casa lhe devoraram a carne sobre a tíbia quebrada num passeio descuidado por entre os esconderijos dos pequenos aborígenes.
Os vapores tóxicos infiltraram-se até ao seu débil espírito, subindo à cabeça com a leveza de gases nobres, entorpecendo-o e mitigando a agonia a que o seu corpo amassado e derrotado era submetido depois deste novo embate. As mãos subiram os obstáculos e a parede pouco a pouco, as pernas retorcidas forçadas a exercerem força da sua posição natural até que, depois de muito esgadanhar, Lyle conseguiu erguer-se. Num esforço hercúleo, compeliu os membros inferiores a trocar de lugar sucessivamente, um à frente do outro, marchando pelos azulejos amarelados, pontilhados a branco num padrão tão discreto que apenas quem esteve em grande proximidade com o pavimento conseguiria distinguir. As suas primeiras tentativas vieram acompanhadas de espasmos, como consequência da distribuição do seu peso sobre os cacos de vidro e plástico que descarnavam as solas nuas dos seus pés chatos. Depois, engolindo a nova onda de desconforto, fixou os olhos na placa ao fundo do corredor, os músculos ciliares acometidos por contrações frenéticas, em busca da distância focal que lhe permitiria descobrir para onde as sombras que o acompanhavam o iriam repelir a seguir.
— Onde vais, Lyle?
Por pouco, o novo sussurro na sua nuca e o bafo quente que o precedeu não resultou num tombo espalhafatoso. Escorando-se na parede para evitar o pior, Lyle agarrou a ombreira da porta de um gabinete vazio, impulsionando-se para a frente. Os espíritos tinham-no conduzido para a ala da esquerda e ele, no frenesim interno de tentar manter uma cadência de movimentos apropriada à sua evasão, não tinha sido capaz de ler a placa que o elucidaria sobre o seu destino.
— D-deixem-me... — engasgou-se, as lágrimas e o ranho lubrificante insuficiente para permitir à sua voz uma fuga perfeita dos confins da sua garganta.
Sempre que a voz da impostora lhe falava, o seu coração desregrado batia incessante, falhando o ritmo a cada oportunidade e contraindo-se em demasia no peito, ameaçando suspender de vez a sua atividade depois de mais de quatro décadas de aventuras constantes. Aquilo era cruel, perverso até. Servirem-se do cadáver de Harriet para o apanhar a ele era mais do que a sua sã consciência poderia suportar.
Vivera em comunhão com a Natureza e os seus estudos sociais e teológicos durante mais de metade da sua vida, sendo para si mais natural conviver com as tradições aborígenes do que com as convenções de uma sociedade dita moderna. A família mal o via, com excepção das ocasiões em que tinha de se fazer de convidado naquele mesmo hospital, quando a medicina da Papua-Nova Guiné não era par para as maleitas que o seu ambiente natural poderia infligir nos menos preparados, obrigando-o a regressar ao continente para contrabalançar a ferocidade dos organismos das matas com conhecimentos científicos dos melhores laboratórios e hospitais da Austrália.
Tinha sido assim que a conhecera, numa dessas visitas inesperadas depois de deambulações mal calculadas. E tinha sido assim que a sua relação se mantivera, com curtos encontros ao longo das décadas, suficientes apenas para expiar as amarguras da vida e restabelecer a força de vontade antes de cada um seguir o seu rumo: Harriet para os filhos de um casamento em morte cerebral, sustido apenas por um inútil suporte de vida familiar, arquitetado por comadres descontentes, e Lyle para a sua pesquisa e artigos que publicava esparsamente, por intermédio de colegas de raízes bem assentes na civilização.
Numa das últimas trocas de correspondência com um dos seus confrades antropólogos, ciente das obscuridades da sua vida devassa unicamente pela confiança que a convivência desde os tempos de berçário incutia entre duas almas homónimas, Lyle soube do que tinha acontecido à mulher cuja presença não o agraciava há 7 anos: quase se afogara num acidente de mergulho com os filhos e o seu prognóstico era reservado. Três noites depois, numa habitual viagem transcendental, a confirmação da tragédia.
Num familiar delírio xamânico e ritualístico, no seio das almas dos finados, Harriet assemelhava-se a um anjo caído, a sua aura de luz a criar um perímetro impenetrável para o negrume daqueles que aceitaram as trevas. Lyle tinha-se aproximado para fixar na mente as feições dela antes de a deixar partir, mas a mulher puxou-o para mais perto, envolvendo o espírito nu dele com o dela. Nessa noite fizeram amor, numa experiência que elevava o êxtase a algo mais grandioso e satisfatório do que os mundanos prazeres da carne. Sem matéria que realmente os unisse mas sem limitações que os separassem, os espíritos de Lyle e Harriet tinham-se mesclado, apartado e fundido vezes e vezes sem conta, duas existências tornadas uma só de uma forma impossível durante os seus encontros terrenos. Depois, tendo atingido os seus limites por razões distintas, Harriet partiu para onde nem a alma Lyle poderia seguir, mesmo separada do seu corpo, deixando para trás uma sobrecarga de emoções e a impressão de que o antropólogo tinha acabado de vislumbrar as respostas a todas as complexas perguntas do Universo.
Desde então, ele nunca mais a tinha visto. Isto até ter acordado ali depois do acidente.
— Lyle... Para quê correres se só te vais aleijar no final? — cantarolou de novo Harriet, agora numa voz infantil, como se tivesse recuado 35 anos, até ao pináculo da sua inocência, quando o seu diminuto dicionário só tinha registados sons codificados e alguns dissílabos.
As suas costas arquearam-se instintivamente, um calafrio a descer a sua espinha qual cubo de gelo contra o escorrega de metal de um parque infantil abandonado ao sol. Harriet — não, o espírito dentro da carcaça de Harriet parecia seguir calmamente no seu encalço. Fazia pouco de si, avançando num ritmo que mantinha a sensação de falsa segurança na sua vítima, ameaçando apanhá-lo mas nunca chegando perto o suficiente para o fazer. Lyle sabia ser uma provocação, uma promessa do que lhe aconteceria quando os espíritos se cansassem daquele circo. Porém, nada mais podia fazer do que continuar a sua fuga, procurando um fator que alterasse as regras do jogo, sem nunca se atrever a olhar para trás. O antropólogo não queria encarar de frente os olhos daquela mulher e perceber o tenebroso vazio que os preencheria agora, em conformidade com a mórbida aparência da matéria que a constituía, em virtude da ausência indefinida da alma que lhe era devida. Não queria partir do mundo com aquela imagem horrenda na sua mente, sabendo que seria a premissa para os espíritos perpetuarem aquela agonia, atacando talvez a família do seu irmão assim que se tivessem apossado do seu velho corpo, vitimando a cidade inteira depois, talvez mesmo o mundo, erguendo-se do Além até não restarem almas com vontade de quebrar as Leis da Natureza e tornar a caminhar na Terra.
Chiando em vez de respirar, o homem lutou por se manter em movimento. As dores que lhe foram oferecidas pelo maldito acidente multiplicavam-se pela sua estatura, dividindo-se pelos seus membros e abrandando as suas passadas ensanguentadas. Lyle quase se arrastava pelos corredores, uma mão agarrada às feridas abertas no pulso dorido, a outra a empurrar as paredes de quando em vez, procurando impulso. O corpo, vetusto e quebrantado, já mal respondia às suas vontades. A vista cansada e difusa, tolhida pelas lágrimas, afunilada pela camada anormalmente espessa de trevas na sua periferia, pouco retinha do seu entorno. Vez ou outra passava sob candeeiros de teto que faiscavam num ritmo próprio, quase provocando epilepsia a um observador são; as paredes brancas recortadas por toros retangulares de madeira exposta, adornadas por faixas guia coloridas, figuravam-se clones das suas vizinhas, eternizando o seu suplício, como se acorrentado a um carrossel avariado, sem meios de frear o seu movimento.
Os seus ouvidos, que até à instantes não escutavam vivalma para além das passadas atrás de si, começaram a captar risadas. Seguramente seriam dos pacientes trancados atrás das portas pelas quais passava, no inquietante corredor da ala psiquiátrica, anormalmente deserto para um hospital movimentado, mesmo com o aproximar da alvorada. Ou seria dos próprios espíritos, divertidos a atormentá-lo, quais predadores a matar o aborrecimento com o pânico da presa antes de a engolirem de um trago?
O crescendo de histeria amplificava as gargalhadas, os grasnares, os zurros, entorpecendo a audição para que tudo o resto fosse abafado. Nem as passadas no corredor, nem a azáfama de intenções primitivas na sua mente, quais sombras de verdadeiros pensamentos, nem mesmo a sua própria respiração apressada lhe chegava aos ouvidos, suplantada pela cacofonia que o ensurdecia. Apenas aqueles sons permeavam o ar, crescendo, crescendo e crescendo, juntando-se ao clamor vibrante das trevas, juntando-se até aos gritos estrangulados na sua própria garganta seca e inóspita, imprópria para dar voz ao seu desespero e pedir auxílio a quem quer que estivesse em posição de o prestar.
Tinha a Morte nos calcanhares, a beijar-lhe a nuca, a percorrer com as garras afiadas as linhas desgastadas dos músculos exauridos e tudo o que podia fazer era arrastar-se pelo hospital, algures entre mancar e gatinhar, enquanto o corpo de Harriet fingia persegui-lo.
Lyle tropeçou numa esquina, atordoado. Podia ouvir tambores, guizos descoordenados, o choro desafinado das flautas, cantares ritualísticos na noite iluminada pelas labaredas da grande fogueira, súplicas de clemência, ossos a quebrar, órgãos ensanguentados arrancados a carcaças inertes, a lúgubre angústia de pais que perderam a filha, as vozes excitadas do coro da igreja que não frequentava desde os seus tempos de escola, tormentas encimando o mar costeiro, vendavais a forçar vidraças opacas em caixilhos antigos e muita dor amotinada, incapaz de permanecer escondida sob a máscara de sanidade e saúde.
Até que, de repente, tudo se emudeceu.
— Entrega-te, Lyle. Não adianta fugires — sentenciou uma voz antinatural, multiplicada por muitas outras apesar de se ter feito ouvir num sussurro tão cercano e íntimo como se tivesse saído dos lábios de um amante colado a si ao ponto de partilharem pele, quase fundidos num só.
Ele sabia serem sussurros dos espíritos que salivavam um rubro corrosivo, impacientes, apenas à sua imagem desconcertada. Sussurros que lhe prometiam, por palavras ocultas, meter-se debaixo da sua pele, substituir a sua consciência e possuir o seu corpo antes de saírem do hospital e fazer o mesmo com os poucos familiares que lhe restavam. Lyle sabia que tinha de escapar e encontrar um lugar seguro onde recuperar forças para ludibriar as criaturas tempo suficiente até descobrir o ritual aborígene que libertaria o cadáver da Dra. Reid do jugo das trevas e os salvaria a todos. Lyle sabia, mas estava impotente. O corpo não lhe obedecia. Os braços cansados cobriram a cabeça de forma hesitante, mas nenhum outro conjunto de músculos cedeu às suas orações. Estava congelado num clímax de horror, os espasmos do corpo a forçar a bexiga a cominá-lo com uma libertação típica da infância e da terceira idade.
Tap. Tap. Tap.
Passos.
Pegadas audíveis chegavam-se cada vez mais perto, a borracha das solas que acomodavam o corpo que sobre elas se erguia a falhar na tarefa de disfarçar os avanços confiantes.
— Precisa de ajuda?
O seu corpo não saltou com a agressão verbal da pergunta ao seu estado debilitado, como teria acontecido noutras circunstâncias. Não tinha em si poder suficiente para sentir mais do que a paralisia, física e mental, que se tinha apossado dele. Mas o verniz de pavor estalou num instante. Ao sentir a mão cândida sobre a omoplata, Lyle percebeu que as passadas tinham vindo da sua frente, não das suas costas. Não pertenciam ao corpo possuído de Harriet, mas sim a um magricelas de bata, o crachá com letras demasiado miúdas para se perceber quem era e que cargo ocupava.
A medo, o velho olhou para cima, batalhando contra o pescoço amassado para encontrar o ângulo certo que lhe permitisse espiar as feições do anjo imobilizado à sua frente. Apesar da boa iluminação do espaço, parecia haver uma aura radiante a alumbrá-lo, lembrando Lyle das histórias que o avô lhe contava sobre o alívio de ver, no breu das noites de tempestade, a luminosidade cíclica de um farol.
— A-a-ajude-me ... — conseguiu dizer.
Ou isso lhe pareceu. Talvez estivesse rouco e o miúdo, que discorria num inventário mental das mazelas visíveis em Lyle ao ampará-lo enquanto este lutava por se recolher e levantar, não tivesse realmente ouvido o apelo. Estava tão consumido pela sede que talvez já não houvesse no seu corpo abatido humidade suficiente para olear as cordas vocais a fim de se fazer ouvir.
Quase ereto, a cabeça girou com vagar, sondando o perímetro. Para sua surpresa, a costa estava livre. Mas não houve esperança nesse facto. Pelo contrário, Lyle foi cuspido para o abismo quando, com um sorriso gentil, o jovem que se prontificou a ajudá-lo lhe administrou veneno, qual cobra castanha, guardando a seringa utilizada num dos bolsos da sua fardamenta em seguida.
O corpo desfaleceu, tal como se tivesse a vida lentamente drenada para o cálice de um tenebroso e sedento carrasco divino, que se banquetearia com a sua essência antes de retornar aos seus afazeres imortais. Os costados foram guiados até ao chão, a queda amparada antes das mãos que o guiavam o abandonarem, fazendo dele uma tartaruga completamente indefesa perante o aproximar eminente dos predadores. O corpo dormente, já de si pouco colaborativo, deixou de obedecer por completo. Ao antropólogo restava apenas a audição de tísico e a visão turva, apesar dos espíritos e sombras não passarem agora de uma fina moldura, quase inexistente, qual armação de um par de óculos que há muito aprendeu a usar, criando a ilusão de que tinha recuado até ao início da sua primeira visita aos aborígenes, antes dos mesmos lhe abrirem os olhos para a verdade dos mundos.
Tudo girava. O peso de uma vida inteira afundava-o na exaustão física acumulada, o seu psicológico devastado por todas as aflições e o pavor que delas nasceu. O sufoco que constringia as vias aéreas era provocado por milhares de pixies sentados sobre o seu peito, pequenas criaturas que um dia deixariam para trás a personalidade zombeteira e se tornariam almas de gente, esmagando-o com as suas próprias emoções. Dentre elas, a sua incompetência e a sua lassidão para com os estudos dos nativos e das suas crenças eram as mais gritantes, esmurrando o seu tórax de punho fechado.
Talvez tivesse havido maneira de evitar tudo aquilo, se soubesse mais, se tivesse estado a tento a todas as conversas e ensinamentos dos anciãos, se tivesse pressa em fazer as perguntas verdadeiramente importantes e inquietantes. Talvez se não tivesse voltado a casa para o aniversário da sobrinha. Talvez se nunca tivesse aceitado fazer tese no seio dos aborígenes. Talvez se nunca se tivesse interessado por antropologia. Talvez se tivesse sido ele a precisar da cirurgia em vez da Lily, morrendo na mesa de operações antes de atingir a flor da idade. Talvez. Talvez...
Mas agora era tarde.
Quer quisesse, quer não, o seu fado estava selado.
— Isto é que é a Síndrome de Capgras? — perguntou o jovem residente, inclinando-se para o campo de visão de Lyle como um curioso se inclina sobre algum cadáver no meio da estrada.
— Sim. De repente caras conhecidas viram impostores e os pacientes perdem a noção da realidade. Muitas vezes são violentos — esclareceu uma terceira figura, a profundidade da voz a indicar aos ouvintes que beber era mais do que uma obrigação social. — Estás bem, Harriet?
Ao fundo, os olhos pesados de Lyle podiam ainda distinguir a figura feminina, cada vez mais próxima, que massajava o queixo onde o instinto animalístico do seu agressor tinha deixado provas da sua passagem. Era satisfação aquilo que reluzia nos olhos de amêndoa, povoados por uma entidade alienígena que mais ninguém ali conseguia identificar?
— Sim, não te preocupes, Doyle.
Os pelos do corpo de Lyle, estirado contra o frio pavimento, eriçaram-se brevemente antes dos nervos perderem a sensação. Porém, não era a pele nua da bata aberta nas costas que o afligia. Mesmo apático, o antropólogo estava consumido pelo medo que a proximidade da impostora, e dos espíritos que habitavam aquele receptáculo, lhe causava. Grogue, todas as linhas de raciocínio que buscava formar para tentar perceber que destino o aguardava e elaborar um plano que o evitasse caiam por terra. A sua mente tinha ficado momentaneamente límpida ao deixar de ter a responsabilidade de suportar o seu corpo, mas estava agora enublar-se, a fatiga e os químicos nas suas veias a retomar a liderança.
— Obrigada pelo diagnóstico, Doyle— continuou o corpo feminino, em fim reunido com os três homens. — Pareceu-me que era Capgras depois da nossa conversa sobre a tua pesquisa, mas não tinha a certeza.
— Não tens de agradecer.
Doyle mostrou-se ao paciente pela primeira vez, encarando-o de cima com uma altivez e uma segurança raras em vítimas de nanismo como ele, muito menos frequentes do que os livros de fantasia queriam fazer parecer.
— Tenho de tirar notas. Nunca tinha visto um caso destes ao vivo — comentou o residente para o ar, as cordas vocais a dar consistência aos seus pensamentos. — O que é que será dele agora?
— Teremos de tratar a lesão subjacente, que certamente terá dado origem à manifestação da síndrome — disse o anão, tornando a distanciar-se de Lyle e do seu campo de visão. — Mas enquanto o tratamento não surge efeito, vamos notificar a família e monitorizá-lo.
— Serve como sujeito para a tua investigação? — inquiriu Harriet, um toque daquilo que Lyle considerou sadismo a colorir a sua voz.
— Serve, sim. Obrigado por isso. — Palmas entrecortaram a voz do médico mais experiente dos três presentes. — Ajudem-nos a levá-lo!
A pedido do Dr. Doyle, uma pequena multidão reuniu-se em torno do paciente, levantando-o para o sentar numa cadeira de rodas. A cabeça teve de ser ajustada para que se equilibrasse no trajeto de volta ao quarto de onde nunca deveria ter saído, uma vez que Lyle não estava em condições de corrigir a sua própria posição.
As rodas da cadeira começaram a rolar pelo corredor. Antes de apagar de vez, Lyle cruzou o olhar com os seus três principais captores: o residente magricelas, o Dr. Doyle e o corpo que todos julgavam continuar a pertencer à Harriet. As sombras mirradas dos espíritos continuavam na periferia da visão do antropólogo, como sempre estiveram desde a sua primeira estadia com as tribos, mas dos três algozes, só dois tinham uma silhueta escura a seus pés. A de Harriet, provavelmente ausente pela impossibilidade de manutenção contínua da farsa no meio de tantos estímulos e pormenores, estremeceu, intermitente, antes de voltar a fazer companhia às outras duas sombras alinhadas no pavimento.
Ou pelo menos, foi isso lhe pareceu. A visão enegreceu pelo efeito do sedativo e a voz do enfermeiro que tagarelava atrás da cadeira misturou-se com um zumbido agudo até que tudo não passasse das mais puras e eternas trevas.
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