Capítulo Único
A brisa gélida de outono congelava as bochechas fartas daquele pobre rapaz, que se esforçava ao máximo para chegar em casa a tempo antes que sua mãe desse sua falta.
Ele estava um pouco longe de casa, em cima da árvore mais alta por ali, vendo suas folhas caírem graciosamente nos tons mais belos que poderiam existir, e observava o céu estrelado. Estava frio, e ele sentia seus dedos adormecerem, mas ele não se importava. A única coisa que importava era conseguir ver o brilho das estrelas por mais esta noite.
E em meio a milhares de estrelas, ela estava lá, igual as outras, mas de certa forma única. Uma estrela que dali aparentava ser tão pequena, mas que era possível sentir a sua grandeza.
Ela era bela, de uma forma que era impossível descrever. De uma forma que era impossível que ele a descrevesse.
Era uma beleza sem igual. Mas ele tinha que voltar pra casa. Mesmo sabendo que era ali, observando o céu, que ele continha um lar.
De cima da árvore também era possível ver sua casa ao longe, e um pouco distante uma pequena aldeia. No relógio da catedral o ponteiro estava pronto para marcar meia-noite, faltava muito pouco para seu aniversário de 16 anos. Ele não estava empolgado.
Por sorte não se machucou ao descer da grande árvore, e pôde correr para casa, o mais rápido que podia, pisando em pequenos gravetos pelo caminho, assustando os pássaros que já estavam a dormir.
Conforme se aproximava da porteira era possível ouvir os gritos dentro de casa, as coisas se quebrando, o clima desconfortável, o peso nos ombros.
Era mais uma noite comum, infelizmente.
Ele pulou a porteira sem dificuldade, resistindo a vontade de correr para longe dali.
Do lado de fora era possível ouvir os choros e lamentos de sua mãe, sons esses que quebravam-lhe o coração. Ele apenas desejava que tudo isso acabasse o quanto antes. Ele apenas desejava com todas as suas forças sumir dali.
Abrir a porta para entrar em sua própria casa não deveria ser uma missão tão difícil, mas ele se encontrou imobilizado. Estaria pronto para ver aquela cena mais uma vez? E se nesta noite a briga houvesse se encaminhado para um patamar mais elevado? Ele não estava pronto para ver o que quer que tenha acontecido atrás daquela porta. Mas ele teria que entrar uma hora ou outra.
Girando a maçaneta ele soltou um demorado suspiro, se esforçando para que não fizesse nenhum barulho, mas a porta já não estava em boas condições. Ao empurrá-la foi possível ouvir um fraco rangido que o fez franzir o cenho, e pela forma que a discussão se deu continuidade sem sequer uma pausa, ele soube que não o ouviram abrir a porta.
Quando entrou naquela sala, percebeu que sua mãe e padrasto estavam na cozinha, então poderia subir para o quarto sem que o percebessem ali. A essa hora, ambos pensam que ele está em sua cama em um sono extremamente pesado como pensaram em todos os outros dias. Seu estômago se revirou ao lembrar das noites em que acordava por causa dos gritos. Uma tortura que se tornou cada vez mais frequente.
– Tudo bem. – murmurou para si mesmo, se concentrando na própria respiração ao invés de tentar entender a discussão.
Amava sua mãe, mas a raiva que sente desde o dia em que ela o pediu para não se meter nas brigas, era sufocante.
Ele queria ajudar, mas ela o fez prometer que não faria nada. Ela o fez prometer que não tocaria em um fio de cabelo daquele monstro bêbado.
Os degraus rangiam conforme ele subia a escada que levava ao seu quarto, tentando não esbarrar a cabeça nas poucas teias de aranha que ali se formavam. Ao chegar, se permitiu cair na cama, afundar no colchão e ficar olhando para o teto onde alguns poucos espaços entre as telhas permitiam que a luz da lua entrasse ali. Sua mente o implorava para que voltasse a subir naquela grande árvore e observar as estrelas mais uma vez.
Mas ele não podia.
Tinha que ficar em casa. Não podia deixar sua mãe sozinha com aquele monstro, mesmo que ela não permitisse que ele fizesse alguma coisa para libertá-la daquilo.
Mas ele queria tanto observar o brilho das estrelas outra vez. Era intrigante ter que esperar até a próxima noite.
Os gritos foram diminuindo aos poucos.
Mas os soluços de choro dela apenas aumentavam. Ele ouvia seu padrasto falando baixo, tão baixo que ele não conseguia decifrar as palavras.
O que definitivamente era muito estranho.
Sempre, realmente sempre, desde que ela se casou com esse infeliz, as brigas nunca foram silenciosas, os barulhos na casa e os gritos eram sempre tão estrondosos que poderiam se ouvir a metros de distância da varanda.
Ele estava com medo. Por um instante a única coisa que pôde ouvir foi sua própria respiração, ofegante, e o seu próprio pensamento, tão pesado quanto um navio inteiro.
Algo estava errado. Uma parte dele sentia isso, a outra torcia para que estivesse tudo bem.
Ele desejou pular pela janela. Mas deixá-la sozinha estava fora de cogitação.
Ele queria descer, mas não podia, havia prometido a ela. Ela o ensinou desde pequeno que uma promessa é a coisa mais sagrada que existe.
O que está acontecendo?, ele se perguntava, mesmo sabendo que não conseguiria respostas por ali.
A tensão daquele cômodo se espalhou pela casa toda, de uma maneira tão brusca que um arrepio correu pela sua espinha.
Algo estava errado. Mais errado que o comum.
Ele travava uma batalha entre seu instinto e a promessa que havia feito.
Com medo, se levantou da cama mais uma vez, mas agora não seria para observar as estrelas.
Um plano? Ele com certeza não possuia um.
A voz de seu padrasto abaixava o tom cada vez mais. As palavras não eram mais perceptíveis, eram apenas murmúrios, que ainda eram encobertos pelo choro de sua mãe.
Aquela cena na cozinha o preencheu com um ódio tão forte que ele apenas avançou naquele homem, que mantinha uma faca na bochecha de sua mãe, cuspindo ameaças e palavras cruéis.
– O que pensa que está fazendo? – o homem parrudo perguntou ao garoto em um tom de deboche. O cheiro de álcool que emanava dele era enjoativo.
Sua mãe tentou protegê-lo, puxando o agressor para mais perto dela, mas ele era forte demais para que ela o aguentasse por muito tempo.
– Por favor... Corra. – ela dizia aos prantos para o filho.
Seu padrasto se desvencilhou dos braços finos de sua mãe, e veio atrás dele, ainda com a faca em mãos.
Ele teve que correr para fora da casa, não sabia como se defender daqui. Ele correu para a floresta, onde teria alguma chance de despistar aquele monstro. Mas aquilo aparentava ser impossível.
As árvores o sufocavam, seu caminho se tornava cada vez mais estreito, não conseguia correr tão rápido quanto deveria.
Seu padrasto não demorou muito para alcançá-lo.
E logo a dor insuportável do metal cortando-lhe a pele e a carne se fez presente. Com a faca posta em seu peito, e o som desagradável da risada de seu padrasto, ele conseguia pensar apenas em como sua mãe ficaria sozinha com essa aberração.
E como se a Lua ouvisse seus pensamentos, um tronco atrás de seu padrasto foi iluminado pela luz dela e ele precisou reunir toda a força que ainda o restava para o empurrar pra lá, onde as algumas pontas de madeira se cravaram nas costas dele, fazendo seu padrasto urrar com a dor. Uma das pontas o atravessou totalmente na barriga, e o garoto sabia que ele não aguentaria aquilo.
– Me desculpe... – sussurrou, e foram as desculpas mais sinceras que disse em toda a sua vida.
Ele se sentiu mal, a ferida em seu peito não doía tanto quanto a dor que sentiu ao fazer aquilo.
Seus olhos se encheram de lágrimas, que ele segurou o quanto pôde, e se virou para voltar para casa.
A porteira aparentava estar tão distante. Ele se movia devagar, tentando conter o sangue, mas conforme ele escorria mais fraco o garoto ficava.
Ele se ajoelhou, não suportando mais o próprio peso graças a imensurável dor que tomava conta de cada centímetro do seu corpo. Seus pensamentos começaram a se esvair, e sua visão se tornou turva.
Uma estrela cadente percorreu o céu, e ele fechou seus olhos com calma.
Após um forte suspiro, ele sentiu que não estava mais sozinho em meio às árvores.
– Vamos, querido. Ela espera por você. – uma voz feminina cortou o silêncio intrigante daquele lugar, e ao abrir os olhos ele enxergou uma silhueta magra, que exalava brilho. Seus cabelos jogados para trás arrastavam-se no chão, mas nenhuma folha ou graveto se prendia nele. A bela moça continha uma expressão gentil, e estendeu a mão para ajudá-lo a levantar.
– Mas... Minha mãe... – ele hesitou.
– Ela ficará bem. – a bela moça o acalmou, com uma voz tão amorosa que ele sentiu que poderia confiar nela.
Ao tocá-la, ele se tornou do mesmo brilho que ela. E pôde sentir o quanto ela era quente, mas tal calor não o machucava. Nenhuma dor existia naquele instante.
– Não olhe para baixo, você pode cair. – ela murmurou de modo suave. E ele sentiu seus pés deixarem o chão.
Ele manteu seus olhos fixos nela não se atrevendo a olhar para baixo, como o recomendado, embora a tentação fosse grande.
Pouco a pouco eles foram alcançando os céus. E em meio a tantos pontinhos de luz, que ao se aproximar se tornavam silhuetas das mais diversas formas, ele pôde reconhecê-la.
O brilho dela era inconfundível.
Fim
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