Capítulo Único


"Os ballrooms são uma arena onde pessoas rejeitadas pela sociedade podem criar sua própria família, onde podem criar sua própria beleza, sua própria identidade."

(Citação de Jennie Livingston, diretora do icônico documentário "Paris is Burning", que explorou a cena ballroom LGBTQIA+ em Nova York.)


       Maria ficou impressionada com o local e suas luzes facetadas e multicoloridas. O ballroom era exatamente como Sandra havia descrito, o que a fez sorrir de satisfação. Ela ajustou a barra da saia enquanto observava atentamente o salão de dança repleto de pessoas. O suor começou a formar-se em sua testa, impulsionado pela batida pulsante da música house que enchia o ambiente. Era a primeira vez que se via em um local tão movimentado, repleto especialmente de queens e admiradores. Respirando fundo, ela se aventurou entre os corpos em movimento, procurando por Sandra, sua amada e guia na casa das kiki.

Finalmente, avistou os cabelos loiros de Sandra próxima à beira da pista, executando uma sequência impressionante de spins e dips em sua categoria Vogue Femme. Esta sorriu, radiante, ao vê-la com sua pele caramelada se aproximando, transmitindo alegria e admiração.

— Minha sistah! Você veio! Estava ansiosa para competir com você na realness! — disse, enquanto acariciava suavemente o rosto da garota.

Maria sentiu-se envolvida pelo olhar apaixonado da loira, que segurou sua mão com firmeza, transmitindo confiança e apoio.

— Não se preocupe, meu anjo. Estou aqui para te guiar. Você brilha como nenhuma outra na pista de dança! — afirmou, olhando profundamente nos olhos dela.

Ela conduziu-a para a pista de dança, enquanto Maria sentia-se envolvida pela aura carismática da amada.

O calor subiu nas bochechas dela, enquanto inúmeros olhos acompanhavam seus movimentos. Sandra começou a balançar os quadris sedutoramente ao ritmo do voguing, convidando-a a imitá-la. A bela morena tentou seguir a fluidez graciosa da parceira, mas se sentiu rígida e desajeitada em comparação. Consciente dos olhares das pessoas ao redor, temia fazer papel de boba.

Um grupo de femme queens bloqueou o caminho delas, avaliando Maria com olhares penetrantes, o que a fez sentir-se desconfortável.

— Parece que encontramos um pequeno obstáculo. — disse Maria, sentindo uma pitada de ansiedade.

Sandra enfrentou-as com determinação.

— Ela está comigo, meninas. — declarou, sua voz firme ecoando pelo salão, enquanto encarava o grupo.

Após uma troca de olhares, se afastaram, permitindo que ambas prosseguissem sem mais interferências. A novata soltou um suspiro e nem tinha percebido estar segurando a mão da outra com força. Tudo, graças à reputação da jovem loira.

A música mudou para uma batida house mais acelerada, impulsionando os dançarinos ao redor a se entregarem a movimentos nítidos e cadenciados em suas respectivas categories.

Sandra virou-se na direção de Maria:

— Você consegue, meu amor! — disse, com um brilho apaixonado nos olhos, antes de piscar para ela, cheia de confiança.

Em seguida, iniciou uma série impressionante de passos, arrastões e giros. Maria lutou para acompanhá-la, tentando se deixar levar pelo ritmo pulsante. Seu corpo começou a se mover por conta própria, a memória muscular assumindo o controle. O suor começou a cobrir sua pele, mas ela não se importava, perdida na música e no movimento.

Pelo canto do olho, notou um círculo se formando ao redor delas. Os espectadores aplaudiam e gritavam, torcendo pelas duas. Ela ousou olhar para Sandra, que estava radiante.

— Você tem talento, querida! — elogiou, com um belo sorriso repleto de admiração e ternura.

O calor inundou o rosto de Maria com o reconhecimento. Talvez ela realmente pertencesse àquele lugar. A música chegou ao clímax e a pequena multidão irrompeu em aplausos selvagens. Ela sorriu, ofegante. Aquele era apenas o começo.

Quando os aplausos finalmente cessaram, se abraçaram com entusiasmo, fazendo a jovem morena estremecer de emoção.

— Você conquistou seu lugar em meu coração, minha querida! — afirmou, enquanto acariciava os cabelos negros e cacheados da parceira.

A jovem sorriu, ainda se recuperando do alto nível de adrenalina. Mas a alegria foi momentânea.

Uma figura alta e musculosa subitamente emergiu da multidão, seu olhar penetrante observava a novata com firmeza. Vestindo um traje impecável, Leroy, o mais respeitado butch da casa dos Johnsons, exibia uma combinação de peças que transmitiam elegância e personalidade. Seu figurino incluía um elegante colete justo, adornado com brilhantes detalhes prateados que captavam a luz, destacando sua postura imponente. Sua camisa de seda negra ajustada realçava os contornos de seus músculos, enquanto suas calças de cintura alta, elegantemente justas, completavam o visual, conferindo-lhe uma aparência sofisticada e poderosa. Complementando o conjunto, um par de scarpin rosa reluzia sob os holofotes, refletindo sua habilidade e dedicação à arte do ballroom.

— Você tem muitas habilidades, isso eu admito! — disse Leroy, empolgado.

Reconhecendo-o como o líder da casa e sob seu olhar, ela sentiu seu coração bater mais rápido. O negro acenou com a cabeça na direção de um grupo de jovens perto da cabine do DJ. Ao seu gesto, uma nova batida ecoou pela house, mas com um tom poderoso. Seu sorriso cintilava com o brilho labial.

— Acredito que você consiga me acompanhar. Deixe-me ver se é capaz, garota. — desafiou Leroy, estendendo a mão com suavidade.

Ela mordeu o lábio, nervosa. Recusar o convite do líder era impensável. No entanto, sabia que não deveria subestimar sua habilidade na pista.

Maria aprendeu a dançar assistindo a vídeos online e replicando os passos sozinha em seu quarto, antes mesmo de conhecer a cultura Ballroom . Sua jornada começou com uma mistura de timidez e insegurança, mas sua paixão pela dança a impulsionou a superar esses obstáculos. Ela praticava incansavelmente, dedicando horas a aperfeiçoar seus movimentos e a expressar-se através da dança.

Preparou-se, apertando a mão estendida de Leroy. Seu toque era firme, eletrizante. O volume da música aumentou enquanto ambos circulavam em sincronia, avaliando-se mutuamente, com os olhares fixos. Leroy desferiu uma série de movimentos de pés incrivelmente rápidos, arrancando gritos exaltados da multidão. Maria balançou os quadris freneticamente, investindo toda sua energia para acompanhar a intensidade.

O suor escorria pela testa dela conforme a música tocava. Com um último desafio, ele mergulhou em uma divisão, concedendo a vitória. Sorrindo, a morena se recostou contra a parede, ofegante. Um silêncio tenso pairava no ar, então um rugido ensurdecedor ecoou pelo ballroom. Estendendo a mão, ele a ajudou a se recompor, enquanto aplaudia com orgulho. Após a música acelerada, a garota tentava recuperar o fôlego ao lado de Sandra. O homem se aproximou com um sorriso orgulhoso.

— Sua realness foi impecável, sistah. Tem um lugar garantido em nossa casa. Bem-vinda à família, irmã! — disse, afetuoso.

Embora tenha recebido elogios por seu talento natural, Maria também enfrentou críticas e desafios ao longo do caminho. No entanto, sua determinação foi como as asas de uma águia, impulsionando-a para além das adversidades. Ela se sentia pronta para enfrentar qualquer desafio que surgisse em seu caminho, inclusive o proposto pelo respeitado líder da casa, Leroy.

Um sorriso radiante iluminou o rosto de Maria, enquanto lágrimas de felicidade brilhavam em seus olhos. Finalmente, ela encontrara um lugar onde se sentia aceita.

Ela dançou ao som da música, celebrando a aceitação de sua nova família de ballroom. À medida que as horas passavam e a energia da multidão diminuía, elas se encontraram nos braços uma da outra.

— Estou incrivelmente orgulhosa de você, meu amor! — gritou acima da música que se dissipava.

Seu coração transbordava de felicidade e admiração, como se fosse uma sinfonia de emoções pulsantes que inundava cada fibra de seu ser, deixando-a envolta em uma aura de pura euforia e profunda reverência.

— E eu estou completamente apaixonada por você! — confessou, olhando-a profundamente, seus olhos brilhando com amor e gratidão por encontrar alguém tão especial como ela.

Um sorriso foi surgindo nos lábios delicados de Sandra, que nada disse, mas Maria sabia ser recíproco. Sorriu, aliviada, mas sua alegria durou pouco ao ver o sorriso da parceira ir sumindo aos poucos, interrompida pelas sirenes da polícia que se aproximavam.

— O que foi, amor? — perguntou ela, confusa.

Inesperadamente, um forte jogo de luzes vermelhas e azuis, em rápida sincronia, invadiu o local, entre os barulhos e a dança; mas infelizmente, dessa vez, não provinham do globo giratório. Vindo da janela, o sinal era claro: a chegada das viaturas policiais, quebrando aquele momento mágico.

Entre sussurros de preocupação, alguém falou, espalhando pânico entre os dançarinos:

— A polícia está aqui!

— Não! De novo, não! — lamentou Sandra.

A música foi silenciada pelo estrondo dos policiais invadindo o local, encurralando os jovens em um canto. Eles já pressentiam as sérias consequências que enfrentar os policiais poderia acarretar.

— Isso é uma batida! Todos contra a parede! — a voz cortante do chefe de polícia ecoou pela sala, aumentando ainda mais a atmosfera de medo e opressão.

Leroy, em toda sua exuberância, não recuou diante da ameaça iminente. Mesmo sobre seus saltos agulha, deu um passo à frente com determinação, desafiando as expectativas e os policiais.

— Com base em que vocês estão nos assediando? Não fizemos nada de errado! — sua voz, firme e destemida, ecoou pelo espaço, demonstrando que sua coragem transcendeu as barreiras da identidade de gênero.

Os policiais, momentaneamente surpresos pela ousadia daquele homem, ficaram em silêncio. No entanto, o oficial à frente da batida, não vacilou.

— Perturbação da ordem pública com seus comportamentos, digamos, nada convencionais! Todos vocês estão sob prisão! — anunciou, sua voz autoritária cortando o ar, demonstrando que não haveria espaço para negociação diante da transgressão percebida.

Leroy colocou as mãos na cintura e se aproximou ainda mais do policial, encarando-o com confiança.

— Por gentileza, defina "nada convencionais"? — desafiou ele, usando os dedos para reforçar as aspas.

Seus olhos brilhavam numa mistura de coragem e indignação.

O policial olhou-o de cima a baixo, respondendo com desdém:

— Toda essa luxúria, essa gente homossexual... não é natural! — sua voz carregada de preconceito repercutiu no ambiente, enviando arrepios pela espinha de todos os presentes.

A hostilidade na sua expressão revelava o profundo despeito arraigado na instituição policial, deixando claro que a luta contra a discriminação seria uma batalha árdua e constante.

— A diversidade não é uma ameaça à ordem pública, policial. Buscamos viver nossas vidas autenticamente, da mesma forma que qualquer outra pessoa. Se isso é considerado um crime, então questiono o que realmente significa justiça nesta sociedade.

— Poupe-me de sua retórica ultrajante! Vocês, com seus comportamentos devassos, desafiam as bases morais dessa sociedade! — respondeu de forma áspera e discriminatória. — Não há lugar para suas perversões aqui, e vocês serão responsabilizados por suas ações!

Maria sentiu a raiva ferver dentro de si. Logo os outros também começaram a xingar e provocar os policiais, que se sentiram ameaçados com todos ali presentes, unidos. Para eles, ali era o seu refúgio, a sua comunidade, e não permitiriam que aquelas autoridades intolerantes destruíssem seus sonhos. Ela fixou os olhos em Leroy e viu que ele compartilhava do mesmo sentimento. Foi quando ele ergueu a mão, pedindo silêncio. Todos se calaram, aguardando suas palavras.

— Nossa casa é um refúgio de amor e expressão, sisters. — declarou, olhando na direção de todos com firmeza. — Vamos mostrar a eles o quanto nosso ballroom é pura arte e glamour!

A jovem morena percebeu a intenção do father e fez sinal para o DJ colocar a música que ouvia escondida em casa e em um movimento determinado, arrancou os saltos e os atirou em direção às luzes piscantes sobre a pista de dança.

— Confie em mim! — sussurrou para Sandra.

Foi então que o negro iniciou uma coreografia vibrante em sua categoria butch, com giros e saltos impressionantes.

Logo as demais queens e mascs se juntaram, dançando com toda paixão. As duas também se entregaram à batida, ignorando os policiais boquiabertos.

— Vamos mostrar a eles do que somos capazes! — rugiu Leroy, enquanto uma nova batida ecoava no sistema de som intensificado.

Como um só, a família do ballroom se uniu, desencadeando uma exibição desafiadora de coreografia imponente que deixou os policiais atônitos. A música pulsante energizava a jovem morena e os outros dançarinos, que colocavam seus corações naquela poderosa demonstração de resistência. O suor escorria pelos rostos, mas a alegria da dança os impulsionava.

A polícia observava em silêncio, cativada pela impressionante manifestação de arte e união. Quando a última nota ecoou, os dançarinos assumiram uma pose final, respirando pesadamente. Um momento de tensão silenciosa se seguiu, até que um dos policiais começou a aplaudir, com um sorriso gradualmente se formando. Em seguida, os outros se juntaram, aplaudindo com entusiasmo. O chefe de polícia, surpreso pela reação de seus subordinados, encontrou-se sem palavras, tentando encontrar uma maneira de contornar a situação.

Maria sorriu para Leroy, sentindo um misto de alívio e gratidão. Todos unidos, tinham defendido seu lar através da linguagem universal da dança. O oficial de polícia deu um passo à frente.

— Confesso que fiquei impressionado. Isso foi realmente incrível! Não vejo motivos para prendê-los, afinal. — falou, constrangido por invadir o local. — Agora entendo porque este lugar é tão importante para vocês! — admitiu, com um tom de respeito genuíno.

— Significa que podemos continuar com nossa arte? — Maria falou com a voz embargada.

— Vocês têm minha palavra. O ballroom permanecerá aberto. Mas é importante manterem a ordem, entendido? — respondeu o oficial, firme, mas com um tom de compreensão.

Ao ouvir as várias afirmações e gritos de contentamento entre os dançarinos, virou-se para os policiais e deu ordem para se retirarem. Antes de sair, dirigiu-se até Leroy e com o semblante sério murmurou:

— Mantenha sua arte viva, ela é poderosa e fundamental. Mas lembre-se, nem todos lá fora entendem e respeitam o que você faz. Esteja sempre atento ao seu entorno e cuide de si.

— Farei o meu melhor, policial. — falou, controlando a vontade de sorrir.

— Você dança muito bem, para um homem de salto alto. — Ele falou com um leve tom de admiração, mas logo retomou sua expressão séria. — Mantenha esses jovens na linha, ok? — disse, dando as costas.

Com um aceno de cabeça, ele se afastou, escondendo sob sua fachada profissional uma admiração genuína pela comunidade que acabara de encontrar e saiu, acompanhado dos demais policiais.

Logo depois da apresentação que encantou até os policiais, Leroy se aproximou das duas jovens, sorrindo.

— Hoje provamos que nosso ballroom é sobre família, amor e respeito!

Maria assentiu, emocionada. Finalmente se sentia acolhida verdadeiramente. Mas sabia que a luta pela igualdade ainda não havia terminado. Precisavam ensinar ao mundo sobre aquela cultura vibrante.

Então, em um ato simbólico, ela pediu que todos se juntassem em um círculo de mãos dadas.

— Aqui dentro, não importa seu gênero ou identidade. Somos irmãos unidos pelo amor à dança.

Sua fala arrancou aplausos. Ela continuou:

— Que nossa família espalhe mensagem de respeito e acolhimento para todos!

Enquanto as mãos se apertavam com carinho, Sandra sussurrou ao ouvido de Maria:

— Sua luz vai iluminar muitos corações, minha amada!

E naquele momento, Maria soube que, juntas, elas e a família do ballroom poderiam transformar o mundo através da arte e do amor.

Após as mãos se juntarem em sinal de união, Sandra segurou suavemente o rosto da outra, perdendo-se em seus olhos. Com a voz suave, carregada de emoção, ela sussurrou ao ouvido da amada, como haviam planejado mais cedo.

— Meu amor, quero que todos saibam que sinto por você. Cada batida do meu coração é um eco do amor que sinto. Um amor que transcende todas as barreiras e desafia todos os limites. Ao seu lado, eu me sinto completa, e é aqui, neste momento mágico, que eu quero proclamar ao mundo inteiro o nosso amor eterno.

Dito isso, Sandra puxou-a para um beijo apaixonado, sob os aplausos da família.

Maria enlaçou os braços na cintura da garota, perdendo-se naquele momento mágico. Seu coração transbordava de felicidade, enquanto a presença da parceira ao seu lado preenchia seu ser com uma sensação de plenitude.

Ao se separarem, elas encararam a família com olhares brilhantes, mãos entrelaçadas como prova do amor que compartilhavam. Leroy falou, sorrindo, com um brilho de orgulho nos olhos:

— Que toda forma de amor sirva de inspiração! Aqui dentro, todos são bem-vindos, sejam quais forem seus corações. É isso que torna nosso ballroom especial, a capacidade de acolher e celebrar o amor em toda sua plenitude! Solte a música DJ! — disse, erguendo as mãos.

E assim, abraçadas, ao ritmo contagiante de "Vogue" (da Madonna) e sob as luzes cintilantes refletidas pelo globo giratório, as jovens apaixonadas, selaram sua união. Naquele momento, envoltas pelo calor dos braços uma da outra, sentiram uma profunda certeza de que, juntas, poderiam levar a mensagem de aceitação, amor e união do ballroom adiante, iluminando o caminho para um mundo mais inclusivo e acolhedor.

Finalmente, após enfrentarem tempestades de preconceito e incerteza, a família encontrou o oásis da aceitação. O ballroom emergiu triunfante das sombras da intolerância, seu espírito rebelde flamejando como uma chama inextinguível, pronta para iluminar o caminho das próximas gerações. Maria, agora envolta na aura radiante da aceitação, descobriu não apenas onde verdadeiramente pertencia, mas também desvendou os segredos do verdadeiro amor, uma força transformadora capaz de derreter até mesmo os mais rígidos véus do preconceito.

(Total de palavras: 2855)

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