EM MEUS PULSOS O AMOR


Despertei de súbito. Eu havia tido um pesadelo horrível. Na verdade, já o vinha tendo há muito tempo. Sempre o mesmo pesadelo. Sempre a mesma realidade!

Minha mãe me deixara quando ainda era muito nova, mal me visitava, e meu pai tinha uma deficiência que me era muito vexatória. Por que eu não podia ter uma família normal? Um pai com quem eu pudesse conversar, desabafar? Uma mãe para quem eu pudesse contar das minhas mudanças, meus segredos?

Eu estava mudando, eu sentia. Crescer não era uma tarefa fácil e eu não podia contar com ninguém. 

Minha vida era terrível... Uma droga... Na escola todos me gozavam devido ao pai que eu tinha e eu vivia tendo de brigar com diversos deles. Garotos e garotas que sentiam prazer em brincar com os demais me deixavam muito irritada. Virei uma garota agressiva e tentava evitar a tudo e todos, principalmente, evitar o meu pai. Era tudo culpa dele!

Tudo para mim era cinzento, eu não via sentido em prosseguir, não havia em quem me apegar. Quando alguém tentava me ajudar isso me angustiava mais! Eu não queria ser alguém que necessitava de ajuda. Queria ter uma vida normal. Ser normal! 

As garotas da minha sala já saíam com outros garotos, que nem me despejavam atenção que não para implicar. Todos me irritavam soberanamente!

Uma vez ouvi que eu deveria me vestir diferente, mas eu não me importava com isso... Era meu modo de fuga! Minha expressividade! Meu jeito de "deixar tudo para lá". Mas, o que me adiantava?

Eu não queria ir para escola, não queria voltar para casa, ficava vagando pelas ruas até tarde da noite. 

Foi quando chegou o dia em que nada mais me irritava. Eu cheguei em um ponto em que a vida me era indiferente. 

Os dias foram se passando e eu já não queria reagir. Já não me alimentava, não estudava, não dormia, não discutia... Percebi que nada mais valia a pena. Eu não tinha ao que me agarrar. Então, decidi dar um fim ao meu sofrimento.

Usei de um canivete em uma noite em que passei mais um aniversário sem receber nada de ninguém. Cheguei em casa disposta a fazer o que faria. Meu pai pareceu sentir que algo estava diferente, pois me abraçou como há muito tempo não fazia. Pensei que seria alvo de mais discussões, que na verdade já não me importavam, mas não foi assim. Desvencilhei-me dele e marchei, em câmera lenta,  ao meu subterfúgio. Nada mais notei. Nada mais me importou...

Fechei a porta e, antes de me encerrar, fitei-me no espelho. Eu costumava evitá-lo, pois não conseguia ver nada de bom refletido nele, mas naquele dia foi pior. Vi minha expressão cadavérica, meu óculo em sangue, meu orbicular enegrecido, minha boca desnutrida, meus cabelos emaranhados, um semblante obscuro... Era a morte! Eu estava pronta para ela. 

Peguei o canivete e, trêmula, executei minha tarefa.  Senti como se fosse uma picada de abelha. Encerrei os dois punhos sem demonstrar qualquer reação e logo senti o véu da morte me envolver... Apoiei-me ao chão, observando, o quanto pude, o sangue de mim se esvair. Era o fim! Meu terrível fim! 

***

Despertei novamente de súbito. Tive o mesmo pesadelo... Outra vez... E outra vez... Mas, aquele era mais real do que qualquer outro!

Minha visão estava turva e eu apenas via uma forte luz a minha frente. Eu nada ouvia, mas aos poucos os sentidos foram retornando e eu fui me lembrando do ocorrido. Eu estava no hospital, em uma maca. No entanto havia outra do meu lado...  Era meu pai! O que ele fazia ali? Eu não estava compreendendo... Ao contrário de mim, ele estava com alguns eletrodos e tinha um monitor ligado a eles. 

Uma enfermeira apareceu e me recepcionou. Logo a interpelei:

- O q.que aconteceu? - Minha voz saíra trêmula, exitante.

A profissional abaixou a expressão e, de modo triste, falou-me:

- Eu sinto muito...

Naquele instante alterei-me os sentidos . Para minha desgraça não senti o véu da morte me encobrindo novamente, eu estava vendo tudo o que não queria ver. Estava vendo muito mais cores do que jamais vira, cores tão fortes que me ofuscavam, que me envolviam, me cegava, me ensurdecia. Ainda assim, escutava um uníssono muito distante. Logo ele foi ficando mais alto. Levei as mãos aos ouvidos tentando me tirar a dor do falsete... Era um único grito! Era o meu grito que estava me cegando, me ensurdecendo, me paralisando, me consumindo!

***

Meu pai deu a vida por mim... Eu não sabia o que seria da minha dali para frente, mas senti que devia prosseguir por ele. 

Eu o velei e enterrei. Não haviam muitas pessoas, mas pouco as notei. Minha mãe apareceu, falou algo de voltarmos a morar juntas, mas eu pouco liguei ou lhe notei. Queria apenas caminhar naquele dia ensolarado, naquele campo verdejante, no qual pássaros cantavam e uma brisa leve me refrescava a face que já não chorava, nem se franzia.

Afastei-me das pessoas e caminhei pelo cemitério que me proporcionava certa calmaria abstrata. Eu nunca havia sentido tanto paz... Ele estava comigo. Não voltaria, mas estava comigo. Meu pai estava comigo! Assim fiquei repetindo enquanto caminhava, fitando as cicatrizes em meus punhos, que já estavam cobertas em uma tatuagem com uma frase que meu pai me escrevera em sua carta final: "Sorria, minha Aiko!" 

Caminhando em direção ao sol que surgia, eu sorri.

FIM


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