COR DA DOR

Texto de okeNoctis

Conto Vencedor do "Concurso 17: Multiverso"

*

SINOPSE: Uma distopia que encarna tentações; a visão do Mal idealizando democídio, maquinando a Morte e propagando Trevas.

Do âmago surge o desejo mais puro de tudo o que se regozija com a Vida.

7 Vidas.

7 Pecados.

Carmesim dispersado,

Carmelo florido,

Carpe equivocado.

O começo do fim assombra Cain.

*

Capítulo I – Adonis

Dou um passo, depois mais outro, e outro. O espaço em minha volta se distorcia exponencialmente para dar lugar à uma planície de mato enferrujado, algumas árvores nuas enegrecidas, e ao fundo uma construção trivial e deteriorada. Ainda mais ao fundo, tão desfocada pela distância, havia uma torre.

«Bem-vindo, espero que aproveites nossas regalias.», uma voz infantil destimbrada ressoava em minha mente; ao procurar em volta vejo uma espuma amarelada pousada num galho alto. Tinha uma forma humana abstrata e deformada que partiu numa velocidade tal que gerou uma ventania instantânea antes que eu pudesse replicar. Neste momento, a torre distante badalou, marcando a primeira hora, uma nota nefasta.

Limitado como estava, sem nada além das roupas e um telemóvel morto, tomei a decisão que me parecia mais sensata e caminhei em direção à construção. Não percebi a passagem do tempo; o que me pareceu alguns segundos foram na verdade sessenta minutos, e a torre marcou a segunda hora. Outra figura surgia, de cor violeta e uma suave voz feminina «Estás perto...satisfatoriamente perto. Irás amar o que te espera lá dentro.», e fugiu com a mesma velocidade.

Partindo da construção, surgiu uma cerca branca não muito alta que formou um círculo com aproximadamente um quilômetro de raio em minha volta, e a torre anunciou a terceira hora. Depois destas, mais duas figuras apareceram, uma vermelha e outra verde, sempre fazendo comentários ininteligíveis; e a torre permanecia badalando a mesma nota a cada hora. Continuei a caminhar, e como estava já bem perto, me escorei em uma das árvores para descansar, observei a quinta figura, acastanhada desta vez, passar lentamente diante de mim enquanto me encarava com olhos inexistentes. Fiquei ali até a próxima hora, e agora de cor púrpura, passou outra também lentamente, entretanto não parecia me notar.

Dei mais um passo, depois mais outro, e outro, e alcancei a porta de madeira corroída da construção, a torre badalou, se passaram seis horas. Adentrei e encontrei nada, escuridão e silêncio consumiam o lugar, o ar gélido fétido me provocou calafrios; na parede oposta, um par de olhos com um brilho alaranjado me fitava. Supus ser uma criatura enorme dada a altura em que estavam os olhos, fazendo meus sentidos se aguçarem. Chutei a porta a fim de parti-la e consegui um pedaço pontudo de madeira que me serviria como arma, caminhava meticulosamente até a criatura, e à medida que me aproximava, esta começava a se afigurar, mas antes que pudesse ser completamente perceptível sou interrompido por um baque que veio por trás. Me viro bruscamente e sou confrontado com outro nada...apenas...ondulados...carmesim.

«Cain...Cain, levante-se, vamos!» ouço uma voz áspera. «Ele está completamente embriagado, não consegue caminhar», disse uma segunda voz, mais grave.

Aos poucos minha visão se recompôs e pude assimilar duas cabeças excessivamente próximas. Me endireitei num sobressalto indagando «É carmesim...! Vistes o carmesim ondulado? Hic.»

«Caminha calado, seu crápula. Theodore, vamos levá-lo para minha casa, é mais perto. Liga o carro.», logo fui arrastado forçadamente, combalido demais para reagir.

Desperto devido à uma claridade ofuscante num ambiente familiar; estava na casa de meu amigo, Yan. Tento recordar penosamente o dia anterior, desde a hora em que saí de casa para ir ao bar, quando fui expulso enquanto bêbado de lá, das figuras humanas abstratas e os ondulados cabelos carmesim. Depois de um esforço também me lembrei dos meus francos amigos a me resgatarem. Levanto-me atordoado por uma cefaleia intensa e chego à sala-de-estar onde eles estavam, Yan e Theodore serviam-se de um chá exalando fumaça.

Assim que me notam, uma seriedade anômala domina seus semblantes. Yan se aproxima, me oferece a xícara que acabara de servir e me direciona ao sofá; depois de nós os três nos acomodarmos, iniciei a conversa: «Desculpem por ontem. Agradeço por sempre me ajudarem desta forma, mas não posso prometer que irei parar. É doloroso demais.»

«Nós sabemos, Cain.», é claro que sabiam, eles acompanharam tudo. Quando minha esposa me traiu e, depois que meu chefe morreu em um acidente e eu perdi meu emprego, reapareceu grávida. Morreu durante o parto, e o desgraçado cúmplice do adultério me cobrou pela vida da criança através de ameaças maçantes, daí quebrei um braço numa contenda e perdi meu carro. Em todos estes momentos, eles estavam lá, eu era realmente muito grato.

«Cain, precisamos que nos conte detalhadamente o que fizeste ontem.», continuou Theodore, um homem alto com uma voz grave, barba e cabelos negros. Respondi naturalmente, bebi até não me aguentar e vaguei sem rumo até eles me encontrarem, o decurso normal de um odre. Terminado meu depoimento, eles se entreolham sem disfarçar a tensão que sentiam.

«Cain, escute bem, onte-», Yan, interrompido pelo som da campainha, demonstra uma intensa inquietação, discrepando de sua natureza usualmente calma. O homem na porta era um policial que parecia habituado com o lugar dado a forma casual em que adentra a casa de meu amigo. «É este o homem?», pergunta me olhando com um desprezo evidente.

«Sim, sim, é ele.» responde Yan, com uma gota volumosa de suor escorrendo em sua testa.

O cenário que se seguiu foi tão frenético e caótico que não pude raciocinar sobre a situação em que estava. Na delegacia local, um detetive de aparência robusta me interrogava sobre a morte de sete pessoas que foram assassinadas na noite anterior, seus corpos foram descobertos no edifício decrépito onde fui encontrado.

Capítulo II – Prometheus

Uma mesa pequena numa sala pequena e dois assentos desconfortáveis ocupados por duas almas ainda menores. Isso é tudo o que foi preciso para trazer o sentimento mais abissal que alguma vez já senti. Era como apertar estoicamente um balão sem estourá-lo, era pesado e ao mesmo tempo vazio. Sentia a culpa de um pecado que não cometi, mas a agonia da acusação me fazia acreditar que, em algum momento, cheguei a cometê-lo.

A pequena alma do outro lado me perscrutava com um olhar impassível. «Eu preciso apenas da verdade, Cain Keller, só a verdade; eu te garanto que será o melhor para todos, inclusive tu.»

«Eu não me lembro, e o pouco que recordo já descrevi inúmeras vezes.», minha voz estava trêmula e rouca, aflita pela angina que sentia. O detetive encarregado do caso possuidor da alma pequena que me encarava do outro lado suavizou seu semblante, fez um sinal para os figurantes presentes na sala se retirarem, e depois que o fizeram continuou. «Eu acredito em ti, Sr. Keller, mas também tens de ver pelo meu ponto de vista. Foste encontrado a dormir na porta de um lugar onde jaziam sete cadáveres.», jogou uma papelada sobre a mesa e tomou um ar mais resoluto «As investigações apontam que as mortes se sucederam em intervalos de uma hora, o primeiro às oito da noite, o segundo às nove e assim por diante até as duas da madrugada. Tu foste encontrado às três horas na situação descrita, segundo o depoimento dos teus amigos.», fez uma pausa, saiu da sala e voltou com uma jarra de água numa mão e um copo de vidro vazio na outra; sedento como estava, não recusei a água servida.

«Os três primeiros não possuíam cabeças, na verdade estavam completamente corroídas. Foram encontradas reservas de fluorantimônico em recipientes de teflon no local, sabes o que isto significa?», gesticulei negativamente observando as fotografias a serem passadas «Claro que não!», continuou, «Todos eles apresentam sinais de envenenamento, e todos estavam desaparecidos há três dias, sabias disto?»; por mais uma vez, eu neguei, e o silêncio que surgiu aumentava a intensidade junto com minha ânsia, tudo girava e triplicava no meu campo de visão; mas eu não desviei o olhar dos registros funestos sobre a mesa pequena, e a sala já minúscula encolheu, e me espremeu até meus fluídos deixarem meu corpo, meu golfo continha toda a comida que não ingeri e um pouco de minha alma.

«Tenha calma, respira. Aqui, pegue.», o detetive me ofereceu outro copo d'água, «Eu acredito em ti; o Yan é um conhecido meu e já me informou do teu álibi, por tu seres um bêbado desagradável, temos vários testemunhos sobre tuas andanças de ontem à noite. Tu serás liberado, entretanto recomendo que tenhas cuidado com o que fazes até o caso ser resolvido, dado que ainda és suspeito.»

Quando finalmente saí da delegacia, a lua alta no céu brilhava tão intensamente que não sei se era o seu brilho ou o da cidade que apagava as estrelas. Já não havia transportes públicos a rondar, pensei em chamar um táxi, mas desisti; afinal me apetecia uma caminhada depois de várias horas sentado desconfortavelmente, duraria cerca de uma hora e meia.

Cruzei alguns becos e parques habilmente em busca de atalhos, uma vez que era habituado com o local, e sempre que o fazia, observava meu reflexo nas janelas dos carros estacionados à beira da calçada. Havia muitos, presumi que era por causa da hora tardia. Era um cenário noturno ebúrneo, via-se algumas pedras de gelo se acumularem nos para-brisas, e o meu reflexo, que passava carro por carro, era tão pálido quanto elas.

Dentro de quinze minutos estaria dentro do meu quarto. Seria apenas minha cama enferrujada, um guarda-roupa com um espelho partido, as paredes brancas mofadas, cigarros e um violão sucumbido. Era tudo o que almejava no momento, mesmo assim sou atraído pela ruela à esquerda da entrada do edifício onde morava. Caminhei até o final e encontrei nada, apenas o que sempre estivera lá, a parede alta marcando o limite e uns gatos de rua procurando proteção contra o frio em vão.

Tracei o caminho de volta para a entrada, entretanto não entrei sem antes dar uma última olhadela, e então eu vi.

Um par de olhos gélidos refulgentes.

Ondulado cabelo carmesim.

E outro nada.

Capítulo III – Kairós

Uma fumaça surgia a cada fôlego devido ao frio enquanto corria; eu não sabia aonde ia, mesmo assim o destino me parecia inexplicavelmente óbvio. Adentrei o portão de uma casa abandonada, cruzei o espaço baldio que seria o jardim e arrebentei a porta da entrada. Não havia tempo! Enrolei meu casaco na mão direita, estilhacei a janela de vidro fosco que havia e agarrei a lasca mais afiada. As gotas de suor que fluíam em meu rosto começavam a pingar junto com a neve lá fora.

No quarto desolado iluminado apenas pelo luar, vi um cenário semelhante a um corvo enorme tentando devorar uma pequena pomba. Suas enormes mãos peludas enroscavam o pescoço da criança, e o apertava. Caminhei silenciosamente até ele, os únicos sons ressoando eram um grito abafado e o grasno diabólico do homem. Cravei a lasca de vidro em seu pescoço e oscilei lentamente, assisti contentemente seu semblante se contorcer em desespero, depois em dor e por fim, em derrota, ou quem sabe, arrependimento.

Olhei para a menina aterrorizada a tentar se recuperar, tinha tênues fios alaranjados sobre a cabeça e seu vestido branco estava tingido de vermelho. «Está tudo bem agora.» estiquei o braço e a circundei, ela afoga sua cabeça em meu ombro esquerdo entre soluços intermitentes. Acariciei sua cabeça até se acalmar, «Eu estou aqui, papai está aqui agora.»

Um par de olhos alaranjados emergiu das sombras e se afigurou em uma venusta figura feminina com longos cabelos carmesins cobrindo seus ombros, «Obrigada», sussurrou antes de desaparecer novamente para dar lugar à uma cacofonia de sirenes e luzes. Era a polícia. Fechei os olhos em preparação ao que estava por vir. Sabia que desta vez eu seria acusado justamente, mas não sentia culpa; em vez disso sorria e beijava a testa da criança que se refugiava em meu colo.

Fico em alerta ao ouvir sons de passos se aproximando, e me surpreendo com o que vejo. Era Yan, Theodore e o detetive que entravam ofegantes. «O carro está lá fora, sairemos pelos fundos.», Yan orientava-se freneticamente enquanto retirava a criança dos meus braços. Em um instante, estávamos dentro do carro, eu à frente com o detetive na direção, e o resto nos bancos traseiros. Não ousei dizer nada durante a viagem até àquela construção onde tudo começou, eu apenas acompanhava o cenário que decorria. Em dada altura, o detetive ligou o rádio: "O homem que fora suspeito de ter matado sete pessoas na noite anterior é pego em flagrante, reportado pela vizinhança, a cometer mais um assassinato, e está agora marcado como fugitivo. Das sete vítimas anteriores, três delas, que foi descoberto serem seus ex-colegas de trabalho, foram mortas com ácido, e outras três eram médicos que participaram de um parto da ex-esposa do fugitivo. Todas as vítimas apresentam sinais de envenenamento por cianeto, supõe-se que foi causado por um medicamento em comum que tomavam, fluoxetina, que foi adulterado. Está agora a ser investigado o desaparecimento de uma criança que supostamente está relacionado ao caso...".

Ao chegar, Yan e Theodore vão à frente levando a menina enquanto eu permaneço no exterior com o detetive, questiono o motivo do impedimento e ele responde com um olhar impassível: «Espera e verás.». Lá dentro estava a donzela carmesim à espera; todos os quatro unem as mãos formando um círculo, e desaparecem magicamente. Neste momento, o relógio badalou, não a oitava, mas novamente a primeira hora. Estupefato, me viro para o detetive que já adivinhara meus pensamentos.

«Eles não deveriam estar aqui, e tu também não. Eles vieram traçar para ti um caminho de volta. Nunca existiu um Yan, Theodore, e tampouco Cain; ao menos não existiram aqui. Vós sois todos Keller.», me observou mantendo sua postura sempre impassível, «É melhor nos apressarmos.», dito isto, os carros tumultuosos da polícia aparecem, «Olha para o alto, Cain.»

Sou confrontado com um nada, já havia me acostumado; contudo desta vez era tão níveo que me encegueceu. O lugar onde reapareci era completamente branco, como se o mundo ainda não tivesse sido pintado.

«Quem és tu?», perguntei ao detetive, a única imagem perceptível naquele espaço desfeito.

«É uma ótima pergunta inicial. Em algumas vidas, eu sou seu pai, nesta eu sou teu bisavô. Sou pai do Yan Keller. Podes me interpretar como um ancestral, mas eu prefiro o termo viajante. Mais perguntas?»

«Onde estou?»

«Fora dos domínios do Universo, aqui não existem leis, aqui é o Vazio, alguns o chamam de pós vida. Não sabes o quão trabalhoso foi trazer os outros Kellers para cá. Tu não devias estar aqui ainda, então estamos te ajudando a voltar.»

«Sete pessoas morreram!», protestei com irritação.

«Sim, sete almas foram necessárias para que pudesses estar no lugar certo e na hora certa. Agora não desperdices esta oportunidade de voltar. Cain, olhe para mim.», eu olhei, e vi a mim. Um reflexo. Outro eu.

Capítulo IV – Ambrosia

Minha visão triplicada se convergia, algumas vozes ecoavam intensamente em minha mente, todo o meu corpo doía. Gradualmente, recuperei meus sentidos ao ponto de conseguir distinguir a mulher que chorava histericamente sobre meu peito, seus fios de cabelos loiros acariciavam minha face. Era a minha esposa ali aos prantos esperando meu retorno.

«Mamãe, não chores, o papai acordou, então não chores mais.», um segundo choro mais estridente ressoava, era uma menina com bochechas rosadas salientes e cabelos ardentes, era ela. Minha menina carmesim.

Eu estava de volta, acordei do meu coma para viver uma vida feliz à custa de sete outras.

FIM.

Escrito por Mayra V. M.

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