Aquilo que o inspector Linden encontrou no caminho para casa

Texto de llamswritter

Sinopse: A guerra é um acontecimento terrível. Mesmo que esta acabe, as cicatrizes e os danos que servem como prova da sua existência ficam bem visíveis por décadas.

Já faz quase um século que a guerra entre o Império e a República terminou, mas as cidades fronteiriças ainda apresentam danos e a população ainda não conseguiu deixar as memórias morrer. Linden não tem idade suficiente para saber mais do que aquilo que as histórias e as lendas contam sobre essa altura, mas aquilo que ele encontra certa noite ao voltar para casa vai acabar por revelar pormenores muito mais sujos do que ele alguma vez sonharia saber.

*

Capítulo I.

— Vou andando. Bom descanso, rapazes.

— Bom descanso, Inspetor!

Linden apertou a gola do casaco ao sair da esquadra da polícia. Era de madrugada e fazia um frio dos Diabos naquela cidade dos confins da República.

Caminhou com as mãos nos bolsos pelas ruas desertas, pensando que se tivesse aceitado a promoção no ano anterior, estaria atualmente noutra cidade a percorrer estradas com pontos de aquecimento para a população nas fachadas laterais de quase todos os edifícios. Em vez disso, estava ali, a tentar regressar ao conforto do seu lar o mais depressa que lhe fosse possível, serpenteando por entre prédios baixos em mau estado de conservação, alguns até parcialmente destruídos.

Na entrada de um dos becos que normalmente utilizava como atalho para chegar a casa, Linden parou. Estava um corpo no chão, especialmente visível pelo reflexo de luz natural que o acariciava.

O inspetor tirou a arma do coldre e aproximou-se devagarinho.

— Consegue ouvir-me?

Quanto mais perto do corpo, melhor era o seu entendimento da situação. O corpo era muito pequeno, com a compleição física semelhante ao de uma criança. Não havia fluídos ou sangue visíveis no chão e, tanto quanto lhe parecia, o corpo não tinha nenhuma ferida particular.

Linden agachou-se e recolocou a arma no coldre. O rapazinho à sua frente parecia apenas desmaiado, numa posição que indicava que viera a rastejar da sua direita. Dirigindo os olhos nessa direção, o inspetor encontrou um buraco na parede do edifício que não estava lá quando ele passou por ali para chegar ao trabalho de manhã.

A sua curiosidade sobre aquele buraco era grande o suficiente para o investigar imediatamente, mas Linden deteve-se. Em vez disso, pegou cuidadosamente no corpo estendido a seus pés, pronto a carregá-lo para um médico. A saúde de alguém, especialmente tão novo, era mais importante que um mistério. Voltaria ali mais tarde para perceber o que raio era aquilo e como é que tinha ido ali parar.

O inspetor ergueu-se, carregando o pequeno rapaz no colo. Contudo, antes de se afastar, o som de algo a cair no chão chamou a sua atenção. Olhando sobre o ombro, encontrou um pequeno aparelho que não lhe era, de todo, familiar.

— E a trama adensa-se... — murmurou, antes de pegar no objeto e dar meia volta no beco, caminhando em direção à clínica do Dr. Fisht, três portas ao lado do seu normal posto de trabalho.

Capítulo II.

— Fisht! — gritou Linden, batendo com o joelho na porta da frente do consultório por causa das mãos ocupadas. — Acorda, Fisht!

As luzes do andar de cima continuaram apagadas. Impaciente, o inspector ajoelhou-se o melhor que pode com o corpo da criança nos braços e afastou o vaso de plantas mortas na esquina do alpendre. Em seguida, retirou uma placa do chão que imitava a pedra do mesmo e destapou um painel, no qual inseriu um código numérico de 10 dígitos. Segundos depois, a porta na qual tinha estado a bater abriu com um click e o inspector apressou-se a recolocar a tampa e o vaso no sítio antes de entrar no edifício.

O interior estava escuro, mal dando para ver mais do que poucos metros à frente do nariz.

— Luz!

Todas as luzes do teto daquele andar acenderam, iluminando a sala de espera onde Linden se encontrava e as salas de exames para lá dela.

Sem cerimónias, o inspector avançou até a uma sala lateral no fundo do corredor, mesmo de frente para as escadas que conduziam ao andar de cima. Enquanto Linden colocava o corpo sobre a mesa central e ligava luzes e aparelhos, um reboliço e um estrondo vindos do andar de cima preencheram o ambiente do consultório, sobrepondo-se aos sons mecânicos e eléctricos das máquinas.

— Quem é que pensas que és para entrares aqui a estas horas? — perguntou uma voz rouca minutos depois.

Linden parou de programar a máquina de diagnósticos universal (MDU) e encarou o homem careca na ombreira da porta.

— Eu dou-te um formulário para apresentares queixa mais tarde. Agora preciso que percebas se está vivo ou morto.

Os olhos do cirurgião-mecânico caíram no corpo infantil deitado na mesa abaixo do sensor de diagnóstico. Esquecendo a sua fúria e o mau humor por ter sido acordado a meio da noite por um homem que não respeita horários de sono, Fisht avançou para o terminal da MDU.

— Nem sabes se está vivo? É humano, androide ou ambos?

— Não faço ideia, Jay. Estava desmaiado no beco que eu uso para chegar a casa. Pela posição em que estava e pelo facto de que não estava lá hoje de manhã, deduzo que se estiver morto, morreu há pouco tempo.

Jay Fisht encolheu os ombros enquanto tomava o seu lugar ao computador do outro lado da sala.

— Sabes que não gosto nada quando me trazes cadáveres para a autópsia — confessou com um suspiro. — Mas mais alguns segundos e ficamos a saber se preciso, ou não, de apresentar queixa desta vez.

O cirurgião-mecânico era médico tanto de humanos como de androides e cyborgs, estes dois últimos reconhecidos como habitantes da República há poucas centenas de anos. Dedicava-se a curar os vivos mas, dada a sua formação profissional, a esquadra no fim da rua pedia-lhe ocasionalmente que substituísse o patologista de serviço.

— Devia era mudar-me — sibilou Jay por cima do som das máquinas em funcionamento. — Teria menos trabalho, mas pelo menos conseguia dormir noites inteiras....

Fisht deu uma volta na cadeira e olhou o ecrã do computador à sua frente quando este emitiu um ruído que indicava que o diagnóstico estava completo.

Linden estava a examinar o objeto que tinha apanhado do chão junto ao corpo enquanto pensava, pelo que se assustou quando o colega caiu da cadeira de repente com um estrondo capaz de acordar a vizinhança inteira.

— Que os cães do Império me mordam....

Capítulo III.

Linden encarou Fisht, que fixava o relatório de diagnóstico com os olhos arregalados.

— O que foi?

O inspector Brittia guardou o objeto no bolso e aproximou-se, colocando a mão no ombro de Jay para espantar o seu choque. Este colocou-se de pé com um salto felino e puxou do ecrã do computador o esquema do corpo da criança na sua mesa de observação, projetando uma representação detalhada em holograma.

— Nunca tinha visto um ao vivo... — murmurou, perdido em pensamentos.

— Um quê?

Fisht não respondeu e fez zoom na zona torácica do holograma, analisando o pedaço que apresentava uma cor mais escura que o resto da projeção.

— Um humanoide — respondeu depois de estudar o holograma, precipitando-se para o corpo na mesa.

Linden arrepiou-se com a menção. Para ele, humanoides eram coisas de lendas. Contudo, olhar para o diagnóstico da MDU não deixava margens para dúvidas, já que havia tanto de humano como de máquina naquele rapaz. Aquilo era tecnologia que precedia a guerra com o Império, e que tinha sido banida por inúmeras razões — sendo a maior delas o facto de serem um verdadeiro meio termo entre humanos e androides. Ao passo que os cyborgs são humanos que precisam de peças mecânicas para substituir partes do corpo que deixaram de funcionar, os humanoides eram androides que necessitavam de partes humanas na sua criação. Segundo diziam as más línguas, era para poderem ter uma alma e personalidade própria.

Fisht agarrou uma tesoura para cortar a camisola preta que cobria o corpo do seu paciente.

— Está vivo?

— Está quase morto, para dizer a verdade. Os órgãos humanos já deixaram de funcionar há anos, mas os órgãos artificiais do circuito complementar ainda estão operacionais, apesar da fuga no cabo de alimentação lateral.

O cirurgião-mecânico cortou a camisola negra, expondo o peito liso coberto de pele sintética, tão realista ao ponto de ninguém ser capaz de dizer que aquilo não era humano na sua essência. Contudo, antes de trocar a tesoura por um laser que abrisse o peito do humanoide, Jay parou o movimento das mãos sobre o tecido.

— Toma! — disse, atirando o que restou da camisola para as mãos de Linden. — Vê isso. Era um dos nossos.

O inspetor Brittia percorreu o tecido negro com os dedos até sentir o relevo do antigo brasão da República. Nos tempos da guerra era costume usar identificações discretas como aquelas, especialmente entre os espiões.

— Vês-me o holograma outra vez? — pediu Fisht, com as mãos dentro do peito do humanoide.

Linden pousou o tecido e aproximou-se da projeção.

— O que queres que procure?

Jay resmungou de frustração antes de esguichar alguma coisa para o campo cirúrgico.

— Sabes qual era a particularidade dos humanoides usados na guerra que os tornava os espiões perfeitos? Aquilo a que chamam de Diário de Memória — disse, sem dar tempo a Linden de responder à pergunta formulada. — Sim, tinham mais força ou agilidade que nós ou os androides e camuflavam-se perfeitamente em qualquer exército porque pareciam humanos até ao mais ínfimo detalhe. Porém, eles eram verdadeiramente extraordinários porque tinham a capacidade de armazenar memórias fora do seu próprio corpo. O indivíduo deixava de ser importante para transmitir informação fidedigna. Desde que se tivesse o Cérebro Externo, os soldados podiam ser descartados.

— Útil mas...

— Condenável.

— Exato. — Linden olhou o colega. — Queres que veja se ele ainda tem Cérebro Externo com ele?

Líquido foi projetado em todas as direções antes do Fisht começar a selar a fenda que tinha feito no peito do humanoide com aparência de criança.

— Por favor. Deve estar na base da nuca.

Linden apertou o objeto no bolso com uma mão e fez zoom na zona indicada.

— Pelo holograma... não está no corpo dele. Mas não te preocupes — Jay olhou para o inspetor com desconfiança e Linden dirigiu-lhe um sorriso pretensioso ao retirar o que escondia no bolso. — Porque acho que o tenho comigo. É isto, não é?

Capítulo IV:

Fisht arregalou os olhos enquanto limpava as mãos num pano.

— Linden, eu era capaz de te beijar neste momento!

— Eu agradecia que não o fizesses — respondeu o inspetor Brittia ao entregar o pequeno dispositivo ao amigo. — Mas isso é o Cérebro Externo, certo?

Jay levou-o a uma lupa.

— Em comparação aos que havia na faculdade da Capital... acho que sim. Não há garantias que seja o dele, mas pelo menos é um. — O cirurgião-mecânico voltou-se para Linden. — Só estudei os humanoides na faculdade por razões puramente históricas... Nunca pensei que fosse ter um deles no meu consultório!

Linden olhou o corpo deitado na mesa.

— Como é que ele está?

Jay colocou o Cérebro Externo em cima da mesa e dirigiu-se a um armário.

— Estável. Não me parece haver nada de errado com os órgãos artificiais, por isso acho que está vivo. O problema é que o meu conhecimento da anatomia e da fisiologia de humanoides é limitado. Não sei se e quando é que vai acordar. — Fisht pendurou 2 contentores num suporte da MDU e ligou-os ao corpo. — Vou dar-lhe sangue e fluídos, pelo sim, pelo não. Só espero que nada tenha mudado na constituição dos fluídos dos androides no últimos 70 anos, se não vamos ter problemas.

Linden apanhou o Cérebro Externo da mesa e os dois seguiram para apartamento no andar de cima.

— Café?

— Não, obrigado. — O inspector sentou-se no sofá, rodando o objeto nos dedos. — Esta coisa consegue dizer-nos o porquê do humanoide ter saído do buraco agora, ao fim de tanto tempo?

— Duvido. Isso só deve ter memórias mais antigas.

— Presumo que tenha sido por já não ser capaz de sobreviver muito mais tempo lá dentro, mas gostava de confirmar...

O inspector Brittia ficou silencioso por uns momentos. Podia reportar à Capital as suas descobertas, mas alguém do Departamento Interno tirá-lo-ia do caso num piscar de olhos e ele nunca mais voltaria a ver o humanoide e o Cérebro Externo, ou sequer ouviria sobre os novos avanços naquela investigação.

A curiosidade que tinha em relação àquele mistério era já tão grande que quase lhe fazia urticária. Tinha de manter aquilo em segredo. Felizmente, confiava o suficiente num punhado dos seus colegas para considerar distribuir-lhes tarefas. Precisava de alguém que conseguisse desenterrar os relatórios do que aconteceu aos últimos humanoides durante e depois da guerra e de outra pessoa para investigar o buraco de onde a criatura saiu.

— Dá para aceder ao conteúdo? — perguntou, levantando o objeto no ar.

Jay bebeu um grande golo do seu café fumegante.

— Se me arranjares tecnologia de há 70 anos atrás, sou capaz de conseguir qualquer coisa. — O médico foi ao escritório pessoal e voltou depois com livros e cadernos de apontamentos. — Os Cérebros Externos têm um sistema de proteção com palavra passe para impedir que as informações caiam nas mãos erradas, mas o nosso exército desenvolveu contra-medidas para conseguir extrair o conteúdo dos Cérebros dos espiões do Império. Vai levar tempo, mas com algumas horas de estudo e o equipamento certo, sou capaz de conseguir ver as memórias aí guardadas sem deixar que o mecanismo de defesa corroa isso com o ácido que está aí dentro.

Linden roubou uma caneta e um bloco de notas do monte sobre a mesa à sua frente.

— Faz-me uma lista. Eu arranjo-te o que conseguir.

Jay obedeceu.

— Claro que tudo isto seria muito mais fácil se o humanoide acordasse e nos dissesse a palavra que permite aceder às memórias.

O inspector trocou o Cérebro pelo pedaço de papel.

— Não me parece que tenhamos essa sorte. — Linden levantou-se do sofá. — Volto daqui a umas horas. Não abras a porta do teu consultório a mais ninguém.

— Nem precisas de mo dizer. Só volto a trabalhar quando chegarmos ao fundo disto.

O visitante assentiu e saiu da casa do amigo com se fosse apenas uma sombra.

Capítulo V.

O buraco de onde o humanoide tinha saído, que nada mais era que um cubículo minúsculo atrás de uma parede falsa e que estava selado por dentro e por fora há décadas, estava vazio. Pela teoria de Linden, o rapaz escondeu-se ali quando o Império tomou aquela cidade e, por alguma razão, não chegara a ter noção que a República tinha voltado a empurrar a fronteira entre as duas nações para o seu lugar original, a sudoeste.

Demorou duas semanas de subornos, contrabandos e reuniões clandestinas para conseguir a tecnologia necessária para aceder ao Cérebro Externo. Linden tinha tido dificuldade em encontrar um colecionador ocioso que tivesse uma CODERU funcional, mas agora o Jay tinha tudo o que necessitava para aceder ao que estava no Diário de Memórias.

— Conseguiste mais algum relatório, Kam?

A mulher nem se importou com o bafo perto do ouvido e continuou a teclar.

— Não. A última coisa que li foi que desligaram o circuito artificial dos sobreviventes e que deixaram os órgãos humanos a trabalhar até ao fim do seu período de vida. Não encontrei nada sobre o que aconteceu aos prisioneiros de guerra nem aos soldados que não foram recuperados.

Linden suspirou e olhou sobre o ombro quando bateram à porta daquela sala escura. Era o Jay.

— Continua o bom trabalho. Avisa se conseguires mais alguma coisa.

— Com certeza, chefe Kam abanou a mão sem sequer olhar para trás, levando o inspetor Brittia a revirar os olhos antes de seguir o amigo.

Os dois homens deixaram a porta da sala escura encostada e seguiram o corredor até às escadas

— Devias ensinar-lhe maneiras — disse Jay, já no piso térreo do seu consultório. Tinham decidido acomodar toda a equipa no edifício para evitar olhos curiosos tentassem descobrir o que andavam a fazer em segredo.

— Desde que ela obtenha resultados, posso aturar a sua atitude. O que é que tens para mim?

— Consegui alguns fragmentos.

Linden encheu-se de entusiasmo e seguiu o amigo até ao escritório.

— Havia três frequências aqui dentro — apontou Jay ao sentar-se em frente ao computador ligado à CODERU.

Linden encostou-se a um armário, de frente para o ecrã do computador.

— Memórias de três indivíduos diferentes? No mesmo Cérebro?

— Sim. Não é impossível, desde que saibam a palavra passe que quebra o selo de proteção do dispositivo. — Os dedos do médico mexeram-se sobre o teclado. — Os fragmentos não estão por ordem e não sei a quem é que pertencem. Provavelmente nem sequer estão completos.

— Passa — pediu o inspector.

O Jay assim o fez.

"Solhangar"

— É a palavra que usavam como espécie de separador de memórias. Era o apelido do inventor dos humanoides, que levou o segredo das suas criações para o túmulo. Todas as memórias que iam para o Cérebro Externo começavam e acabavam com isto — esclareceu o Dr. Fisht.

O observador respirou fundo e saiu do vestíbulo, caminhando por um corredor sumptuoso até uma pesada porta, que abriu com cuidado. Depois de se esgueirar para o interior da sala em silêncio, fechou a porta e circulou pelas laterais para não interromper a reunião que estava a decorrer. Mal levantando os olhos do chão, o observador tentou fixar as caras dos homens e mulheres com uniformes de oficiais do Império.

"General Kho, como sempre, a sua informação revelou-se certeira", disse a cinquentona sentada à cabeceira, "as tropas da República pareciam baratas tontas"....

Linden arregalou os olhos. O General Kho foi uma importante estratega da República no tempo da guerra. Vê-lo ali, naquele conselho de guerra, só podia significar uma de duas coisas: ou era um agente duplo, ou um absoluto traidor.

Teria sido por sua causa que a República não saiu vitoriosa?

O ecrã do computador ficou negro até saltar para outra memória.

"Confessa!"

O observador encostou a ponta dos cabos ao corpo do homem amarrado ao potro, deixando a eletricidade percorrer o seu corpo esticado em todas as direções. Quando o choque terminou, a vítima continuou em silêncio.

Os altifalantes da sala de tortura crepitaram.

"Abre-o".

O observador olhou o vidro negro, por detrás do qual sabia estar a pessoa que lhe dera a ordem. Os cabos foram trocados por uma pequena serra, que abriu o duro peito do humanoide torturado.

"Corta", disseram pelo altifalante.

O observador olhou de relance o vidro negro.

"Perdoa-me", murmurou à vítima, num ângulo em que ninguém conseguia perceber que os seus lábios se tinham mexido.

Jay parou a transmissão.

— A partir daqui é só berros e sangue. — O inspector podia imaginar a cena, já que os órgãos humanos dos humanoides estão ligados ao sistema nervo pseudo-humano, ao contrário da superfície do seu corpo. Ser cortado vivo no único sítio que contem terminais nervosos não é um acontecimento pacífico. — Não há nada de importante nesta memória, por isso vou saltar à frente.

Linden concordou e o ecrã ficou negro de novo.

Tiros, tanto próximos como distantes, preenchiam o ar. O observador estava agachado na lama, frente a frente com uma rapariga escanzelada. Entre eles havia um mapa.

"Ontem durante o conselho de guerra não consegui gravar sem arriscar ser descoberto, mas digo agora. O Império tem oferecido vitórias à República nas últimas semanas. É uma joga para nos encher o ego. As tropas que estão a combater nem sequer são essenciais: são prisioneiros, androides e velhos".

O dedo do observador apontou para uma cidade no mapa.

"Querem fazer uma falsa retirada até aqui e depois flanquear o nosso exército com as reservas."

O observador encarou a miúda.

"Tens de levar estas informações à base. O exército amarelo que está aqui destacado não tem provisões para aguentar o Inverno. Se as nossas tropas conseguirem empatar as coisas para além da data prevista para o ataque final do Império, o inimigo vai ser obrigado a recuar para lá da fronteira e podemos finalmente ganhar algum terreno."

A miúda assentiu.

"Solhangar".

A memória chegou ao fim e outra apareceu no ecrã. Mal a figura de um rapaz enfiado num esconderijo entrou no campo de visão do observador, Jay e Linden reconheceram imediatamente a sua identidade.

"O Diário que tenho comigo é muito importante. Disseram-me que já devia ter chegado à capital há semanas atrás, mas que foi difícil de passar as linhas inimigas".

Tiros e explosões fizeram a estrutura do edifício estremecer.

"Agora é cont-"

De repente ouviu-se um estrondo vindo de outra divisão. Jay parou a transmissão das memórias imediatamente e olhou para Linden. Aquele andar devia estar vazio com a exceção deles os dois, já que o resto da equipa não saia da cave desde que lá tinha entrado.

Os dois homens levantaram-se e saíram em silêncio. O barulho vinha da sala ao lado, pela porta entreaberta.

Linden retirou a arma do coldre e colocou-se à frente do Jay, abrindo a porta de repente com a arma em riste. Contudo, mal viu o que se passava, baixou-a com perplexidade.

Estava uma figura de pé, de frente para eles.

Era o rapazinho que saíra do buraco.

O humanoide.

— Quem são vocês?

FIM

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