A GATA CHRISTIE em: O Mistério do Rato e do Escorpião

Texto de Luan Oliveira


Dona Chica, a ratazana conhecida por ser uma das menos bonitas na comunidade onde morava, seguia tranquilamente para sua toca, quando ouviu um berro vindo de um beco escuro à sua direita. Um temporal ameaçava cair sobre a cidade e ela ainda tinha que preparar a janta do marido, um trabalhador dos esgotos. Se bem que naquele dia ele saíra mais cedo com o tal do Scor Pion(um novo amigo escorpião muito afável), e talvez já tivesse chegado em casa.

Depois de muito ponderar, decidiu ir ver se se tratava de alguma criatura precisando de ajuda. Apesar de as duas espécies possuírem seus cidadãos mais radicais, ou mesmo xenófobos, a maioria mantinha uma convivência pacífica: ratos e escorpiões dividiam as mesmas vielas sem maiores problemas.

Ao se aproximar da curva ao fim do beco, um trovão fez o chão tremer. Mas o que tirou o fôlego da ratazana foi a cena iluminada pelo relâmpago, que raiou simultaneamente ao ribombar: dois corpos jaziam de forma indescritível, um sobre o outro. Um rato e um escorpião estavam mortos. E o rato, percebeu com um arrepio, era seu esposo.

Mas quem seria o assassino?

<<<¤>>>

O dia estava nublado, o que era o habitual para aquela época do ano; a bem falar, para todas as épocas. Passava pouco das dez horas e os dois estavam no escritório.

- Será que teremos paz hoje? - pergunto Hercoelho Poirot enquanto mordiscava uma cenoura orgânica e estirava as patas traseiras sobre o capacho. Sua parceira nem se deu ao trabalho de responder.

Christie, a gata (ou como dizia na placa pendurada do lado de fora da porta: A Gata Christie - detetive) lambia uma de suas patas em uma pose elegante. Uma vez, ao presenciar cena igual, Poirot comentara que ela era a fêmea mais bonita que ele já vira tomar banho. Neste dia, Hercoelho Poirot ganhou três linhas vermelhas em seu focinho marrom.

Christie era, sem sombra de dúvidas, a mais inteligente gata da cidade, e além disso, a mais bela. Seu espesso pelo branco contrastava com o azul glacial de seus olhos. Os bigodes, que em outra espécie poderia ser motivo de piadas, nela dava um toque de delicadeza, que ajudava a encobrir sua personalidade forte e astuta.

- Senhora Christie! Senhora Christie! - gritava o pequeno rato que entrou com tudo no escritório.

Ambos os detetives se mantiveram em seus lugares, entradas como aquelas eram mais que comuns para eles.

- Qual o caso? - perguntou a felina entre uma lambida e outra.

- Os escorpiões atacaram!

- Mentira! - protestou uma voz vinda do corredor atrás do rato. O escorpião adentrou o escritório.- Foi um dos membros daquela corja que é o Clã dos Ratos!

Os dois ameaçaram entrar em vias de fato; o escorpião chegou mesmo a levantar seu ferrão em ameaça, embora todos soubessem que aquilo era apenas um gesto de intimidação, uma vez que uma das regras que garantiam a boa convivência entre as duas espécies era a retirada diária do veneno, feita em casa mesmo, pelo próprio escorpião.

- Acalmem-se, meus colegas - apressou-se Poirot, entrepondo-se aos dois.- Vamos dar uma olhada na cena do crime e só depois tirar conclusões.

Poirot se dirigiu para o lado de fora, sempre entre os outros dois, e aguardou na calçada pela companheira. A gata os seguiu, porém se deteve por um breve momento para examinar a própria pata: havia pisado em um líquido, sujando a pata recém-lavada. Cheirou o líquido, em seguida secou-o no tapete da entrada e segui junto com os outros três até o local indicado pelos mensageiros.

***

Era realmente algo horrível de se ver. Com uma lanterna, Hercoelho Poirot iluminou os dois corpos. Um suspiro de horror emanou dos curiosos ao redor.

Havia, com partes de seu corpo amarradas a um poste, o cadáver de um escorpião com sua cabeça arrancada. Essa, por sua vez, estava na boca de um rato, também morto, que jazia de frente ao outro.

A gata e o coelho examinaram a cena por alguns minutos.

- Picada de escorpião - anunciou Christie depois de cheirar o ferimento na cabeça do rato.- Foi o que o matou.

- Então quer dizer que não há um culpado? Os dois se mataram mutuamente?

- Não seja tão precipitado, Poirot... - disse a gata e deu as costas, se dirigindo aos dois mensageiros.

- Levem-me aos seus comandantes - ordenou a felina. Sem dizer uma palavra, os dois puseram-se a caminhar.

***

- ...De modo que se um dos dois for o culpado, a espécie a qual ele pertence será banida da cidade - concluiu o Sr. Bigodes, o líder do Clã dos Ratos.

- Disso estamos em perfeito acordo - manifestou sua opinião o Sr. Agulhas, líder dos escorpiões.- Afinal, é isso o que diz o acordo assinado pelos fundadores.

Em um púlpito à frente deles estava o documento original, o acordo de convivência pacífica com todas as suas regras.

O escorpião que fora um dos mensageiros havia sumido, porém o outro mensageiro(o rato) não arredou a pata do lado da felina e do coelho.

Os dois detetives ponderaram sobre a questão e ao fim de alguns minutos, Christie deu sua resposta:

- Aceitamos o caso. O pagamento será feito pelo grupo que for considerado inocente, visto que este terá grande recompensa.

- E qual será o valor, senhorita? - perguntou o líder dos ratos.

- O de sempre - ela olhou para o lado, com ar de displicência.- Um pote de leite e dez cenouras orgânicas.

- Detetives! Detetives! - gritou esbaforido, o ratinho que tropeçou antes de se recompor com a ajuda de Hercoelho.

- O que houve? - perguntou a gata Christie.

- A viúva do rato assassinado... Ela se suicidou!

***

Na reunião pública convocada pelos líderes das duas espécies, compareceram todos. De um lado, os escorpiões mais radicais gritavam pedindo a expulsão dos ratos; do outro, os roedores permaneciam calados em sua maioria.

- O cenário que se apresenta é claramente favorável aos escorpiões - disse o detetive Poirot, o que gerou uma série de exclamações por parte da multidão.- Primeiro, o escorpião teve sua cabeça arrancada, e isso não seria possível caso ele tivesse atacado o rato primeiro, pois o veneno dessa espécie de aracnídeo, como todos sabem, paralisaria um rato em um segundo. Portanto, o rato, de fato, atacou primeiro.

- Mas por que ele também morreu? - quis saber um dos roedores que assistiam a tudo.

Hercoelho olhou para a gata, como que esperando que ela mesma respondesse; Christie não disse nada, então ele continuou:

- Por algum motivo que desconhecemos, o escorpião assassinado não havia feito a retirada do veneno nesse dia. De modo que, assim que teve sua cabeça mordida pelo rato assassino, numa última tentativa de defesa, picou o atacante na cabeça, levando-o junto para a morte.

- O suicídio da viúva só prova isso - exclamou um escorpião que se destacou dentre os outros e se aproximou.- Por qual outro motivo uma rata pularia de um telhado?

O escorpião que havia feito tal declaração era o mesmo que havia ido ao escritório com o rato e há pouco sumira: Scor Pion, um agradável cidadão de bem, porém com uma certa antipatia aos roedores.

Depois de um longo silêncio de expectativa, a gata Christie se pronunciou:

- Diante das provas que temos, é o que podemos deduzir. Poirot, pode anunciar o veredito.

A multidão se calou para ouvir o que diria o coelho, todavia, em seus íntimos, todos já sabiam.

- O rato é o verdadeiro culpado e único assassino!

Ouve um estardalhaço geral. Os aracnídeos mais exaltados berravam e empurravam os ratos para a estrada de saída da cidade, estes por sua vez aceitavam cabisbaixos o seu destino (um ou outro roedor ameaçava resistir, mas logo voltava a seguir o grupo calado).

Sr. Bigodes assumiu o erro e se juntou aos ratos expulsos com um olhar triste. O líder dos escorpiões não parecia feliz, apesar da vitória: unir as duas espécies em uma convivência pacífica sempre fora seu objetivo de governo.

Hercoelho foi até o Sr. Agulhas para receber o pagamento, Christie, misteriosa, disse que teria uma palavra a sós com o líder dos ratos.

***

Na escuridão daquela noite, a gata Christie estava sentada ao lado de um pires, com o leite ainda intocado; a garrafa estava aberta ao seu lado, com a rolha repousada no chão. Poirot estava a tratar da embalagem das cenouras; ele era muito exigente quanto a qualidade delas.

Apesar de o caso ter sido solucionado, algo ainda parecia incomodar a felina .

O escorpião, que todo o tempo acompamhara o caso, primeiro como um dos mensageiros e depois dando pitaco na solução, Scor Pion, se aproximou dizendo:

- Afinal, resolveu mais um caso, senhorita Christie... É realmente a melhor detetive da região - seu tom era provocador e a gata semicerrou os olhos com suspeita.

- Foi o que pudemos deduzir frente às provas que possuíamos - respondeu ela.

Estavam todos bem distantes de qualquer outra criatura visível; certamente os escorpiões estavam tratando da reformulação da sociedade em que viveriam de agora em diante.

- Mas eu ainda tenho outra teoria... - provocou Christie, se levantando e caminhando ao redor do escorpião em círculos.

O ar se tornou mais espesso.

- E qual seria? - perguntou o visitante depois de um silêncio demorado.

A gata sentou ao lado da garrafa e, tranquilamente, começou a falar:

- Digamos que um membro do grupo dos escorpiões fosse muito contrário à ideia de uma convivência com os ratos. Suponhamos, ainda, que esse escorpião em específico fosse muito inteligente e ardil, mas que mantinha tudo isso sob uma falsa camada de gentileza. Agora, como ele uniria sua aversão aos roedores com sua inteligência e boa estima em um só plano para se livrar dos ratos?

- Creio que isso seria impossível, senhorita Christie - comentou o aracnídeo displicentemente.

- Já que você não consegue imaginar algo tão grande, deixe-me explicar... - enquanto falava, Christie passava a cauda ao redor da garrafa; às vezes também brincava com a rolha.- Imagine que esse indivíduo se torne bem próximo de um rato...

- Me parece contraditório, senhorita - interrompeu o ouvinte.- Não disse há pouco que tal escorpião seria inimigo dos ratos?

- Sim! Mas é aí que está a genialidade: ele se aproxima do rato para poder usá-lo em seu plano. Pois bem, para isso ele escolheria um rato de muito pouco intelecto, por exemplo, um certo trabalhador braçal que passa a vida em esgotos e que nunca frequentou uma escola... Esse escorpião também precisaria de um outro da sua própria espécie, talvez um amigo de verdade.

- Acho que seu amigo está demorando, quer que eu vá chamá-lo? - mudou de assunto o outro. Ele parecia não ter interesse no que Christie tinha a dizer.

- Ele aparecerá quando convir. Como eu dizia... Agora o escorpião conspirador teria tudo o que precisava para pôr em prática o seu diabólico plano. Primeiro, ele levaria seu amigo para um local afastado, um beco escuro, por exemplo. Chegando lá, atacaria o pobre coitado antes que esse pudesse reagir. Em seguida, amarraria o corpo sem vida do colega em algum poste, para simular um cenário de cárcere ou tortura.

- Isso tudo é muito fantástico! Não creio haver alguém com tal capacidade entre nós.

- Agora é que vem a parte mais complicada - continuou a detetive sem dar ouvidos ao comentário do escorpião.- Ele teria que ir até seu falso amigo rato e persuadi-lo a ir com ele até o local do crime. Ao chegar ao beco, ele revelaria suas verdadeiras intenções. Pularia sobre o rato e com seu ferrão ameaçaria ele caso não o obedecesse. Ele exibiria seu ferrão cheio de veneno e...

- Mas todos os escorpiões fazem a retirada do veneno! - protestou o outro, um pouco exaltado.

- Nem todos, não é verdade? - disse a gata e encarou seu interlocutor com um olhar acusador cheio de eletricidade.- Eu vi a poça que você deixou no piso do meu escritório quando ficou bravo com o rato! Na hora da raiva não conseguiu se segurar, não é?

O escorpião mudou completamente de expressão, assumindo um semblante escarnecedor. Deu uma risada diabólica.

- Você é realmente boa. A gata Christie - disse se aproximando dela.- Mas já acabou, seu veredito não pode ser revisado sem provas, e garanto que não terá tempo para encontrá-las - ele ergueu a sua cauda, revelando um ferrão com uma gota de veneno pingando dele.- Mas, antes de acabar com você, quero ouvir o resto da sua teoria...

A gata permaneceu impassível, não demonstrou medo algum. Continuou:

- Agora que assumiu, vamos direto ao ponto. Você mandou que o pobre rato arrancasse a cabeça do escorpião e ele, sem outra escolha a não ser a morte, o fez. Assim que o roedor acabou esse horrendo serviço, você o picou na cabeça, matando-o também. A cena estava pronta, dois corpos e um rato claramente sendo o assassino. O suficiente para a expulsão de todos os roedores da cidade.

- Muito bom... - disse o escorpião, caminhando ao redor da gata com malícia.

- Mas você teve um imprevisto: uma testemunha. A Dona Chica, esposa do rato assassinado, e que mais tarde seria a primeira a ver a cena do crime. Ela viu quando você chamou o marido dela para sair a uma hora tão incomum; isso certamente poria suspeitas sobre você. Mas como não possuía muito tempo, deixou esse problema para mais tarde. Enquanto Poirot e eu discutíamos com os dois líderes, você foi até a ratazana e a eliminou com seu veneno, em seguida forjou a cena de um suicídio.

- Agora sei porque você é a melhor...

- Mas tem algo que ainda não se encaixa: por que fazer tudo isso? Apenas por não gostar dos ratos?

- ...mas não é tão esperta assim - completou, parando de frente ao focinho da gata.- Meu motivo, cara Christie, foi o seguinte: poder! Com os ratos fora do caminho e um governo único, eu darei início à segunda fase do plano: a insurreição contra o imbecil do Sr. Agulhas. Em pouco tempo, todo esse povo estará gritando meu nome e pedindo a cabeça dele! E aí eu serei a lei!

- Não se eu puder evitar - disse Christie.

- E não pode! - gritou o escorpião e investiu com seu ferrão cheio de veneno, pronto para acertar a gata em um golpe fatal. Mas a felina já estava pronta para isso e posicionou a rolha que segurava com seu rabo bem na frente do seu rosto. O ferrão cravou-se nela.

- Claro que posso - ela deu uma piscadela e as luzes se acenderam.

Centenas de vagalumes voaram sobre os dois fazendo a noite virar dia e revelando a multidão de ratos que assistia a tudo da escuridão. Poirot, Sr. Agulhas e o Sr. Bigodes estavam entre eles.

Dois ratos se destacaram e imobilizaram o criminoso, que tentou se livrar da rolha, mas não possuía força suficiente. Scor Pion havia sido desmascarado, seus planos fustrados, e ele, inteligente como era, só conseguia gritar impropérios contra a gata. Os dois guardas ratos o conduziram à prisão.

Os dois líderes se aproximaram da detetive.

- Foi incrível, Christie! Por isso é a melhor de todas! - exclamou o líder dos ratos.

Sr. Agulhas estava cabisbaixo. Se aproximou e disse:

- Como diz o acordo, agora que ficou provado a culpa do Scor, nós teremos que deixar a cidade - entregou o papel oficial do acordo de convivência ao outro líder e deu as costas indo em direção à saída da cidade.

- Espere! - disse o Sr. Bigodes.- Não é justo que todos paguem pelos erros de um - dizendo isso, ele segurou o documento e o rasgou. Houve uma série de aplausos e exclamações de concordância vindas da multidão, que agora era formada por membros das duas espécies.

Scor Pion foi preso, a cidade inteira se reuniu para uma cerimônia em homenagem dos mortos daquele fatídico dia. Daquele dia em diante, a sociedade passou a ser cada vez mais unida, sem precisar de nenhum papel que dissesse isso.

Mais um caso resolvido pela dupla de detetives mais incrível que já existiu.

<<<¤>>>

Christie carregava um saquinho com cenouras orgânicas, enquanto que ao seu lado Hercoelho Poirot cambaleava de um lado para o outro carregando um pote de leite; ele nunca se oferecera para aquilo, mas Christie sempre o convencia a ser cavalheiro.

- Muito boa a ideia de reunir os ratos e os líderes e arrancar a confissão do Scor - comentou Poirot entre gemidos de tanta força que fazia.

- É o meu trabalho - desconversou a gata com seu andar elegante - Mas não esqueça dos vagalumes!

- Ei! Por que você não escreve um livro contando algum de nossos casos?

- Não gosto de holofotes.

- Você pode usar um pseudônimo. E se não quiser ser a protagonista da história, pode me usar! É para isso que servem os parceiros.

A gata Christie ponderou por algum tempo antes de dar uma resposta.

- Quem sabe um dia, Poirot. Quem sabe um dia...

FIM

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top