2. Encontro ao Entardecer

Encontro ao Entardecer

Por Jack_Backhaus

"Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura." Friedrich Nietzsche

As portas do moderno Tramway se abriram e o casal saiu. Atravessaram a avenida Jean Jaurès, que separava a Place Masséna da entrada do Vieux Nice, a parte velha da cidade. Desceram em direção ao pórtico antigo chamado de Porte fausse que dava acesso ao Vieux Nice, pela Rue du Marché. Era uma antiga cidadela medieval que resistira aos desígnios do tempo. Sua arquitetura fora se adaptando com o passar do tempo. Comércios e restaurantes proliferavam ali. Era circundada por um conjunto de prédios que delimitavam a área antiga, dentro da qual circulavam raros veículos, o que propiciava passeios agradáveis. O casal costumava ir regularmente nesse lugar. Ele fazia parte da história de vida deles. Já estava começando a escurecer e a luz já estava bem rosada, como costuma ficar nos dias de verão. As vielas antigas iam pouco a pouco escurecendo à medida do entardecer. Caminhavam na Rue du Marché em direção ao Cours Saleya, grande área de calçadão com restaurantes diversos que gostavam muito de frequentar, quando um rapaz, vindo de frente a eles, esbarrou, desculpando-se rapidamente, olhando para o casal. De imediato iam reclamar, mas o reconheceram quando viram o rosto do jovem apressado. E, simplesmente responderam atônitos: "não há de quê".

Entreolharam-se de maneira incrédula.

-Querido, você entende o que acabou de acontecer? - disse a senhora virando para o seu companheiro. - É hoje! Precisamos fazer meu amor! Devemos agir!

-Sim. É hoje! Nossa! Pensei que esse dia nunca chegaria. Mas cá estamos!

-Então, meu amor, não sei como, mas você precisa ir. Lembra onde tudo deve se passar?

-Sim. Você sabe que não dá pra saber exatamente o horário, mas o local, sim. - disse o homem, verificando seu relógio de pulso. Estou indo! - e beijou sua esposa. - Te amo!

-Eu também! Vou cuidar do rapaz.

-Não seja muito dura com ele, meu bem! - E deu um sorriso maroto.

Cada um então seguiu para direções opostas. Tinham uma missão a cumprir.

...

O rapaz estava sentado na mesa de um pequeno restaurante situado na Place Rossetti. Visivelmente nervoso, ele já havia pedido uma caneca de cerveja. E, aparentemente, aguardava alguém. A senhora sentou-se à mesa ao lado. Estava mexendo na bolsa e, distraidamente, deixou cair uma caixinha de pastilhas. O jovem prontamente abaixou-se para pegá-la e restituí-la.

-Muito obrigada, meu rapaz. -disse a senhora recebendo a caixinha entre as mãos. - Meus comprimidos, eu preciso tomá-los todas as noites. - disse, sacudindo a caixinha.

O rapaz sorriu.

-Reconheço você - disse ela. - Passou apressado por nós alguns minutos atrás. Levei um susto.

-Me desculpe, não foi de propósito. Estava com pressa, pois estava atrasado para encontrar minha namorada. Mas ela ainda não chegou. - disse o rapaz, olhando para o relógio.

-Ah. As mulheres sempre se atrasam um pouquinho - disse ela, com um sorriso cúmplice. - Ela com certeza vai chegar daqui a pouco.

- É, eu espero. Ela não costuma se atrasar. Normalmente, sempre sou eu que acabo chegando atrasado.

- Meu marido também vive se atrasando. É assim! Mas me diga, faz tempo que estão juntos?

- Alguns meses. Mas parece que eu sempre a conheci. É estranho isso. Não sou de acreditar em vidas passadas, mas é como se tivéssemos vivido uma outra vida, juntos, e que tivéssemos nos reencontrado. Me sinto tão à vontade com ela. Me sinto eu mesmo e, ao mesmo tempo... Me desculpe, nem sei por que estou lhe dizendo tudo isso. Que estranho!

-Não se preocupe. As pessoas sempre se abrem comigo. Tem alguma coisa que faz com que elas se sintam à vontade. E, quer saber? Gosto disso!

-Certo, - disse o rapaz meio sem jeito- mas não desejo aborrecê-la com a minha história.

-Meu rapaz, meu marido foi ali na farmácia, e até seu retorno, você não me aborrece nem um pouco. Quando somos jovens, temos a vida inteira pela frente. Tantas opções, que às vezes nem sabemos o que fazer. Dúvidas são constantes. Quando envelhecemos vivemos com as consequências de nossas decisões e, muitas vezes, já é tarde demais para voltar atrás.

-Nossa! Com certeza nesse momento tenho muitas decisões para tomar e me pergunto se serão as boas. Alguns dilemas pessoais que ainda não estão claros para mim. Exatamente o que a senhora está dizendo. Estou vivenciando isso. A senhora não seria por acaso uma vidente ou coisa parecida?

Ela deu uma risada. - Nada disso. Mas já fui jovem também. Você sabe, a vida é um ciclo que muitas pessoas vivem e revivem. Geração após geração. Como um eterno retorno. - Agora ela acariciava uma pulseira dourada em formato de serpente que estava mordendo a ponta da cauda. -Ouroburos. Um eterno recomeço! - disse ela.

-Já vi isso, em "Cem anos de solidão" Garcia Marques faz referência a isso, não?

-Sim. Você já leu esse livro então? É um livro muito bom mesmo! É um de meus autores favoritos e, esse livro é muito significativo para a minha vida. Gosta de ler também?

-Gosto, não tanto quanto a Zoé, pra quem a leitura é uma fonte de prazer e de conhecimento indispensável.

-Então, sua namorada também gosta de ler?

-Gostar é pouco! Foi inclusive ela que me indicou o livro do Gabo. Ela tem uma seleção de leituras muito mais intelectuais do que as minhas. Antes de conhecê- la, eu só lia livros de divulgação científica e alguns romances policiais, de mistério e suspense. Um ou outro clássico foi por causa da escola que li, mas não por minha escolha. Ela me faz ver a vida por outros olhos. Nossa, olha eu de novo me abrindo com a senhora. A senhora tem mesmo esse efeito comigo. - Deu um gole na cerveja e deu uma olhada no seu relógio de pulso. -Onde será que ela está? Já estou ficando preocupado.

...

A moça caminhava pela Place Garibaldi, em direção ao velho Nice. Passaria pelas arcadas do Café de Turin, que já estava fechado a essa hora. Tudo estava fechado. A agitação se concentrava no interior do velho Nice. Já estava escurecendo, as arcadas estavam na penumbra quando acabara de atravessar a praça.

De repente, um homem saiu de trás de uma das colunas das arcadas e a empurrou para o canto, ameaçando-a com uma faca.

-Se gritar te furo! -disse o cara, apertando a faca no pescoço da moça.

Ela estava aterrorizada. Nunca tinha sido agredida na sua vida. Sentia o hálito do homem e o seu olhar animal lhe encarando, com uma mão ele prendeu seu braço e o segurava forte contra o seu peito, o que também dificultava a sua respiração. Não conseguia distinguir como ele era. Pela voz, parecia ser mais velho e também fumante. Ele começou a apertar o seu corpo cada vez mais forte contra o dela. O medo invadia-lhe. Lágrimas começaram a escorrer enquanto ela ficava calada. Não sabia o que iria acontecer. Não havia ninguém ali nesse canto cego das arcadas. E, mesmo que alguém passasse e os visse, pensaria que fossem dois amantes escondidos para um beijo mais apaixonado. Sentiu a lâmina da faca riscar levemente a pele de sua garganta.

-Fica quietinha, minha lindinha, vamos dar uma voltinha logo ali. Você não vai se arrepen...

O agressor não acabou a frase. Caiu no chão como um saco de batatas. O aperto cessou. E ela pode respirar aliviada.

...

O marido da senhora tinha saído em disparada pela viela, de volta pelo mesmo caminho pelo qual tinham chegado na Rue du marché, passou pela Porte Fausse, e continuou pela Rue de la Boucherie. Ele precisava agir com urgência. Mas sua condição física não era a mesma de antigamente e seu ritmo cardíaco limitava muito sua velocidade. Mas sua determinação era total, como nunca tinha sido até aquele momento. Nunca pensara que aquele dia chegaria, mas agora tinha que fazer o máximo para que tudo se passasse do jeito que ela havia lhe dito. Precisava fazer rápido. E já estava sem fôlego. Estava quase chegando nas arcadas que davam para a Place Garibaldi, quando teve que parar para retomar o fôlego. Apoiou-se contra um container de lixo e deu grandes golfadas de ar. Precisava se recompor e voltar a marchar. No meio de uma dessas golfadas, percebeu um pedaço de madeira ao lado do container. Ele o pegou, deu dois golpes no chão pra sentir a resistência e pôs-se novamente a caminho. Tinha que achar a garota.

Assim que entrou sob as arcadas, percebeu um movimento no fundo, bem no escuro de uma das colunas. Reuniu toda sua coragem e força e chegou bem perto. Levantou o pedaço de madeira e golpeou o agressor na cabeça. Não sabia exatamente quanta força tinha que usar para não matar o sujeito, mas sua raiva naquele momento era tal, que empregou toda a força que pôde, sem se preocupar realmente com possíveis ou prováveis sequelas daquele criminoso. O que importava era salvá- la.

Assim que o bandido caíra, ela viu um homem com um pedaço de madeira nas mãos. Ele acabara de libertá-la das garras nojentas daquele bandido. E sua voz foi apaziguadora. Ele tratou de acalmá-la.

-Venha, minha jovem, vamos sair daqui, ele não vai mais lhe fazer mal. Venha.

...

A senhora tinha um rosto fino em que as pequenas rugas combinavam harmonicamente com os cabelos lisos e brancos, dando-lhe um ar distinto e nobre. Em poucos minutos gostara da companhia da senhora. Sentia afinidade e empatia. Como se ela fosse da família. Não conseguia explicar aquela sensação cada vez mais profunda de confiança enquanto ficava na presença da mulher.

-Você deve estar preocupado com sua namorada. Entendo. Ficamos assim com as pessoas que nos cativam. Ela o cativou?

-Sim, sem dúvida. E, com certeza estou preocupado. Mas sua companhia me tranquiliza. Por que será? Insensibilidade da minha parte? Não sei...

-Talvez tenha medo de se abrir demais e de se machucar? Talvez já tenha tido experiências no passado que deixaram marcas...ou também pode ser medo de falhar. Falhar com ela.

Ele a encarou de modo intenso como que se questionando: quem é essa mulher? Como ela faz isso? Ela simplesmente descrevera de maneira muito fiel as suas angústias ligadas ao relacionamento com Zoé. Essas dúvidas deixavam seu coração pesado.

Percebendo o olhar questionador do rapaz, a senhora respondeu, sem mesmo olhar pra ele. Continuou olhando para a igreja Sainte Reparate, logo ali em frente da Praça.

- A vida é um eterno recomeço. Sabe, somos nós que fazemos as escolhas. Você faz e fez as escolhas que o levaram a estar sentado aqui nesta mesa ao lado da minha. Assim como eu também fiz uma série de escolhas que me trouxeram aqui. Até que ponto tomamos nossas decisões sobre o que é realmente razoável? Quando estamos afetados pelo amor, será que estamos aptos a tomar certas decisões? Ou simplesmente, por definição, aceitamos que o amor deva ser assim... desconhecido e incompreensível? Devemos nos entregar a essa confiança tão irracional no outro? O outro merecerá essa confiança? Talvez. Ilusão? Talvez. Confusão? Desatino? Mas, não são esses alguns dos atributos do amor? Muitas vezes não ficamos cegos quando algumas de nossas emoções manifestam-se com mais furor? O amor é um desses casos. Às vezes, não vemos o que todos conseguem ver, o que está muito evidente. Por quê? Esse leve ingrediente de loucura destempera a nossa razão e não conseguimos ver o mundo com nitidez. Mas, algumas vezes, é exatamente essa pitada de destempero que nos faz perceber o valor de uma pessoa também. As coisas não são como muitos creem, preto no branco, escritas em linhas certas, num roteiro com começo, meio e fim. Você é quem define sua trajetória. E, finalmente, é graças a essa insensatez que todos nos apaixonamos. Ou, talvez, o começo seja o fim de algo. Quando realmente entendemos sua real significação. É no entardecer da vida que muitas coisas revelam seu real significado.

-A senhora então não acredita em destino? Que tudo já está escrito antes mesmo de acontecer?

-Olha, não pretendo ser o que não sou e explicar o que não me cabe explicar ou até mesmo entender, mas ainda acredito que somos nós que decidimos o que fazemos. E, você é jovem, pode decidir fazer muitas coisas ainda. Siga o seu instinto! Não deixe o medo de viver te controlar.

-Às vezes sinto exatamente isso. Medo que as minhas escolhas acarretem sofrimento. Tanto pra mim quanto para os outros.

-Olha, se deixar os outros escolherem por você, pode até se dizer que a culpa não é sua. Mas isso vai acarretar tanto ou mais sofrimento ainda. Casar-se, ter filhos, fundar uma família nos moldes sócioculturais cristãos do Ocidente talvez não seja o caminho a seguir. Mas...

-Nossa, parece a Zoé falando... - sussurrou o outro.

-Mas você deve decidir o que quer fazer. E, se achou uma pessoa pra compartilhar sua vida, faça o que deseja. Olha - a senhora agora retirava o bracelete do pulso e o estendia ao rapaz - gostaria muito que aceitasse esse presente da minha parte. Para que oferecesse à pessoa com quem deseja compartilhar sua vida.

-Mas, madame, não posso aceitar, ele me parece um objeto de grande valor.

- Por favor, aceite! Foi um presente do meu marido e ele ficaria muito feliz por isso, pode crer!

-E, a senhora ainda me diz que foi um presente do seu marido!? De modo algum eu poderia aceitar.

- Meu jovem, é só um objeto! Não atribua poder aos objetos, e sim aos atos humanos. Não é o objeto em si que conta aqui, mas a mensagem transmitida por ele. Eu desejo que se lembre desse dia e gostaria que oferecesse esse bracelete para quem conta de verdade pra você. Entende? Você é quem vai decidir pra quem vai oferecê-lo. Mas, ao fazê-lo, sempre se recordará desse dia e das escolhas que fazemos e que nos levam aos nossos destinos. Esse bracelete pode representar um ciclo que se repete, mas mostra também que existe um outro ciclo subjacente: o de nossas escolhas. A boca da serpente são as escolhas que fazemos, que nos levam algumas vezes a mordermos as nossas próprias caudas, ou seja, devemos arcar com as consequências de nossas escolhas, sejam elas boas ou ruins.

A senhora pegou a mão do jovem, colocou nela o bracelete e a fechou. - Lembre-se desse dia em que conversou com uma senhora meio louca que lhe deu um bracelete de presente.

-Não, de forma alguma.

-Bom, de qualquer forma fique certo de que meu marido aprova meu gesto. E, por falar nele, está demorando também, vou até a farmácia pra ver se está tudo bem. Foi um prazer conversar com você. Me fez relembrar da minha juventude. Muito obrigada!

- Eu é que agradeço pela conversa e pelo presente. Essa conversa foi muito interessante, para dizer a verdade. Nosso encontro foi no mínimo inusitado.

-Talvez, mas traçados por nossas escolhas. Elas nos trouxeram até aqui. Mesmo quando escolhemos por amor, devemos ter em mente que fazemos uma escolha.

A senhora sorriu e despediu-se. Depois, saiu andando com passos curtos e elegantes, passou ao lado da igreja e desapareceu na viela pela qual tinha vindo.

...

Os dois anciãos encontraram-se um pouco mais tarde em frente à Porte Fausse. Ela chegou antes dele. Ficou espetando alguns minutos. Preocupara-se. Será que tudo correu como em suas lembranças? Pesooas iam e vinham pelas vielas e pela Porte Faisse. Subiu os degraus e olhou a avenida Jean Jaurès. A paisagem estava diferente de quando chegaram. Não havia mais o ponto moderno do tramway. Somente um simples ponto de ônibus. Sim, ela se lembrava de como era aquele lugar antes do tramway. Deu um pequeno sorriso nostálgico. Desceu novamente os degraus e sentou-se na parte de baixo da escadaria.

O marido chegou logo depois e sentou-se ao lado dela.

-Então? - indagou ela.

- Tudo certo. Acertei o cara em cheio! Nossa, foi muito rápido! Não sabia se teria a coragem de fazer, mas quando vi aquele vulto, senti uma raiva muito grande. Nossa, me desculpe, você passou por isso há tanto tempo e eu sentado num bar.

-Não. Você me salvou! Não sei como isso aconteceu. Mas eu sabia que era hoje. E que estávamos aqui pra fazer alguma coisa. Me lembrei imediatamente do homem que me salvou. Não me lembrava exatamente de suas feições. Mas tinha o relógio. Você deu o relógio a ela?

-Sim. Como você tinha me orientado. Com certeza você achou que eu era louco com aquela história de relógio no tempo certo pra pessoa certa.

-É, durante um tempo pensei isso. Até você me contar sobre a senhora que conversou com você naquele mesmo dia e que o presenteou com uma pulseira antiga de ouroburos muito linda. Sabe, no meio de tanta coisa que eu não entendia, algumas coisas fizeram sentido pra mim naquele momento.

-Ah é? Como o quê?

-Simplesmente estar com você.

Ele então abriu um sorriso no rosto e a beijou.

-Vamos pra casa? - perguntou ele ao se levantar, estendendo a mão como um convite para dançar.

-Vamos, meu herói! E você a deixou no posto policial do bairro?

-Do jeitinho que você me disse...ela disse onde o namorado estava e a polícia já estava ligando no restaurante para avisar. Daí eu saí.

Começaram a subir a escadaria.

-Não sei se poderemos ir embora - disse ela.

-Por quê?

-Quando cheguei aqui, não havia mais o ponto moderno do tramway.

Porém, assim que chegaram ao topo dos degraus, ela parou de falar. Tudo tinha voltado ao normal. O ponto moderno estava ali. Poderiam partir.

-Joseph?

-Sim, querida?

-Será que tudo foi verdade?

-Não sei dizer. Só sei que as dores nas pernas e no abdômen são muito reais! E, de qualquer forma, o que isso importa? Será para sempre o nosso encontro ao entardecer no Vieux Nice. Vamos?

E os dois foram andando no meio da noite em direção ao ponto.

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