Capítulo X - Aquilo que os olhos não podem ver
As risadas calorosas que dominavam a sala de jantar de Célia Talbot não conseguiam aquietar o ego inflado de Helga Deadland, uma viúva com posses ao sul, considerada por muitos uma rica sortuda. Seus cabelos ruivos queimavam tão ardentemente quanto o fogo da lareira da sala de estar, onde William andava de um lado para o outro, tenso, um leve ressonar abafado entre as palavras gordurentas da mulher, seus lábios salivavam por boatos que seriam espalhados a todos o mais rápido possível. Seu vestido preto não conseguia ocultar seus seios exacerbadamente grandes, que atraiam olhares, considerados por muitos, indesejáveis, mas não para Helga Deadland. A mulher vangloriava-se de seus dotes, exibindo-os sempre que podiam; suas curvas sempre inchadas devido ao constante hábito de comer doces recheados e frango frito, mas sem perder a classe, é claro.
Numa noite, Helga sentira-se solitária. O marido havia falecido há duas semanas quando a mulher caminhara escondida até a cozinha, fugindo de seus funcionários, começando a cortar pedaços de um bolo de creme com morangos frescos. Naquela noite, o bolo deixou de existir em questão de horas. Célia sentia pena da viúva algumas vezes, mas na maior parte do tempo, a personagem gorda e risonha que Helga criara apagava todo esse sentimento.
- Acredita que, então, o senhor Lasstton apanhou uma garrafa de vidro e quebrou-lhe na cabeça do displicente? – A frase foi seguida por uma risada longa e exagerada, a garganta arranhando um pouco. Célia colou os lábios e tentou sorrir, mas estava apreensiva. Não dormia havia horas, e as olheiras animalescas não conseguiam ser cobertas pela maquiagem.
Embora a amiga tentasse fazer a senhora Talbot sorrir, nada acalmava o medo em seu peito de que algo tivesse acontecido com sua filha. A mesa do café da manhã estava montada, com tantas frutas vermelhas, pães doces e sucos frescos, tudo preparado para a chegada da filha. Mas ela não estava ali. Ninguém sabia onde ela estava.
- Creio que isso não seja nada bom para a reputação da senhora Lasston... – Célia tentou dizer, apenas para tentar manter a mente distraída, mas fora interrompida.
- De maneira alguma! Lasston é um oficial. Ninguém tem mais autoridade do que ele!
- Então achou certo o que ele fez? – Célia franziu o cenho.
- A única coisa certa que eu sei é que o deixaria entrar em meu quarto a qualquer hora. – Mais uma longa risada nervosa, as bochechas corando, temendo que seu humor malicioso não melhorasse a atmosfera tátil daquele lugar àquela hora da manhã.
Os passos de William arrastavam-se pesadamente pelo tapete importado e o som parecia tão alto quanto o grasnar das gaivotas do porto.
Célia olhou para a mesa de madeira na qual um prato de porcelana repousava, contendo alguns doces que ela fizera questão de comprar. A fome parecia faltar em seu estômago, que repudiava a mínima ideia de provar um daqueles pequenos cones, durante aquela conversa, algo que não acontecia com Helga, que até mesmo perguntou:
- Vai comer este aí? – Indagou a viúva já esticando seu braço rechonchudo para apanhar um doce quadrado, feito de banana e coco.
- Não..., fique à vontade.
Enquanto mastigava, Helga limpou os dedos no vestido antes de dizer:
- Soube que sua linda filha está à procura de um marido... – A mulher sorriu maliciosamente enquanto repousava as mãos sob o colo.
Como de costume, o ar era quente, mas a tensão em seus corpos parecia esquentar ainda mais cada fibra de seus corpos, como madeira em brasa. O suor escorria pelas costas e os fios dos cabelos grudavam contra o pescoço, escapando dos cachos.
- Na verdade, a ideia fora de William. – Admitiu Célia quase com vergonha, seu rosto esquentando não por causa das velas.
- Não acha que Lilly poderia estar com um pretendente?
Célia arregalou os olhos, assustada, de repente, olhando por sobre os ombros, seus cabelos castanhos caindo na direção da cintura num amontoado de folhas secas. Duro e etéreo no instante em que ela franziu o cenho, os olhos refletindo o da prataria da casa. Ela apoiou as mãos sobre a mesa de madeira, engolindo em seco.
- Não entendo o que quer dizer.
- Ora, você não sabe? – Helga indagou, gostando de sentir o prazer do poder de saber algo que alguém desconhecia, ainda mais que poderia envolver um possível escândalo familiar.
A ausência de uma reposta fez a gorda viúva continuar:
- Há muitos boatos correndo por aí a respeito de sua filha.
E ouvir tais palavras fez o corpo da mãe tremer sobre a cadeira, as pernas bambas, embora não fizessem esforço algum, e as pontas dos dedos chegaram a tremer e esbarrar nos talheres intocados.
- Boatos?
- Dizem que Lilly, sua filha, foi vista outro dia perto do porto... – Os grandes e rechonchudos olhos de concha da mulher escancaram-se quando os lábios permitiriam que a frase escapasse, quase como se ela estivesse querendo certificar se a garota era, de fato, filha de Célia. A mãe sentiu-se ofendida, mas estava preocupada demais para expor isso. - Dizem que ela correu em direção ao Beachy Head com um homem. – Helga apanhou outro doce do prato de Célia e ergueu as mãos para o alto, como se disser que "dizem" tirasse toda sua culpa de estar perpetuando boatos.
A mãe tentou manter uma expressão séria e contida, mas por dentro se desmontava em lágrimas. O que Lilly estava fazendo que não lhe contava? Onde ela estava? Será que estava bem? E o medo só inflamava cada vez mais no peito da mulher.
- Q-Quem... – Célia pigarreou por entre o gaguejo - está dizendo estas coisas?
- Os homens do porto. As mulheres na velha galeria...dizem que Lilly estava bem receptiva ao banqueiro...
- Um banqueiro? – Uma luz acendeu-se na mente de Célia. – Está falando do filho dos Trian? – A ideia de chamar o cocheiro e pedir para que corresse com ela até a propriedade da família Trian fez seu peito se aclamar por um breve segundo, mas então ardeu ainda mais em ansiedade, aguardando a confirmação de uma mulher que perdera o marido recentemente e precisava de atenção.
- Jonathan? – Helga jogou o corpo para trás enquanto seu rosto assumia uma careta estranha. - Por Deus, não...eu mesma bateria na sua filha se ela estivesse com ele. – Zombou, as risadas tentando preencher um vazio eterno em sua alma. Se ela soubesse da violência que ambas já sofriam em casa, não teria feito escarnio disso.
- Então, qual era o nome do banqueiro? – A mãe insistiu. Precisava saber. Se a filha estava perdida, tinha de começar a procura-la por algum lugar, mesmo que a ideia de Lilly mentindo sobre algo para encontrar alguém ainda parecesse absurda em sua mente.
- Isto é o que estou tentando descobrir, minha querida Célia. Tenha certeza que, assim que eu o fizer, lhe avisarei. – Ela se levantou, arrastando a cadeira com seu enorme traseiro. Na verdade, tudo nela era enorme, desde seu gordo pescoço até seus tornozelos grossos. – Mas não se preocupe tanto assim, afinal, ela está com um banqueiro! Bom – ela pensou por alguns segundos. – Apesar que eles têm contas bancárias grandes demais se comparadas aos seus...
Mas graças aos seus Célia não teve de ouvir o final daquela frase maliciosa demais para uma manhã costeira. Os sons de galopes contra cascalhos mornos abafaram a voz da mulher e fizeram a senhora Talbot saltar de sua cadeira, correndo na direção da porta da entrada, onde William já havia se prontificado. Ambos se olharam, mas sem palavras entre si, e abriram a porta rapidamente, o calor da manhã envolvendo-os enquanto a figura de Lilly surgia na frente deles, montada em um cavalo de pelagem branca, tão macia quantos as nuvens dos céus, Sebastian Pelletier guiando o animal com maestria enquanto fazia-o parar na frente da casa.
- Ah meu Deus, Lilly. – Célia agarrou as dobras do vestido e correu os degraus da entrada, sentindo os pés esmagando os cascalhos enquanto a garota escorregava de cima do cavalo e grunhia enquanto os braços da mãe apertavam-lhe o corpo dolorido e exausto. – Você...você voltou. Você está bem. – As lágrimas mornas tocaram o pescoço da garota, que fitava o pai, um olhar severo, frio e duro, que se esforçava para forjar uma preocupação enquanto uma figura gorda surgia atrás dele, devorando algo que parecia um scone.
- Está tudo bem agora, mamãe. – A garota disse, afastando-a de seu corpo enquanto desejava que a mulher não olhasse para baixo e visse os respingos de sangue.
O rosto da mulher inchava conforme as lágrimas continuavam a rolar, as mãos dela segurando o contorno do rosto da filha, a vista tornando-se vermelha enquanto o cenho franzia-se ao dizer:
- Eu fiquei tão preocupada. Pensei... – A voz travou em sua garganta. – Pensei...
Lilly exibiu um sorriso amarelo, olheiras profundas em seu rosto abatido enquanto os fios dos cabelos emaranhados eram levados com o vento.
- Estou bem, mamãe. – A garota reforçou, mas todo o medo na alma da mulher ainda a faria chorar muito.
William desceu dos degraus, sorrateiro, os passos com baques surdos.
- Creio que haja um motivo para tal atraso. – Vociferou ele. Célia o fitou, inconformado com tamanha frieza. – Estou certo, senhor Pelletier?
O cavaleiro no corcel branco saltou contra os cascalhos, a respiração pesada e o suor brilhando em sua testa, tornando a pele oleosa, os olhos esverdeados refletiam o fraco brilho do sol por entre seus nuances.
- De fato, senhor. – Ele coçou a nuca, hesitante. – Mas creio que não seja um assunto a ser tratado perto de damas. – Sebastian fitou a curiosa figura atrás de seu empregador, que se esgueirava por sobre o ombro, tentando ouvir algo. Helga era patética.
- Oh, por-por favor, senhor Pelletier. – Célia enxugou as lágrimas rapidamente, mesmo sabendo que elas continuariam a escorrer. – N-Não há necessidade disso. – Ela endireitou-se, os ombros para trás e o rosto erguido. – Conte-me o que aconteceu.
- Poderia entrar. – Sugeriu Helga, que em nada pertencia àquele lugar, mas que se sentia confortável o bastante para fazer tal convite. – Estávamos no desjejum quando chegaram.
- Seria melhor se conversassem a sós. – Lilly interviu antes de William responder, vendo-o analisando-a, curioso. – Deixe que o senhor Pelletier descanse, por hoje. – Ela colocou-se na frente do pai, sabendo que aquilo era uma atitude estúpida. Mas ela também sabia que ele não iria agredi-la enquanto membros que não eram da família ainda estivessem ali. – Ele já fez muito.
Quase como se estivesse decepcionado, ele baixou os grandes olhos verdes na altura dos olhos dela. De fato, eram belos. Mas não a entendiam agora, assim como não a entenderam antes. Ele estava ali, tão perfeitamente vestido, com o sol contornando os traços de seu rosto e esquentando a pele, os lábios finos entreabertos, como se quisessem dizer algo, mas não conseguissem. Não havia mais nada a ser dito. Lilly não conseguia mais olhar para ele sem lembrar no modo como agira na noite passada.
Henry estava ali, na frente dela. Sangrava. Os olhos doentes fitando a garota. Ainda devia haver algum resquício de força em seu corpo, que o permitia catapultar palavras por entre os lábios. O homem suava muito, e ela via isso pelo modo como a luz do luar refletia em sua testa oleosa.
- Por quê? – Foi a única coisa que ela conseguiu perguntar ao ladrão sem chorar. Ele havia sido um dos culpados. Ele havia machucado Heather e a vira quando estava sendo arrastado para o meio daqueles homens nojentos e anda fizera. Emoções demais, para uma garota que fora ensinada a nada demonstrar.
- Lilly...
- Eu já sei que você sabe quem sou. – Retrucou em meio a sussurros zangados, que rangiam os dentes e faziam-na quase morder a língua enquanto os olhos tornavam-se brilhosos. – Apenas me diga o motivo...
- E-Eu...eu não queria. – Gaguejou enquanto permanecia deitado, as costas contra a madeira do estábulo, onde os cavalos dormiam calmamente, os rabos abanando moscas e o cheiro de esterco e feno misturando-se ao do suor e sangue do homem. – Mas...precisava...
Lilly engoliu em seco ao vê-lo gemer quando tentou se mexer, a feriada em seu braço aumentando com o movimento.
- Te ofereceram dinheiro?
- Ouro. – Respondeu por entre uma lufada de ar e o fechar dos olhos. – Muito ouro...
Mas...Henry não abriu mais os olhos. Parecia estar dormindo, o peito ainda arfava lentamente e as pontas dos dedos se mexiam em reflexos involuntários de quem á perdia muito sangue.
- Henry. – Ela chamou, hesitante de que estivesse morto. Não. Ele respirava. – Henry, acorde. Você precisa ficar acordado. – Lilly olhou por sobre o ombro direito, os cabelos caindo para a frente do corpo enquanto ela se certificava de que ninguém os via. Ela deu dois passos para frente, aproximando-se dele. Pensou não haver perigo. Novamente, estava errada. – Henry...
E o homem reabriu os olhos aos poucos, as pálpebras arranhando a vista quase como se grãos de areia estivessem embaixo delas. Os lábios deles rachavam-se e a boca estava seca, o frio percorria cada centímetro de seu corpo com calafrios que assustavam sua alma enquanto ela curvava as sobrancelhas.
- Vo-Você...precisa...falar com...com o Lucian. – A cada pausa que ele deu naquela frase, o coração da garota parou, como se ele não fosse conseguir começar uma nova palavra logo em seguida. – E-Ele...pode...explicar...
Os olhos ela, melancólicos, sentiam as lágrimas em seus cílios enquanto as costas nadavam no suor, o corselete apertando as costelas e tornando o fato de estar agachada num ato doloroso. Quando a noite voltou a ficar silenciosa e os batimentos de Lilly tornaram-se ensurdecedores naquela tensão do âmago da morte, foi aí que ele, num súbito, apertou seu pulso e a puxou para perto, arrancando um curto grito da garota.
- Peça desculpas ao Lucian, por mim. – E essas foram as últimas palavras que ele disse antes de arregalar os olhos, fitando por cima o ombro da garota, quase como se mirasse a lua, e saltando para cima dela num último surto de força. Ela deixou um curto grito escapar de sua garganta, rasgando o véu noturno enquanto sentia as costas batendo contra a grama e o cimento e ouvindo um tiro logo em seguida.
O projétil não errou, desta vez, e partiu a testa de Henry ao meio, lançando seu corpo para trás, fazendo-o tombar contra a madeira do estábulo, onde os cavalos relincharam violentamente, puxando as correias que os prendiam ali, assustados.
- Não... – Lilly deixou escapar enquanto olhava para trás e assistia Sebastian guardando a pistola em seu cinto. – Sebastian...
- Você estava certa, Lilly. – Ele respirou fundo, os olhos tensos enquanto o maxilar enrijecia e o homem mordia o interior de sua bochecha. – Não há lugar seguro.
O capitão caminhou até ela, os passos arrastados até alcança-la, assistindo-a no levantar.
- Não...Não precisava...
- Lilly...
- Você atirou nele. – Ela engoliu em seco enquanto a aparência do homem tornava-se cansada. – Você o matou.
- Ele atirou-se sobre você...
- Ele estava ferido, Sebastian. – Ela soltou-se dele, dando um passo para trás, olhando por sobre o ombro na direção dos cavalos, que não conseguiam se acalmar. – Não poderia me machucar mesmo se quisesse.
Pelletier levantou uma das sobrancelhas, tão grossas, mas tão perfeitamente alinhadas.
- Acredita mesmo nisso?
Lilly cerrou os punhos no tecido do vestido, sem saber como responder.
- Não poderia correr o risco de vê-la se machucar.
- E por isso matou outro homem? Matou em meu nome? – Retrucou enquanto ele ameaçava voltar para dentro das estalagens.
- Ele era um pirata, senhorita Talbot. – A formalidade ressurgiu em sua voz. – A senhorita mesmo chegou à essa conclusão há poucas horas.
- E apenas por isso ele deixa de ser um homem?
E então algo mudou nos olhos dele, como se a neve caísse sobre a vastidão verde dos campos que eram seus olhos.
- Piratas foram os responsáveis pelas mortes de companheiros meus, senhorita Talbot. A cada pirata morto, um novo nome é honrado.
- Não há honra em matar, senhor Pelletier. – Lilly sentiu a saliva arranhar sua garganta enquanto engolia por entre o agitar dos cílios, o rosto erguido e a pele ainda mais pálida diante do luar.
- E a senhorita acha que há honra em nada fazer? – Retrucou rispidamente, a gola alta de sua farda roçando contra seu pescoço enquanto os cabelos caíam sobre a testa, despenteados pelo suor e, embora olhasse diretamente para o mar amendoado dos olhos dela, Sebastian não podia ver o medo que a garota sentiu naquele momento. Não do homem morto com um tiro na cabeça, mas do próprio capitão. Porque ele, apesar de ser um capitão, a enxergava com olhos de homem, céticos, apesar de outrora singelos, e as profundezas da alma de uma mulher jamais seriam vasculhadas por aqueles que não sabem navegar entre seus nuances.
*Heeeeey meus leitores. Não sei dizer o motivo, mas gostei muito de escrever esse capítulo kkkk espero que tenham gostado também!!!! Sinto avisar que semana que vem, por ser minha semana de provas, não haverá capítulo novo, então espero que tenham apreciado as palavras de hoje he he. Vejo vocês no próximooo!!!!
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