Capítulo IX - Uma curva na estrada (Parte II)


*Anteriormente, em Antes que a Maré Baixe: Lilly e Heather retornavam do chá da tarde na propriedade dos Denver quando, num súbito, a carruagem fora interceptada por ladrões de estrada, que procuravam pelas chamadas Cartas de Corso. Em meio ao desespero e com a pele manchada pelo sangue do cocheiro que teve a cabeça partida por uma bala, Sebastian Pelletier apareceu por entre as sombras, salvando-a. Mas a pergunta que resta é: teria ele realmente sido um salvador, ou seria apenas um novo perigo?

...

As estalagens não eram lá essas coisas e, possivelmente, aquele fosse o lugar mais grosseiro e inóspito a uma dama da alta sociedade que Lilly já entrara. Era feito de roxas, das mais diversas, com paredes decoradas por bandeiras coloridas, o ar era uma mistura de alcatrão, fumaça de charutos e lúpulo, o qual inundava as canecas de madeira que homens grosseirões agarravam com tanto fervor enquanto riam, as mãos apoiadas nas barrigas gordas conforme a única mulher, a esposa do estaleiro, lhes servia uma nova rodada. Sebastian os apresentou à esposa, Alberta, que indicou a eles onde dormiriam, mas que só estariam autorizados a subir para os quartos quando todos já tivessem ido embora. Lilly estranhou, mas na atual conjuntura não puderam praguejar muito, já que conseguiram convencer a mulher a permitir que ao menos Heather já ocupasse o quarto. De cara feia e resmungando, ela pediu para que aguardassem enquanto subia os degraus tortos e desaparecia no andar superior, voltando alguns minutos depois, pedindo para que ele levasse a garota para cima.

- A senhorita me espera aqui? – Ele perguntou por mera formalidade, já que Lilly não sairia daquele lugar. Na verdade, seus pés até mesmo pareciam congelados naquele pequeno quadrado sem poeira que ela encontrara entre as tábuas que formavam o piso.

- Ei, garota. – Um bêbedo chamou por ela quando Sebastian subira e Lilly virou-se num salto, ainda arisca. – O que é isso em sua saia?

Hesitante, os olhos dela fitaram o vestido e os respingos vermelhos do sangue daqueles que morreram ainda estavam ali, manchando o tecido perfeito e as rosas bordadas.

- É apenas tinta de meu atelier, senhor. – Respondeu em uma mentira, a voz mais firme do que pensou que sairia enquanto já assistia o retorno de Sebastian para seu alívio, as luvas brancas penteando os cabelos para trás enquanto a guiava para uma mesa mais ao longe, escondida no canto da taverna, longe dos beberrões.

- O que ele lhe perguntou? – Sebastian inqueriu assim que se sentaram, tão afastados que raramente ouviam o homem que tocava sua viola no outro extremo, um pequeno chapéu esverdeado em sua cabeça afundada.

- Quem?

- O homem na mesa.

- Queria saber sobre o meu vestido. – Ela jogou a parte manchada na direção da luz quente do lugar, iluminado por uma pequena lareira e lanternas de cerâmica presas no alto, entre as vigas nas quais as aranhas teciam suas teias.

- Droga. – O capitão reclinou sobre sua cadeira, as pernas se abrindo debaixo da mesa enquanto apertava os olhos com a ponta dos dedos. – Sinto muito que isso tenha acontecido, Lilly.

A garota, por mais que distraída pelo modo como aqueles que ali frequentavam interagiam – entre gritos, risadas e socos – ainda assim notou algo de diferente em sua voz. Como se ali houvesse culpa ou ressentimento, levando-a a perguntar:

- O que quer dizer?

- Que os ladrões tenham lhe atacado.

Ela estreitou o olhar e os cílios quase embaraçaram.

- O que estava fazendo por aquela região, senhor Pelletier?

O homem estranhou a falta de delicadeza em sua voz.

- Perdão?

- Como sabia que eu estava passando por ali?

- Na verdade, não sabia. – Ele corrigiu enquanto umedecia os lábios e fitava as mãos diante a mesa de madeira que os separava. – Tinha assuntos a resolver com o Lorde Gahland, e a propriedade dele pode ser acessada pela mesma estrada. – Os olhos esverdeados refletiram a luz alaranjada e brilharam. – Agora diga-me, o que você estava fazendo naquela estrada?

- Heather convidou-me para um chá da tarde na propriedade dos Denver, apenas isso.

Agora, ela pareceu relaxar. Não. O eu estava pensando? Sebastian...o modo como disse sinto muito, como se tivesse alguma culpa...não, ele não teria planejado o ataque, afinal, ele mesmo a protegera. Mas talvez as coisas tivessem saído um tanto do controle e...

- Lilly?

A garota agitou os cílios rapidamente e olhou para ele, as mãos suando enquanto o capitão parecia ter chamado mais do que três vezes por seu nome.

- Você está bem? – Ele continuou.

- Estou cansada...confusa...

- Vou pedir algo para comermos. – Ele olhou ao redor rapidamente e o movimento não parecia que acabaria tão cedo. – Aparentemente, teremos de esperar um tanto mais que o desejado.

...

A taverna permaneceu quente e úmida mesmo quando metade, daqueles que uma hora a ocuparam, já tinham ido embora. A garota esforçava-se a comer, mexendo com certa ânsia aquele purê e ervilhas, vendo sua textura gosmenta misturando-se com o molho do peixe, que parecia ter caído no chão empoeirado e depois cozido.

- Por onde a senhorita quer que eu comece?

- As cartas de corso me parecem uma ótima sugestão. – Disse depois de apanhar um pouco da batata amassada e levar aos lábios, sentindo um gosto razoavelmente agradável, mas que fora repelido pelas suas entranhas na mesma hora.

Sebastian respirou fundo e uniu as mãos, deixando seu prato de lado, a farda branca pesada em seus ombros.

- As cartas de corso são artimanhas utilizadas a fim de manter a supremacia dos mares, senhorita Talbot. – Ele explicou, palavras baixas enquanto os olhos percorriam o lugar, temerosos de que alguém os estivesse ouvindo.

- Creio que não entendi.

- Está a par de que nós, ingleses, temos a maior frota mercante, certo?

Ela fez que sim.

- Porém – o capitão prosseguiu – é de se esperar que tivéssemos uma competição, cedo ou tarde. Frotas asiáticas competem conosco a cada dia, até mesmo a dos franceses, embora de forma mais sutil.

Lilly ouvia tudo aquilo e assimilava cada informação, mas a firmeza do olhar dele era estonteante o bastante para distraí-la por alguns segundos, o modo como seus lábios finos se moviam pela barba por fazer.

- As cartas de corso nos permitem...interceptarmos outros navios, senhorita Talbot.

- Interceptar? – Indagou enquanto franzia o cenho. Já tinha alguma ideia do que aquilo se tratava.

- Pirataria, se preferir. – Ele reclinou-se em seu assento, lábios para dentro enquanto os dedos batiam sobre a madeira.

- Piratas...? – Ela sorriu com estranhamento. – Mas eles são mortos todos as semanas em Londres...está em todos os jornais e...

- Os jornais mostram aquilo que nos favorecem, Lilly. – Ele explicou, a voz calma enquanto a dona do lugar reaparecia com duas cervejas, levando até fanfarrões que agora discutiam em uma mesa próxima à deles. – Os piratas que são mortos nunca são ingleses.

- Mas isso é a mais pura hipocrisia.

- Você não faz ideia.

E aquela frase a fez se perguntar se havia mais que ele sabia. Era óbvio que sim, mas estaria disposto a conta-la?

- Mas...Sebast... – Ela deteve-se por alguns segundos e sentiu o rosto queimar. – Senhor Pelletier, o que isso tem a ver com meu pai?

- Eu não sei.

O olhar dela o reprimiu, evidentemente desacreditada.

- É plausível que desconfie de mim, senhorita Talbot, mas realmente não tenho conhecimento sobre o porque pediram pelas cartas quando a atacaram.

- Eles eram franceses. – A garota se lembrou do modo como palavras grosseiramente ditas escapavam da boca do barbudo, que agora estava morto, sangue saindo por sua boca enquanto os olhos vidrados fitavam a poderosa escuridão do vazio. – E, como você mesmo disse, os piratas mortos não são ingleses.

- No que está pensando, senhorita Talbot?

- Que talvez... – Ela ergueu uma das mãos, os olhos fitando as vigas no teto enquanto pensava. – É apenas uma teoria, mas...Londres orgulhosamente batalha contra a pirataria, se conseguissem a prova das cartas de corso, então toda a figura de justiça que a capital construiu seria desfeita.

Sebastian permaneceu quieto, as sobrancelhas grossas perfeitamente alinhadas enquanto os olhos pareciam afundar em seu rosto entre as sombras conforme as luzes diminuíam na cera diminuta. Considerando a ideia dela, ele permitiu que a garota continuasse:

- E se Londres mentiria sobre o combate à pirataria, porque não mentiria sobre sua frota?

- Perdão?

- Poderiam questionar ainda mais o poder da marinha inglesa, senhor Pelletier. – Lilly terminou com um movimento de cabeça, observando os últimos dois homens saindo do local, empurrando um ao outro antes de passarem pela porta apertada que era o acesso ao lugar.

Ele pigarreou, o tecido roçando em seu maxilar antes de prosseguir:

- É deveras inteligente, senhorita Talbot. – Sebastian franziu o cenho. - Se importaria se eu levasse tal hipótese para seu pai?

A garota arregalou os olhos.

- Por favor, não...

- Ele perguntará o que houve. O motivo do atraso e o motivo de sua amiga não estar bem. Terá de contar a ele.

- Dou a permissão para que o senhor fale sobre o que eu disse, mas omita o meu nome. – Os olhos da garota brilharam instantes antes da dona da taverna, Alberta, aparecer do lado deles. – Não me envolva com o trabalho de meu pai.

- Já estamos fechados. – Declarou a mulher, parada feito uma estátua ao lado deles, as mãos na cintura e panos presos no avental do trabalho. – Creio que a amiga de vocês já deva estar dormindo, e aconselho que façam o mesmo. – Os olhos da esposa do estaleiro repousaram sobre o prato praticamente intocado de Lilly e, com desprezo, ela fitou a garota.

- Já iremos subir. – Sebastian afirmou e a mulher saiu arrastando os pés, sem questionar, possivelmente com o orgulho sendo sustentando pelo dinheiro que o capitão havia lhe dado para passarem a noite. – Pelo seu olhar, creio que ainda não esteja satisfeita com minhas respostas.

Lilly sentiu os ombros relaxarem enquanto permitia que o ar, que ela nem percebera que estava prendendo, saísse de seus pulmões.

- Acho que só preciso molhar o rosto um pouco. – Ela se levantou, o vestido segurado pelas mãos. – Creio ter visto um poço aqui ao lado, antes de entrarmos.

- Lilly...

- Não vou demorar. – Retorquiu rapidamente, baixando o rosto ao passar por Alberta, direcionando-se à porta e sentindo a noite acolhendo seu corpo mais uma vez.

...

A garota sentia o corpo fraquejar. Às vezes, o joelho falhava e ela tropeçava, ou então os pulmões puxavam mais ar do que o necessário e tornavam seu respirar ardido. Agora, Lilly estreitava os olhos enquanto apoiava-se na borda daquele poço rochoso, onde vinhas se entrelaçavam entre as falhas das rochas e um balde marrom boiava ao fundo. As sombras eram tantas que ela não conseguia ver seu reflexo, mas agradecia por isso, pois tinha certeza de que estava assustadora. Ela sentia os fios de seu cabelo duros como galhos ressecados, as pálpebras arranhavam ao piscar e os lábios estavam machucados.

Tudo surgia em flashes em sua mente. O sangue. Os gritos. O trotar do cavalo. O modo como Sebastian pulou dele para protegê-la e a poeira erguida por suas botas rodopiou no ar.

- Droga. – Ela passou as mãos contra a testa enquanto endireitava-se, começando a puxar o barril para cima, pesado demais para seus braços cansados, forçando-os novamente.

Conforme a corda felpuda enroscava-se entre a roldana, Lilly ainda sentia o medo em seu corpo. Um aviso iminente da natureza silenciosa. O vento não uivava. As folhas não quebravam. Somente o estranho e agudo ruído do metal enferrujado repercutia pelo ar. Como Sebastian poderia ter estado lá? A pergunta ainda brilhava em seus pensamentos. De fato, a propriedade dos Gahland se dava pelo mesmo acesso que a dos Denver, mas...acreditar que tudo aquilo fora uma mera coincidência fazia os nervos de Lilly queimarem. Mas negar tal fator seria o mesmo que dizer que Lucian havia planejado o primeiro encontro deles na praia. Era muito a se pensar e, finalmente, ela apanhou o balde, cheio até suas extremidades, uma água escura que lembrava piche, refletora dos céus.

Lilly respirou fundo e formou uma concha com as mãos, sentindo o contato frio e úmido, os dedos submergindo apenas para erguerem-se logo em seguida, trazendo a água contra seu rosto, esfriando suas bochechas e desembaraçando seus cílios. Ela fechou os olhos e arqueou as costas para frente, a dor em sua lombar relaxando enquanto os músculos se alongavam.

Mas, quando ela voltou a enxergar, os olhos direcionados para a barra do vestido, algo lhe chamou a atenção. Era uma pequena poça, mas não era água. Era grudenta e cheirava a metal. Ela reconheceu na hora o que era, já que sua pele se manchara dele momentos antes. Sangue.

Aflita, o rosto virou de um lado para o outro no mesmo instante, procurando por quem quer que fosse o dono daquele rastro. Mas nada apareceu de primeira, o coração saltando contra o peito de Lilly e os batimentos e o correr do sangue de suas veias tornando-se um som absurdamente alto conforme a garota lembrava do único ladrão que escapara da mira de Sebastian. E...se ele estivesse ali?

De fato, ele estava.

Parecia que estava morto, e o movimento de seu peito era sutil demais pra ser visto pelas sombras, mas os olhos doentes ainda piscavam, cansados e amarelados. Lilly o encontrou depois de alguns minutos, seguindo a trilha que o sangue que escorria de seu braço deixara sobre a mistura de cimento e grama. O homem escondera-se nos fundos da estalagem, próximo de onde dois cavalos dormiam, presos a estacas de madeira.

Lilly se aproximou hesitante, a respiração pesada enquanto os olhos permaneciam estáticos, as mãos na frente do corpo enquanto o vestido se arrastava e ela o ouvia praguejando entre sussurros. Pelo visto, pela quantidade de sangue que manchava suas roupas, o tiro que Sebastian lhe acertara não fora tão superficial assim, e pedaços do projétil fincaram-se na carne.

Quando a garota se aproximou mais, os olhos tornaram-se para ela e seus ombros voaram para trás. Naquelas condições, demasiadamente debilitado, ele não poderia lhe fazer nada, mas ainda assim ela preferiu permanecer a uma distância considerável.

- Lilly... – Ele disse seu nome e, no mesmo instante, como se flashes explodissem novamente em sua memória, uma mistura de sensações embrulhou seu estômago em níveis de inconformidade. Ela já sabia quem ele era.

- Henry...


*Eeeeeita que já teve revelação hoje sobre quem era o ladrão e sobre as cartas de corso!!! Se preparem que agora vem muito mais pela frente!!!!

*Como sempre, se gostaram, não se esqueçam de deixar um voto e um comentário!!!! Amooo saber o que se passa na cabeça de vocês a cada capítulo novo ahahaha

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top