Capítulo 3 - Rio de dor
A rainha se calou. Todos ficaram em silêncio, mas de alguma forma, senti todos os olhos em mim, exceto os da rainha e do homem ao seu lado, que quando prestei atenção vi sua coroa, ele a encarava como se estivessem tendo uma conversa silenciosa. De repente os medos de outras pessoas me vieram à cabeça e estremeci, contive a vontade de sair correndo. Sequei minhas mãos suadas no vestido improvisado e respirei fundo.
Esperei que Dália falasse algo, que alguém explicasse o motivo de terem me trazido aqui, no entanto ninguém falava nada, meu coração acelerava e soltei o ar que nem sabia que tinha prendido em meus pulmões. O suor escorria pelo meu rosto e colava o vestido em mim, prendi os cabelos em um coque alto.
- Majestade. – Falei receosa, pensei que não seria ouvida, mas agora realmente todos me encararam e minha voz vacilou um pouco quando prossegui. – Sem querer ofender ou interromper o que quer que seja, mas por que eu estou aqui?
- Oh, peço desculpas querida, estava em meio a uma conversa. – A rainha sorriu, aquele foi o sorriso mais gracioso que já vi. Meus medos pareceram esvair-se de mim enquanto observava a fada.
- Annabella quantos anos você têm? – Perguntou o homem com a coroa, que imaginei ser o rei.
- Quinze.
- Por Deus, mamãe, ela é apenas uma criança. – Disse um rapaz que estava ao lado do rei, questionei-me o que estavam pretendendo fazer com tudo isso e, se ficar no orfanato não seria melhor.
- Eu sei, mas Bella é a nossa única esperança. – Disse a rainha. Estranhei um pouco ao ver uma desconhecida usar meu apelido assim tão facilmente. Teria rido da situação ao pensar que a desconhecida em questão era uma fada se sua frase não me chamasse atenção.
- Única esperança para...? – Questionei. A ideia de que eu poderia ajudar esse povo, que é tão poderoso era absurda.
- Bella nossos reinos estão amaldiçoados. – Disse uma garota ao lado da rainha, ela usava roupas pretas que mostravam sua barriga, havia flores e borboletas em seu vestido na região dos seios e ao redor dos braços, um colar negro estava pendurado em seu pescoço e ela usava uma corrente fina prateada na cabeça como uma tiara.
- Celósia! – Falou a rainha de modo repreensivo.
- O quê? Ela precisa saber e nós não temos mais, todo o tempo do mundo. Logo, estaremos todos despencando em direção à morte. – Disse a garota cujo nome, agora eu sabia que era Celósia. A fada parecia carregar uma tristeza enorme, apesar de toda a extravagância.
- Ela tem razão. – Disse o garoto que ocupava o lugar ao lado do que falara anteriormente.
A rainha suspirou e me olhou com olhos tristes. Amélia encarou os dois lados da mesa, desafiando mais alguém a interrompê-la, eu nunca imaginei que uma pessoa de aparência tão amável teria uma expressão tão assustadora.
- Bella, nós estamos amaldiçoados, não apenas nós o reino das fadas, mas também os outros seis reinos. Fomos amaldiçoados há muitos anos, por uma bruxa e talvez apenas você consiga quebrar essas maldições.
Perdi momentaneamente o chão sob meus pés e o oxigênio pareceu não chegar ao meu cérebro. Enquanto as palavras demoravam a ser processadas, senti meus joelhos fraquejarem e agarrei-me a Dália, para não cair ao chão, a fada roxa pareceu imediatamente transtornada com o meu estado catatônico.
- Por que eu? Sou só uma garota e nem sou grande coisa... Nem mesmo ganho as brigas com as outras garotas do orfanato. Afinal, por que não trazer uma delas para cá? Aposto que elas conseguiriam quebrar qualquer que fosse sua maldição. – Perguntei sentindo meu coração acelerar e a vontade de sair correndo aumentava. Praguejei minhas pernas por estarem tão bambas que me impediram de sair correndo.
- Seu coração é forte menina. Você nunca se deixou rebaixar por aquelas pessoas que não mereciam sequer o seu ódio. Não é uma questão de força e sim de caráter, honestidade e bravura para enfrentar os piores obstáculos. – Disse uma fada mais velha que estava sentada a ponta esquerda da mesa.
- Como posso ser eu a escolhida para salvá-los? – Inquiri sentindo meu lábio tremer.
- Têm outra razão para isso. – Disse o rei com um olhar duro para mim. A rainha pôs a mão em seu ombro e disse:
- Existe outra razão, é verdade. Mas antes preciso que você olhe para essas fadas brancas, elas são fadas sacerdotisas e perderam a capacidade de voar. Outras fadas, de cores mais claras já não o fazem e muitas estão começando a sentir suas asas falharem.
Encarei as fadas brancas e vi uma tristeza profunda em seus olhos, que tinham um anel azul demarcando a íris e suas pupilas, eram da mesma cor do anel, era a única coisa que as destacava do resto do globo ocular. Seus pés estavam sujos pela poeira do chão, porém só pude ver os dos homens, pois as mulheres trajavam vestidos lindos, com saias volumosas, corpete em v, as barras dos vestidos estavam sujas de terra.
- Estão morando nessa única casa aqui em solo, algumas caíram enquanto voavam, foi desastroso. – Continuou a rainha. – Não sei quanto tempo levará, até que nós estejamos todos impossibilitados de voar, os de tons médios que ainda não estão impossibilitados já estão sentindo os efeitos e logo também estarão impossibilitados. Essa é a nossa maldição Bella, nós todos vamos perder a capacidade de voar.
- Entendo. – Respirei fundo tentando organizar os pensamentos. – Mas como posso quebrar essa maldição? Até ontem nem sabia que fadas existiam de verdade. Não conheço este mundo, vocês nem me disseram o motivo de me escolherem. O que eu tenho a ver com tudo isso?
Sentir a pressão de todos aqueles estranhos depositando suas últimas esperanças em mim. Fez-me querer fugir daquele lugar. Nunca fui corajosa, certamente também nunca tentei ser mais forte, então não havia como eu quebrar sete maldições. Tamborilei os dedos na coxa nervosamente e esperei que alguém dissesse que tudo não passava de um sonho, todavia a seriedade do momento sumiu com minhas esperanças.
- Vou deixar Dália lhe contar o motivo de você ter sido escolhida. – Dália tocou em meu braço e sorriu de modo amável. Ao longo da vida eu li muitos livros, livros demais segundo Laura (Laura, senti meus olhos arderem com a lembrança), havia algo que era comum em todos os livros, alguém que não era exatamente o que parecia. Minha intuição me dizia que se houvesse neste lugar alguém assim seria essa fada. – Leve-a até lá. E conte toda a história a ela.
- Sim, majestade. – Falou Dália.
- Bella, ninguém aqui, vai obrigar você a fazer qualquer coisa. – Disse a rainha, Celósia abriu a boca para protestar e a rainha ergueu a mão, a princesa calou-se. – A decisão deve ser sua ou nada se resolverá.
- Obrigada. – Falei, não havia mais o que dizer, por mais que fosse triste a situação desse povo, eu não era forte o bastante e não acreditava que a fada roxa pudesse me convencer do contrário. Nada que eles me dissessem me convenceria a seguir adiante.
Dália curvou-se mais uma vez para as fadas negras e eu copiei o movimento. Segui Dália enquanto ela voava baixo seguindo em direção oeste, senti meu estômago roncar enquanto andava, há essa hora no orfanato, o café da manhã já deveria ter acabado, ou será que já era hora do almoço?
Passei a observar melhor a fada roxa, algo nela não me parecia certo, eu sentia que ela guardava algum segredo, minha curiosidade e o meu senso de defesa, berravam em minha cabeça para não confiar completamente nela.
- Bella, o que eu tenho para te contar, poderá ser devastador, mas peço que você fique calma, isso é muito importante. Você entende isso?
- Sim. – Falei sentindo meu coração acelerar.
- Há muitos anos, nossos reinos eram unidos, ninfas, fadas, sereias, elfos, anões, humanos e gigantes, todos nós estávamos unificados em um único e grandioso reino, só que nosso reino era controlado pelo oitavo, que na época era o reino dos bruxos, entretanto eles nos governavam de modo tirano, nós o povo das fadas sequer podíamos usar magia, então os sete reinos uniram-se na intenção de destruir todos os habitantes daquele reino. Sei que parece algo ruim, matar todos, mas na época, foi a melhor escolha que tiveram.
Continuei em silêncio, tentando entender como tudo aquilo se encaixava e o que tinha a ver comigo. Encarando Dália, eu não acreditei que ela pudesse pensar que um assassinato em massa fosse solução para um governo tirano. Imaginei quão mortal essa garota de aparência gentil poderia ser.
- A batalha foi árdua apesar de terem feito um ataque surpresa, ainda assim, eles resistiram. No fim toda a população foi dizimada. Ao menos era o que pensavam, por um dia e uma noite os reinos comemoraram, porém na manhã do segundo dia, os céus tornaram-se enegrecidos e a voz de uma bruxa ressoou por todos os reinos.
“Ela recolheu o poder de todos os corpos que jaziam no que sobrou de seu reino e o usou para nos amaldiçoar. Então cada reino recebeu uma maldição, passamos cerca de um ano tentando quebrar as maldições, até percebermos que era inútil, um dia entre nosso reino e o reino dos humanos surgiu uma... Poça, digamos assim. Essa poça a princípio tinha cerca de um metro e meio de diâmetro.” – Dália respirou fundo.
“Todos os que tocavam as águas enegrecidas dessa poça se modificavam.”
- Como assim, se modificavam? – Interrompi sentindo que enlouqueceria com tantas informações.
- Eles perdiam a vontade de viver, eram sobrecarregados com seus medos e tristezas, a partir de então se isolavam de tudo e todos, eles buscavam desesperadamente, a morte.
- Que coisa terrível. – Afirmei. As árvores gigantescas foram deixadas para trás e agora na paisagem se resumia a algumas árvores baixas e arbustos. Eu estava ofegante, estávamos caminhando há um longo tempo, bom, eu estava caminhando.
Passamos por um campo de plantações, onde fadas amarelas cultivavam plantas, Dália acenou para algumas delas que retribuíram o gesto, outros me encaravam com surpresa no rosto. Outra vez tive a necessidade de correr para longe daquele lugar, precisei respirar fundo para me acalmar. A curiosidade e suspeita se sobrepondo aminha vontade de sair daquele lugar, ouvi barulhos nos arbustos, às vezes ao olhar via um brilho, um rastro deixado por algum animal estranho.
- Com o passar do tempo à poça se expandiu dando lugar a um lago, que separou completamente o reino dos homens do nosso. – Dália me trouxe de volta com suas palavras, a curiosidade era meu pior defeito. Aquilo que arrancava minha tão estimada capacidade de detectar o perigo.
Permaneci em silêncio, tudo isso parecia surreal demais para acreditar assim de uma hora para outra, entretanto levando em conta que conversava com uma fada, eu começava a acreditar no surreal. Afinal minhas opções eram: acreditar no surreal, perceber que enlouqueci de vez ou entre em algum livro. A última estava fora de questão já que eu nunca vi um mundo como este nos livros.
- Nossos reinos se uniram mais uma vez para entender esse lago, tudo foi em vão, os animais fugiram do lugar, o lago matava todos os peixes que tentavam pôr nele. Então uma fada sacerdotisa mergulhou no lago, dizem que ela gritou por longos minutos quando isso aconteceu quando se acalmou, tudo que ela disse aos que estavam presentes no momento, foi que o lago era proveniente de dor e que essa dor não pertencia a ninguém desta dimensão. Ela se matara tempos depois, foi um dia terrível para todos. A deixaram sozinha por um momento e quando voltaram, ela já estava morta.
- Como souberam onde procurar? – Perguntei.
- Certas fadas tocaram as águas, algumas enlouqueceram, outras simplesmente se fecharam...
- Que coisa terrível de se fazer. – A interrompi mais uma vez.
- Era um sacrifício pelo bem de todos, ninguém queria realmente fazer isso. Poucas fadas têm o poder de viajar através das dimensões, as fadas roxas como eu. – Ela fez uma pausa e me observou. – A procura foi longa, mas um dia, uma das fadas que havia tocado a água do lago e voltara sã, foi até sua dimensão, então ela identificou a corrente de dor que ligava seu mundo ao nosso. A essa altura anos haviam se passado, e com isso, o lago se expandira e tornara-se um riacho separando nosso mundo em dois. Por dois anos as fadas tentaram trazer a pessoa para cá, mas foi tudo em vão, por alguma razão nada acontecia, o riacho tornou-se um rio e o desespero cresceu por todos na dimensão.
“Aqueles de nós que viajam não podiam ser vistos naquele lugar, então nada podíamos fazer a não ser esperar. Eu estava sentada no galho da árvore abaixo da janela e ouvi o seu pedido, então tive a sensação de que deveria tentar.”
Os arbustos desapareceram dando lugar a grama seca, árvores mortas e uma água enegrecida e incrivelmente tranquila, apesar da brisa, que soprava nossos cabelos e roupas para a nossa esquerda. Nós paramos a pouco mais de um metro da margem do rio, encarar aquelas águas dava-me uma angustia.
- Este é o rio da dor Bella. O rio da sua dor. Sempre que você sofre física ou mentalmente, de alguma maneira ele se expande, sempre consumindo mais o nosso mundo.
Observei as águas daquele rio, a longa distância entre suas margens, meus joelhos fraquejaram e caí sobre eles ouvindo o fraco “crec” da grama morta se partindo sob meu peso. Lágrimas frias rolaram em meu rosto, Deus, eu condenei esse povo, pensei. Um grito escapou de meus lábios, agarrei a grama morta com as mãos, sentindo as folhas secas se desfazerem em meus dedos.
Sempre sofri sozinha, me machucava diariamente, apanhava e guardava tudo para mim, só nunca passou pela minha cabeça que tantos sofressem pelo meu sofrimento. Saber disso era, mais perturbador que qualquer tortura psicológica que eu já aguentei calada em todos os meus quinze anos. Eu não sofri sozinha, esconder tudo e sofrer em silêncio apenas piorou a situação desses seres fantásticos.
- Bella, você precisa se acalmar. – Falou Dália de modo tranquilo, tentando convencer-me da necessidade de tranquilizar-me, no entanto nada do que aquela estranha me dissesse, faria amenizar a dor de condenar um mundo tão bonito. Ela ajoelhou-se ao meu lado e de modo receoso passou um dos braços ao meu redor. – Sei que é difícil, mas precisa tentar, nem tudo está perdido. Controle-se, por favor, lembre-se quanto maior sua dor, maior esse rio se tornará.
Encarei as águas e vi que a distância da margem para onde estávamos, diminuíra, a água antes completamente parada, agora tinha certo movimento, ou seja, o nível do rio subiu. Sequei as lágrimas do meu rosto e respirei fundo murmurando “Não, não, não...” freneticamente, como se a simples palavra pudesse apaziguar minha tristeza. Pus-me de pé, a fada ainda segurava o meu braço seus olhos violetas me encaravam como se quisesse entrar em minha cabeça para me tranquilizar.
- Eu estou condenando o seu povo. O que acontecerá se isso continuar?
- O rio vai se expandir e consumir todo o nosso mundo. – Disse ela sem rodeios.
Olhei para as águas mais uma vez, de repente vislumbrei cada uma das minhas tristezas e dores. Olhei Dália nos olhos sentindo um misto de covardia e coragem que nunca tive ao longo da vida.
- Se... – Respirei fundo e pigarreei antes de continuar. – Se eu tirar a minha vida, isso vai parar?
- Não Bella, nem imagine isso. Tirar a própria vida é o maior sofrimento que uma pessoa pode causar a própria alma, um sofrimento maior do que todo esse seu rio de dor. Provavelmente... – Ela hesitou. – Consumiria nosso mundo em minutos.
- Então me diga. O que eu devo fazer? – Eu estava quase gritando enquanto segurava fortemente os ombros de Dália e era consumida por um ódio esmagador, uma voz irritante berrava em minha cabeça tudo que eu poderia ter feito para diminuir minhas dores e eu tentava ignorá-la, a fada a minha frente nunca me pareceria mais digna de confiança do que qualquer um que já tenha cruzado o meu caminho.
- Você deve ser forte! – Afirmou ela sem qualquer traço de sorriso em seu rosto, ela estava assustadoramente fria. Me perguntei se esta não era a verdadeira feição da garota que até agora se mostrara gentil. – Deixar a dor de lado, enfrentar essas maldições e trazer paz a sua alma. No fim, tenho certeza que encontrará a felicidade plena, só ela poderá acabar com isso.
Ela apontou para o rio, cujas águas, acalmaram-se novamente. Passei as mãos no meu rosto e cabelo, pensando em como poderia superar tudo isso, ao menos de uma coisa eu tinha certeza, não podia deixar essas pessoas inocentes sofrerem pelo meu sofrimento. Porém antes de tudo precisava pensar, descansar e entender toda essa situação com calma.
- Sua vida nunca foi fácil. – Afirmou Dália. Fiz que sim com a cabeça. O tom de voz dela voltou ao tranquilo inicial o que me deixou desconfortável.
- Às vezes penso que morrer seria um descanso. – Esbocei um sorriso triste. – Corro esse risco nessas missões?
- Talvez, mas não pense nisso, você vai ter sempre alguém consigo, para auxiliá-la e não partirá até estar pronta fisicamente para enfrentar os obstáculos. Sei que nós, reles amaldiçoados, não seremos de grande ajuda, mas estaremos com você. – Dália sorriu. Suas presas levemente afiadas se mostraram, ela parecia a figura de uma das criaturas magicas e perversas de alguns livros, com sua beleza encantadora para ocultar uma mente pútrida.
- Melhor do que uma reles humana, covarde e sozinha. – Também sorri e voltei meus olhos ao rio num suspiro. – Preciso pensar. Não posso partir sabendo o que implicaria a vocês, e também não posso simplesmente entrar num lugar desconhecido esperando enfrentar problemas que não tenho forças para enfrentar.
- Eu entendo. – O sorriso sumiu de seu rosto e o seu olhar voltou a forma gélida.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top