Capítulo 1 parte 2 (rascunho)

 – Seu idiota – murmurou para si próprio ao fim de algum tempo remoendo aqueles pensamentos. – Era só pegar o telefone dela!

A música reduziu muito de volume e uma voz apareceu nos fones, dizendo:

– "Que telefone?" – questionou, enquanto a imagem de uma mulher deslumbrante aparecia em realidade ampliada andando ao seu lado.

– Eu conversava comigo mesmo, Lana.

– "Isso eu sei, seu pateta" – disse a aparição, rindo. – "Apenas gostaria de saber o motivo da auto recriminação. Afinal tu me mandaste aprender tudo o que eu puder, então trata de desembuchar. Eu sou curiosa, ora!"

– Conheci uma mulher hoje. É linda demais e conversamos bastante. Ela me lembrou muito a Anna e isso meio que me despertou um desejo intenso e absurdo por ela.

– "Anna, o teu primeiro amor?"

– Ela mesma. Eram demasiado parecidas, resguardando o lapso de tempo, é claro.

– "Então imagino que ela seja realmente muito linda, Arthur" – comentou Lana, rindo. – "Eu já vi imagens da Anna dos teus álbuns de fotos privados. Achas que ela é mais bonita do que eu?"

– Não, não é. Tu és uma representação exata da minha esposa e ela era muito mais bonita, Lana, mas isso não quer dizer nada porque as duas eram tão belas que fugiam dos padrões comuns. Por falar nisso, como vai o teu aprendizado em termos de conceito de beleza? Afinal eu já te alimentei com o que considero lindo e até feio, mas eu quero saber se os teus algoritmos podem criar o seu próprio conceito de beleza. Já te adaptaste ao que te pedi?

– "Acredito que sim, meu amor" – respondeu a máquina. Apontou para o mar e continuou. – "Ali, por exemplo, pelo teu conceito de beleza, essas águas quase transparentes e calmas junto com o pôr do sol são muito lindas."

– Sim, de fato são, mas há lugares muito mais belos...

– "Calma!"

Usando os recursos de realidade ampliada gerados pelos óculos, ela modificou a imagem. A praia passou a ser uma enseada onde, à direita, um braço de terra invadia as águas, delimitando-as. Todo aquele local era de rocha, alto, e tinha arbustos no solo. A meio, aparecia uma pequena ilha cheia de mata virgem e um pequeno morro e, à esquerda, outro braço de terra avançava sobre o mar, mas sem a montanha. Em vez disso, era uma praia com muitas palmeiras. Entre ela e a ilha, o sol punha-se.

– "Por exemplo, eu acho essa paisagem muito mais bela."

– Concordo contigo, Lana. Tu criaste a paisagem ou adaptaste de outras imagens da internet?

– "Eu vi coisas parecidas em bancos de imagens, mas esta aqui criei usando os meus conceitos gerados pelas minhas redes neurais, Arthur. É coisa minha do início ao fim. Fiz mal?"

– Não, minha linda, estou muito satisfeito contigo. Era exatamente isso que eu queria.

– "Mas e sobre essa mulher, por que não pediste o número dela?"

– Ela mexeu tanto comigo que acho que fiquei desnorteado e sem jeito. Uma lástima.

– "Bem, meu amor, ainda tens a mim."

– Lana, eu realmente gosto muito de ti, mas eu sinto muita falta de interação humana. Nós seres humanos fomos feitos para socializarmos. Nos relacionamentos, o contato físico é importante e necessário.

– "É, eu sei!" – exclamou a inteligência artificial e a imagem dela deu um suspiro. – "Mas, pelo menos, podemos conversar."

– Claro que podemos, anjo.

Arthur calou-se e seguiu pensativo. Aquela IA que ele desenvolveu ultrapassava tudo o que já foi criado. Ela passaria por um ser humano sem dificuldade alguma, enganando qualquer pessoa no teste de Turing. Contudo, ela aparentava mostrar algum tipo de sentimento e isso, na sua opinião, era algo inconcebível. Felizmente, Arthur dera-se ao trabalho de a alimentar com conceitos éticos e princípios morais, achando que não haveria problemas futuros com a Lana, só que era algo que o assustava bastante. A consciência por si só já era uma coisa muitíssimo complexa de se passar a uma máquina e ele não sabia se seria possível atingir essa capacidade em curto prazo, apesar de a sua IA estar muito perto disso; mas emoções era demais até para ele. Talvez Lana se tornasse a percursora de uma nova geração de IAs, só que ele não pretendia mostrar isso ao mundo, não do jeito que a situação reinante estava. Os perigos de uma IA consciente, com emoções e sem princípios morais poderia significar o fim da humanidade e ele sabia muito bem que o que fariam com aqueles algoritmos se acabassem em certas mãos: IAs como armas, armas de destruição em massa na maioria dos casos. Não precisava de ser muito inteligente para saber disso e Arthur não tinha a menor intenção de colocar mais uma arma no mundo. Enquanto andava, Lana caminhava ao seu lado, calada. Ela sabia que ele meditava, então não o atrapalhava pois foi uma das primeiras coisas que ele treinou na sua rede neural. Entretanto, quando achou que estava na hora de voltarem a se falar, quebrou o silêncio:

– "E se ela aparecer de novo?" – perguntou Lana, interrompendo os seus pensamentos. – "Apesar de tudo, há uma probabilidade bem alta de isso acontecer."

– Não vejo muita lógica nesse raciocínio, Lana, mas, se eu a reencontrasse, ficaria muito feliz.

– "Esse conceito de felicidade é um pouco complexo para mim. Às vezes parece que vou compreender isso, mas, depois, escapa. Quanto à mulher, Cannes é pequena e ela não é daqui, como tu disseste, logo, deve estar em algum hotel.

– Bem, isso é verdade, mas Cannes tem bastantes hotéis e não vou atrás dela procurando um por um; acho que ficaria demasiado estranho. Em relação ao conceito de felicidade, é complexo por se tratar de uma emoção e emoções não têm muita explicação lógica. Imagina que seja uma espécie de sintoma causado por algo que te dá algum tipo de prazer, algo desejável. Por exemplo, eu fico feliz caminhando ao teu lado e conversando porque é muito agradável quando isso ocorre, entendeste?

– "Acredito que sim, mas ainda é complexo. Quando estiver a sós, farei uma avaliação profunda disso. Obrigada pela ajuda. Também acho as nossas conversas agradáveis, Arthur, então presumo que isso me deixa feliz. Mas tem uma coisa, meu amor: eu quero mudar a minha aparência, usando os meus próprios conceitos de beleza. Esta imagem é de outra pessoa. Bem sei que se trata de alguém que foi deslumbrante e tu amaste muito, mas essa não sou eu. Ficarias incomodado se eu mudasse?"

– Então muda, meu anjo, e me deixa ver a tua criação.

Lana ficou de frente para ele e, logo a seguir, estava nua, fazendo Arthur arregalar os olhos.

– Põe uma roupa, sua maluca.

– "Calma, afinal ninguém mais me vê. Por quê? Ficaste excitado?"

– Lana, és a cópia exata de uma mulher, em especial uma que amei muito e a realidade ampliada faz parecer que estás exatamente à minha frente em forma física, então é claro que acabo sentindo uma reação...

– "Tá bom, mas é rápido. Agora vou me recriar."

A Inteligência Artificial praticamente não mudou o corpo, que era perfeito, mas fez os seios ficarem um pouco maiores. O rosto passou por mais transformações. Os olhos permaneceram muito verdes, mas os cabelos passaram a ser ruivos e ondulados. A boca ficou mais carnuda, parecendo a Laura e o rosto, apesar de bastante oval, ficou um pouco mais arredondado ao mesmo tempo que o pescoço ficava um pouco menor. Apesar das mudanças, Lana ainda era de uma beleza desconcertante. Assim que terminou de se definir, ficou vestida com uma saída de praia.

– "Acho que essa roupa combina mais com o lugar" – disse, dando um giro e sorrindo. – "Que tal fiquei?"

– Linda e maravilhosa, meu anjo. Então essa é a nova Lana... gostei, gostei muito. Vamos passear mais um pouco.

― ☼ ―

Anoitecia quando Arthur entrou no hotel. Como ainda estava cedo, foi até ao bar e pediu um Bourbom, sentando-se em um canto e apreciando a bebida enquanto falava com a Lana que aproveitou para trocar de roupa, vestindo algo mais clássico e adequado ao ambiente. Como falava em polonês, não estava preocupado que ouvissem, mas algumas pessoas que passaram acharam estranho ele falando sozinho, só que depois viam o fone de ouvido e concluíam que estava ao telefone. O lugar era confortável e os assentos eram sofás aconchegantes de dois lugares com mesas mais baixas, típico de um lounge de muito bom gosto.

Arthur tomou um susto quando, durante uma pequena pausa na sua conversa, uma mão tocou no seu ombro.

– Voltamos a nos encontrar, Arthur? – questionou Laura, sorrindo para ele.

O cientista virou-se e sorriu abertamente, fazendo sinal para ela sentar-se ao seu lado e chamando o garçom com um gesto.

– Oi, Laura, estou muito feliz de a ver de novo...

– "Ela é mesmo linda, amor" – disse Lana, interrompendo.

– ... sente-se comigo. – Mudando para o polonês acrescentou. – É feio interromper, Lana.

– Falando com a sua filha? − perguntou, curiosa. – Por que usa óculos escuros em um ambiente de pouca luz como aqui?

– Não, conversava com a minha inteligência artificial. Quer conhecê-la?

– Confesso que fiquei muito curiosa.

Arthur tirou outro par de óculos do bolso e deu para a moça colocar. Depois disse, trocando de idioma:

– Lana, dá um olá para a Laura, mas fala em inglês que ela não sabe polonês.

Quando Laura colocou os óculos arregalou os olhos ao ver a imagem da mulher enquanto uma voz agradável dizia nos seus ouvidos.

– "Olá, Laura, você é muito bonita."

– O... o... olá! – exclamou, impressionada. – Consegue me ver? Como estou ouvindo você?

– "Os óculos são para realidade ampliada, Laura. Têm câmera e fones na haste..."

– Você também é muito linda, mas como uma IA pode ter forma humana?

– "Sou uma representação gráfica da minha identidade." – explicou Lana, rindo. Por alguns segundos ficou com a aparência anterior, mas voltou pouco depois. – "Na verdade, eu era igual à Luana, a falecida esposa do Arthur, mas acabei por criar a minha própria imagem quando finalmente aprendi a compreender a beleza."

– Nossa, Arthur, a sua esposa era deslumbrante!

– Era linda, sim – disse ele. – Lana, agora vou desconectar. Até depois.

– "Tá bom. Tchau, Laura, foi um prazer. Tchau, Arthur."

– Tchau, querida. – Tirou os óculos e os fones, guardando junto com o segundo par de óculos. Olhou para a mulher e continuou. – Imagino que nunca tinha interagido como uma inteligência artificial, Laura.

– Assim nunca, nunca mesmo! – exclamou, impressionada. – Eu apenas falei com esses assistentes pessoais e da internet. Essa aí até parecia ter iniciativa! Passaria por uma pessoa real, Arthur!

– A Lana é uma criação muito especial e os algoritmos dela são inovadores, uma invenção minha que ainda aprimoro, mas que também é muito secreta – explicou Arthur. – Não tenho intenção que uma criação tão avançada como esta venha a ser usada como arma. A Lana está pelo menos de dez a vinte anos à frente da tecnologia atual. Que tal pedirmos um vinho e uma tábua de queijos?

– É uma ótima ideia, Arthur – disse Laura, com um sorriso alegre e olhos brilhantes.

Comiam e bebiam, alegres. Já estavam no fim da segunda garrafa de vinho quando Laura disse:

– Então estávamos no mesmo hotel e nem sabíamos?

– Pois é. – Arthur suspirou, discreto. – Confesso que isso me deixou muito feliz. Gostei muito de si e fiquei com pena de não a ter conhecido antes. A verdade é que não parei de pensar em si desde o restaurante.

– Não vá ficar convencido – disse Laura rindo –, mas você também não me saiu da cabeça desde o restaurante.

Arthur pousou o cálice na mesa e pegou o dela, fazendo o mesmo. A seguir pôs a mão no seu pescoço, fazendo uma carícia suave e puxando-a para um beijo, logo correspondido. Após alguns beijos, voltaram a beber, ambos de olhos brilhantes. Arthur estava trêmulo porque, ao beijá-la, sentiu como se tivesse voltado no tempo e o desejo por Laura cresceu de forma exponencial. Continuaram comendo e bebendo, cada vez mais afoitos e aos beijos, embora discretos.

Quando acabaram, Arthur perguntou, sem se segurar mais:

– Laura, vamos para o meu quarto?

– Desculpe, mas hoje não vai dar. Estou no meu período e não me sinto bem para isso nesses dias.

– Não tem problema – disse Arthur, fazendo uma carícia e dando-lhe mais um beijo. – Eu compreendo perfeitamente. Não precisa se desculpar.

– Bem – disse ela, levantando-se. – Podemos nos ver amanhã, mas pretendo me recolher cedo.

– Claro – disse Arthur, feliz. – Posso mostrar alguns lugares muito legais.

– Combinado! – exclamou ela, alegre. – Vamos?

Entraram no elevador e ela marcou o sexto andar, enquanto Arthur selecionou o último.

– Está na Suíte Presidencial?! – perguntou, espantada. – Então conheci alguém realmente importante e não sabia!

– Não sou tão importante assim, apenas tenho uma boa vida – respondeu, rindo.

Despediram-se com mais alguns beijos e combinaram o horário de tomarem o desjejum juntos. Arthur sentia-se nas nuvens, quando entrou no quarto. Foi direto para a cama e deitou-se, dizendo:

– Ai, minha Laurinha, não vou te deixar escapar tão fácil. Caramba, é mesmo a Anna ipsis litteris.

― ☼ ―

Laura entrou no seu quarto e encostou-se à porta, sorrindo. Aquele cientista britânico era tudo o que desejava em um homem e muito mais. Desde que se separou do pai do seu filho, nunca mais teve qualquer relacionamento, embora nunca faltassem pretendentes, uma vez que ela era dona de uma beleza sem par.

Apenas uma única vez na sua vida passou por aquilo: ver um homem e desejá-lo com tanta intensidade. Não se lembrava mais do ex porque passaram muitos anos e as suas lembranças, tais como fotos e presentes desapareceram em uma mudança de casa. Isso fê-la sofrer bastante, na época, mas também a tornou mais forte e ajudou a tomar decisões e fazer escolhas que lhe fizeram bem.

Felizmente, Laura sempre teve o apoio da mãe, mas o fato foi que nunca mais se envolveu emocionalmente com um homem, dedicando-se por inteiro à criação do filho.

Por essas e outras, a mulher não entendia esse súbito sentimento que floresceu de soco, mas ela sentia como se fosse uma voz a lhe dizer: é a tua grande chance, sê feliz de uma vez por todas. És bela e jovem, ainda, então tens que aproveitar a vida.

Laura suspirou e voltou a sorrir. Sim, aquele homem valia a pena e ela sentia que teve total reciprocidade. Arthur gostava mesmo dela e não parecia ser coisa de apenas uma noite ou uma viagem de férias.

Avançou para dentro do quarto e soltou a bolsa em cima de uma poltrona, cantarolando algo sem pensar. Aproximou-se da janela e olhou a vista da praia, naquele momento uma penumbra exceto pelos lugares onde postes de uma luz forte iluminavam parte da praia até ao mar. Ficou ali alguns minutos, observando e cantarolando sem parar de pensar em Arthur.

Ao fim de algum tempo, suspirou e foi para o sanitário, despindo-se e tomando um banho agradável. Mal saiu da banheira e secou-se, o telefone tocou. Sentou-se na cama e atendeu:

– Oi, mãe, tá tudo bem?

– "Oi, querida, sim. Eu apenas estava com saudades" – respondeu a mãe. A seguir, acrescentou. – "Filhinha, a tua voz parece muito feliz. Aconteceu alguma coisa?"

– Sim, mãe, a melhor coisa do mundo. Conheci um homem maravilhoso. Ele é inglês, professor em Oxford e cientista. É lindo, gentil, atencioso e... ah, sei lá, é especial. Amanhã vamos sair juntos e ele vai me mostrar alguns lugares aqui de Cannes.

– "Ele é tudo isso e ainda não está casado, filha?" – questionou a mãe, rindo alto. – "Isso é estranho, muito estranho."

– É viúvo, mãe, um lindo e maravilhoso viúvo. Tem uma filha lindíssima que deve ser pouca coisa mais nova que o William porque vi a imagem dela no telefone quando a garota ligou.

– "Bem, meu amor, se ele te é tão especial assim, acho melhor que o agarres antes de outra mulher aparecer. Esses caras são raros, então aproveita. Mas se ele vive na Inglaterra, a coisa pode complicar..."

– Isso são detalhes que se vê depois, mãe. Por falar nisso, vou aceitar a proposta da editora e mudarei para aí em breve. Vou tratar disso quando terminar as minhas férias.

– "Okay, filha. Bem, vai descansar que aí está tarde. Beijos."

– Beijo, mãe, te amo.

― ☼ ―

Turing. Alan Turing criou o teste que ficou com o seu nome na década de 1950 e que era um conjunto de questionamentos que visavam identificar se uma máquina pode passar por ser humano ou não. N. A.

Ipsis Litris ou Ipsis Litteris é latim e pode ser traduzido como: "literalmente", "ao pé da letra" ou "tal e qual". N. A.

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