10. Safira (p.2)
Quando Arthur parou de responder suas mensagens, Lívia ficou um bom tempo encarando o teto no escuro. Estava começando a pensar que apesar de Diana tê-la tratado como uma criança, ela tinha motivos pra ficar irritada. Não devia ter saído de casa escondida, durante o dia.
Depois de algum tempo decidiu que deveria pedir desculpas a ela, e tentar conversar sobre o fato de que ela não era mais uma criança.
Não a encontrou na sala, nem na cozinha, ou no quarto. Entrou no estúdio de arte de Diana, mas ela também não estava lá. Ainda assim, resolveu dar uma olhada nas coisas dela, os desenhos e as pinturas de Diana eram fantásticos, a feiticeira era muito talentosa.
Estava a bagunça de sempre, com todo tipo de material espalhado. Sobre a mesa havia um desenho a lápis inacabado, de um garoto dormindo, com os cabelos espalhados pelos travesseiros e a boca levemente aberta. E Lívia sabia quem era, mas desviou o olhar, aquilo parecia muito particular.
Decidiu analisar uma das paredes, que era coberta de quadros, pintados a óleo. Alguns pareciam muito antigos, como o do rapaz vestido com roupas antiquadas — mas que deveriam ter sido luxuosas na época. — Ele tinha os olhos e os cabelos castanhos, e um sorriso bonito. Entre os dedos tinha uma fita vermelha, e no pulso se enrolavam serpentes azuis. Apesar de Lívia não gostar muito de cobras, ele parecia simpático.
Ao lado estava o quadro de outro homem, este parecia mais velho, e também mais bonito. Tinha a pele morena, a barba e os cabelos escuros, e estava sobre um cavalo, parecendo majestoso.
Ela analisou algumas das outras: Uma moça loira bonita, que usava um batom vermelho como sangue. Duas ruivas que Lívia adivinhou que deveriam ser a mãe e a irmã de quem Diana havia comentado outro dia. Um homem loiro em uma armadura, ostentando uma espada e um sorriso charmoso, ao lado um homem nada bonito, tocando uma harpa dourada.
Alguns dos quadros pareciam mais novos também. Incluindo um de um homem que Diana parecia ter decidido perfurar muitas vezes com uma faca, deixando o quadro e a parede cheios de buracos. Ao lado estava Alice, sua mãe, que ela havia aprendido a reconhecer. Parecia mais nova do que nas outras que Lívia tinha visto, devia ter por volta de uns quinze anos e estava de pé, de frente pro mar, os olhos fechados e os cabelos escuros sendo assoprados pelo vento. Era tão realista que Lívia quase conseguia sentir o cheiro salgado e ouvir o barulho das ondas.
E em mais um quadro estava Arthur, que parecia brincar com os peixes coloridos dentro de um aquário.
— Tive que me livrar desses malditos peixes — disse Diana às costas dela, fazendo com que Lívia tivesse um sobressalto. A feiticeira parecia ter o dom de chegar silenciosamente e assusta-la. — Toda vez que ele vinha aqui, era impossível falar com ele. Arthur não dava atenção, sentava na beira do aquário e ficava conversando com eles. Depois vinha me dizer que os peixes estavam reivindicando liberdade.
Lívia se virou para olha-la. Estava diferente, o cabelo tinha sido amarrado simplesmente em um nó, não usava maquiagem, nem seu típico batom vermelho. a roupa era uma camiseta e shorts largos, e os pés descalços no chão. Estava de braços cruzados e prendia o lábio inferior entre os dentes.
— Estava te procurando. Queria conversar com você — disse ela e Diana assentiu. — Acho que te devo desculpas.
— Eu entendo. Você também tem motivos pra estar aborrecida comigo — respondeu ela —, mas vocês não deviam ter saído. Me preocupo com vocês dois.
Lívia a avaliou por um minuto.
— Arthur está muito chateado com você.
E Diana suspirou.
— Eu imagino que esteja.
— E com razão — apontou Lívia. — Eu não entendo. Eu sei que você gosta dele, não quero que desista de Arthur por minha causa. E ele também gosta de você. Nós somos amigos, queria que você entendesse isso. Devia pedir desculpas a ele.
— Eu preciso ter uma conversa com ele, mas Chloé acabou de me ligar, disse que Arthur viajou. Aparentemente, arrumou o próprio jeito de esfriar a cabeça. — Ela revirou os olhos, apertando os braços um pouco mais próximo do corpo. — Pelo menos ele vai se divertir um pouco, mas a conversa vai ter que esperar. E falando em Chloé, ela vai vir pra cá. — Diana fez uma carranca. — E Miguel vem junto.
* * *
Os dois chegaram a casa de Diana algum tempo depois. Chloé havia levado um filme no celular, e os três assistiram juntos. Foi bom, era como ler um livro, só que em um vídeo.
Mas não só isso. A tarde pareceu como algo normal.
Lívia nunca tinha tido a oportunidade de ter uma vida normal. E atualmente, qualquer coisa que a distraísse da perspectiva de que haviam pessoas que a queriam morta, já era o suficiente para deixa-la feliz.
Estavam no quarto de Lívia, tendo uma discussão esquisita sobre bruxos e vassouras, quando Miguel interrompeu:
— Agora notei uma coisa — disse ele. — Onde está Arthur?
Ele estava sentado no chão, com as pernas cruzadas e encostado no sofá do canto, onde Chloé estava sentada, desembaraçando os cabelos com os dedos.
— Diana só me disse que ele viajou — falou Lívia, que estava deitada na cama com a cabeça pendurada na beira, arrastando os cabelos no chão. — Você sabe onde ele está? — perguntou a Chloé.
— Nova York — respondeu ela.
Miguel olhou confuso para Lívia.
— Seu namorado viaja e você nem sabe pra onde?
Lívia congelou. Já tinha se esquecido de que Miguel ainda achava que ela Arthur tinham um relacionamento.
Teve que pensar rápido. Se sentou na cama e deu de ombros enquanto amarrava o cabelo em um coque.
— Brigamos — respondeu, tentando manter um ar blasé.
Miguel ergueu as sobrancelhas.
— O relacionamento de vocês é bem estranho, não é? — disse ele. — Arthur vive atrás da sua mãe, viaja sem te avisar. E eu imagino bem o que ele vai fazer nessa viagem.
— Não tente se envolver nisso — interrompeu Chloé. — É complicado demais.
— Imagino — disse Miguel por fim.
— Eu preciso conversar com Diana — disse Chloé começando a amarrar o cabelo com um elástico. — Acham que poderiam ficar sozinhos por alguns minutos sem brigar?
— Acho que dá pra me segurar e não apertar o pescoço dele — brincou Lívia e ele riu. Chloé saiu do quarto logo depois do que pareceu um olhar de aviso para o namorado.
Quando a porta se fechou, Lívia ia ser deitar novamente, e acabou batendo o pé no travesseiro e o jogando no chão. Junto, caiu a faca de arremesso que Diana havia lhe entregado, produzindo um som metálico ao bater no chão.
Miguel olhou curioso, e em seguida se aproximou para pegar o objeto na mão.
— Você dorme com uma arma debaixo do travesseiro? — ele perguntou, ficando de pé e começando a girar a faca entre os dedos como se fosse um brinquedo.
— Durmo — confirmou ela, esticando a mão com a intenção de receber a faca de volta.
— Sabe atirar? — ele perguntou, e estendeu a faca pelo cabo para ela, um gesto cuidadoso quase inconsciente.
Ela balançou a cabeça e passou o polegar levemente sobre o fio da lâmina.
— Não sei ainda.
— Então, por que uma faca de arremesso? Não seria mais útil talvez... — ele pensou e deu de ombros antes de completar a frase. — Uma adaga?
Ela olhou diretamente pra ele, rindo.
— Não me diga que você tem uma adaga debaixo do travesseiro?
A pergunta resultou em um sorriso torto, sinal de um claro embaraço. Ele se afastou para sentar-se no sofá.
— Talvez eu tenha sim uma adaga debaixo do travesseiro. Ou algumas espadas debaixo da cama.
— Isso não parece paranoia?
— Falou a garota que tem uma faca de arremesso debaixo do travesseiro e nem sabe usar.
— E você sabe? — ela indagou.
— É claro que sim! — respondeu ofendido, a olhando como se ela tivesse feito a pergunta mais estúpida de todas. — Apenas me diga onde acertar.
Ela olhou para ele franzindo a testa.
— Está falando sério?
— Claro que sim — o rosto dele se iluminou. — Adoro desafios.
Lívia olhou em volta, pensando no que poderia funcionar como um alvo.
— Que tal... — ela continuava virando a cabeça, ate ver algo que parecia razoavelmente adequado. Levantou-se e abriu a porta do guarda roupas. — Que tal essa porta?
— Parece bom — disse ele, e com um movimento rápido, tirou algumas facas semelhantes a dela do bolso, mas as deles pareciam ser de um metal escuro com um brilho azulado.
— Sério? — perguntou ela encarando as lâminas. — Você sempre faz visitas as pessoas armado? Não parece muito amistoso.
— Onde exatamente você quer que eu acerte? — ele perguntou, passando duas das facas para a mão esquerda e mantendo uma na direita.
Lívia procurou uma caneta ou algo que servisse para riscar a porta. Procurou dentro das gavetas do guarda roupas e do criado mudo, mas não encontrou nada. Por fim, usou os poderes com fogo para queimar um local no meio da madeira, criando uma pequena mancha escura.
— Meio Anjo de Fogo — disse Miguel. — Às vezes até me esqueço.
— Acha que consegue acertar? — ela desafiou.
Ele riu e se afastou em direção ao outro lado do quarto.
— Quer apostar? — Ele perguntou, se virando de volta pra ela.
— Com a confiança que você tem em si mesmo, prefiro não fazer apostas contra sua pontaria. Então — ela deu alguns passos para trás, se afastando do alvo improvisado -, vá em frente, me mostre o que sabe fazer.
Ela viu diversão passar pelo rosto dele enquanto ele puxava o braço para trás se preparando para arremessar.
A faca deslizou de seus dedos e se cravou na madeira, no ponto exato em que Lívia havia marcado. E ela bateu palmas impressionada, enquanto Miguel parecia satisfeito.
— Muito bom — elogiou ela. — Agora poderíamos tentar um desafio diferente.
— Prossiga, seu discurso está interessante.
Ela riu, indo ate a porta e arrancando a faca da madeira.
— Conseguiria acertar se atirasse com a mão esquerda? — ela perguntou, devolvendo a lâmina escura para ele.
— Consigo — ele disse e deu de ombros. — Não faz a menor diferença, sou ambidestro.
— Sério? — ela perguntou, sinceramente impressionada. — Interessante, gostaria de ver isso.
— Claro...
— Mas antes — ela interrompeu -, queria tentar uma vez, mas só se você prometer não rir.
— Eu não seria indelicado a esse ponto — disse ele com um sorriso torto, oferecendo a faca de volta.
Ela a segurou pelo cabo e se preparou para arremessar, puxando o braço para trás em uma imitação desajeitada de Miguel.
Estava pronta pra arremessar quando ele segurou seu pulso.
— Errado — disse ele. — A essa distância, você precisa segurar a faca pelo lado da ponta, não do cabo.
Lívia aceitou o conselho e virou a faca na mão. E então arremessou.
E a faca ricocheteou, caindo no chão e fazendo barulho.
— Precisa treinar mais. — disse Miguel, indo buscar no chão. Mas cumprindo o que disse, não rindo dela. — E você não deve jogar a faca, e sim deixar ela deslizar entre os dedos, se não ela dá voltas demais. Assim. — Ele passou a adaga para a mão esquerda e arremessou. E Lívia viu quando a faca escapou suavemente dos dedos morenos, exatamente como ele havia falado. E ele acertou a faca exatamente no mesmo lugar da última vez, mas agora, algo deu errado.
Uma rachadura se abriu na madeira e ela partiu ao meio. A parte quebrada caiu no chão com um baque exatamente no momento em que a porta se abria e Chloé dava um salto no lugar, a mão voando para o peito.
— Jesus! — ela exclamou. — Querem me matar do coração? — ela perguntou olhando de um para o outro, e então notou a metade da porta no chão. — O que aconteceu aqui? Espera... — Ela exibiu a palma da mão aberta. — Eu nem quero saber.
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