CANTE PARA MIM


Estava escuro! Há muito estava assim. Não se lembrava da última vez em que vira o sol, ou que soube identificar os dias, ou ainda que vira coisas além daqueles muros e dos seus objetos companheiros.

Como um gesto automático, deslizou os dedos em farelos para a simples caixinha de música. O som já não era tão nítido como no primeiro dia e nem a pequena bailarina que, apesar de não cansar de girar, estava tão empoeirada quanto a dona que a estava a carregar.

Apertou bem os olhos e pôde, mais uma vez, reviver aqueles tempos. Aqueles bons tempos em que nada mais importava, que não a competição de inverno do ballet. Podia ouvir a música de fundo que dava início a coreografia. Começaria com um Frappé, logo seguido por um Jeté, sempre mantendo a graça e a fluidez para finalmente executar o Rond de jambé e finalizando num Adagio. O equilíbrio corporal era essencial, incluindo a perfeita distribuição das forças interna e externa, fazendo com que ambas trabalhassem em perfeita harmonia a favorecer sua executora. No entanto, algo se perdia no compasso. A música estava a desafinar em determinado ponto e, após isso, a fazia despertar com um forte soluço.

Em câmera lenta, ao sentir a fraqueza de seu punho esquerdo e dedos, observou a caixinha cair ao chão. Parecia o fim até que se deparou com o segundo objeto a lhe acompanhar. Não era algo tão gracioso quanto uma bailarina ao som de uma música com fortes acordes que começavam felizes, até o momento do destoar. Tratava-se de um dente já coberto pelo amarelo do tempo. Quanto tempo havia se passado, afinal?

Ao fechar os olhos pôde se lembrar de uma cálida senhora raquítica, sempre iluminada, que lhe pegava pela mão e contava histórias todas as noites ao dormir. Naquela noite, em especial, um dente havia caído e a senhora fulgurante lhe disse para colocar embaixo do travesseiro. Ao repousar o cansado crânio, se colocava a sonhar com dias bons, com festas, fantasias e música. Aquela música feliz. Sabia que a fada estava para lhe visitar e lhe presentear pela oferta deixada. Porém, os acordes mudaram. O sonho se tornou pesado, até não poder sustenta-lo. No susto, despertou e o dente se perdeu.

Ainda se lembrava daquela voz que lhe cantava e lhe dizia para caminhar ao seu lado. O mesmo que substituía seus sonhos com a vida passada. Seu rosto era a escuridão, assim como aquele lugar... Assim como aquele crânio que jazia há tempos. Pegando o objeto em questão, pôde se lembrar da visita do anjo. Sua música era suave, como as plumas que estavam a lhe enfeitar as asas. Suas luzes reluziam, porém seu semblante era cadavérico. O ouvia cantar e lhe chamar. Lhe cantar e lhe chamar. Lhe cantar e...

Madalena, venha! Cante para mim!

Foi no despertar enfim que percebeu que aquela escuridão estava dentro de si. Cada parte do seu ser ansiava por ouvir aquele anjo da música que estava presente em todos os âmbitos de sua vida.

O ballet já não era suficiente.

Acreditar na fada do dente não lhe preenchia o ser.

A visão da morte lhe parecia mais viva do que qualquer outra vida.

Madalena, venha!

Foi quando decidi ir e me deixar carregar por suas asas e me perder em sua infinita escuridão. Infinita?

Não era a estação gélida que eu sentia. Seu corpo era quente como a brisa do verão mais ardente. Sua melodia não poderia ser mais fluída e seus gestos mais rítmicos. Não havia qualquer movimento do ballet que se poderia comparar. A cada gemido em acordes eu obtinha a certeza de que escolhera bem. Eu estava a me perder na escuridão de sua alma que se colocava a me envolver por completo, em uníssono, com seus lábios e corpo espectral.    

Ao fundo, pude ouvir o choro melodioso de uma nova vida a romper a escuridão e me abarcar de paz. Seria uma criança humana ou seria um anjo?  Alguém vivo, de fato, assim como eu. Era o meu anjo de música.

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