06 - O medo está em toda parte
Acordei num salto sentindo o coração bater tão rápido que parecia que ia sair pela boca. Eu estava suada, as minhas mãos incrivelmente geladas, assim como meus pés. Olho para o celular no criadinho ao lado da cama. Peguei o aparelho e busquei a última chamada. Só uma ligação para o meu irmão de quase um mês atrás.
Olhei para a palma da mão e disse o nome do selo outra vez e a imagem do desenho mal feito do Satoru apareceu na minha mão. Nunca pensei que sentiria tanto alívio.
Mas o medo de dormir tomou conta de mim depois disso. A minha mente só pensava no que viria depois. Só de pensar em ficar presa de novo eu ficava em pânico. Eu acho que os dias que vieram depois eu não consigo descrever direito. Tudo parecia no modo automático. Eu estudava de manhã, treinava à tarde, separava relatórios à noite, voltava para o meu quarto, passava a noite em claro. E depois o ciclo continuava no dia seguinte.
Pesquisei na Internet e li numa matéria que a falta de sono faz perder tecido cerebral, afeta seu humor, sua memória, seu raciocínio e ainda te deixa propício a um monte de doenças. Além de tudo isso o cansaço me consumia.
Os olhos ardiam, meu corpo estava pesado. Consequentemente, meu apetite também ficou afetado, assim como meu condicionamento físico. Eu parecia morta em vida.
— Akira! — Ouvi a voz de Satoru me chamando. Aliás, quando eu comecei a ter tanta intimidade? Mas era justo já que ele me chamava pelo nome.
— Sim?
Eu estava na sala dele em frente a uma pilha de relatórios. Para ser sincera, eu nem lembro em que momento cheguei ali ou o que ele estava falando anteriormente. Estava tudo aéreo, pesado, cansativo.
— Ouviu alguma coisa que eu disse?
— Desculpa... — Eu pisquei algumas vezes e abaixei a cabeça envergonhada. — Eu não estava prestando atenção.
— Você está bem?
— Estou...
— O Kusakabe disse que sua nota foi péssima. Vai ter que revisar a matéria de novo para que você possa passar para as próximas, a intenção era que você visse toda a matéria neste mês para que no mês que vem você já começasse a rever as matérias do segundo ano.
— Eu não estou com a cabeça muito boa.
Ele ficou um tempo em silêncio e depois se levantou de sua cadeira e veio até mim caminhando devagar, colocou uma das mãos sobre a minha, e com a outra tirou a venda. Eu senti o rosto queimar quando vi seu rosto direito. Os olhos eram de um azul cristalino, que pareciam estar olhando para dentro da minha alma. E talvez estivesse mesmo.
— Você tem dormido? — Ele me perguntou com a voz baixa e eu apenas neguei com a cabeça. Não adiantava mentir. Estava evidente no meu rosto. — Você precisa dormir, descansar um pouco. Está abatida. No treino você está cada vez pior.
— Eu... — Eu senti as lágrimas brotarem nos meus olhos mais uma vez. Estava virando algo recorrente. A voz custava a sair, parecia um nó na minha garganta. — Estou com muito medo.
— Você sonhou outra vez?
— Era muito real. O celular tocou, eu atendi, ouvi alguém do outro lado... quando usei o selo, foi como se tivesse me trazido de volta. Eu acordei assustada e olhei nas chamadas. Não havia ligação nenhuma.
— O amuleto está com você?
— Sim. — Eu tirei o amuleto do bolso do blazer e entreguei para ele. A madeira parecia queimada até a metade. Ele franziu o cenho e ficou um tempo com o objeto na mão pensativo.
— Isso é bem ruim.
— Por favor, me diga o que posso fazer eu...
Eu não terminei a frase. Fiquei imóvel. Ele tocou meu rosto com a palma da mão e passou o polegar na minha bochecha olhando intensamente em meus olhos.
— Que tal dormir um pouco?
Meu coração batia acelerado. Mas não era como estava acontecendo todas as vezes. Era uma batida frenética, intensa, a respiração ofegante, e eu parecia hipnotizada olhando para o rosto dele, os lábios dele. De repente, minhas pálpebras pesaram e tudo se escureceu.
Abri os olhos e já não estava mais na sala dele. Parecia o meu quarto, mas havia neblina para todos os lados. Eu me sentei na cama e coloquei os pés no chão e me levantei. Vi Satoru sentado numa cadeira ao lado da porta. Me aproximei olhando para ele que tinha os olhos cobertos pela venda.
— Ele está dormindo. — Uma voz chamou minha atenção. Eu virei na direção do som e vi uma velha sentada escorada numa bengala. Os cabelos cinzas longos e desgrenhados, a pele enrugada, olhos opacos e sem vida, as unhas longas nos dedos esqueléticos. Tinha uma voz arrastada, baixa, grave, usava uma túnica branca encardida.
— O que? Eu estou sonhando? — Olhei para a cama e me vi deitada de barriga para cima com o uniforme que eu vestia. Havia vários selos ao redor do meu quarto e um círculo perfeito ao redor da minha cama.
— Está, se você prefere chamar de sonho...
— Droga! — Abri a palma da mão. — Sensei...
— Não vai adiantar. Os selos... — Ela mostrou os papeis nas paredes com os dedos esqueléticos. — e o círculo. Não podemos sair daqui.
— O que você tem a ver com essa história? Aliás, quem é você?
— Você sabe quem sou. Mas se prefere fingir que não sabe, nada posso fazer.
— Mas que coisa! Você é um dos espíritos malignos? Uma maldição?
— Você vai ter que descobrir sozinha. Nada do que eu disser vai te convencer.
— Eu preciso sair daqui! — Eu disse caminhando até a porta. Quando tentei encostar eu senti como se fosse um choque.
— Não adianta. Senta aí e sossega.
— Merda!
— Podemos conversar.
— Não vou conversar com você! Que raiva! — Tentei ignorar aquela velha e olhei para Satoru dormindo profundamente. Eu me aproximei e fiquei olhando para ele por um bom tempo. Eu levei a mão ao rosto dele. Mas parei antes de tocá-lo, eu não sabia o que podia acontecer.
— Você o deseja, né? — A mulher disse em tom de deboche. Parei o que estava fazendo e me virei para ela.
— Não sabe de nada!
— Você o deseja! — Ela soltou uma gargalhada assustadora mostrando os dentes amarelados e desalinhados.
— Eu não!
Ela parou de rir e me encarou friamente. — Ele disse para você, né? Cuidado com o que você deseja. Com seus pensamentos obscuros.
— Eu não desejei nada. Eu... — A palma da minha mão começou a arder
— Ah... olha só. Seu tempo acabou. Ele pensou em tudo mesmo.
Eu tentei argumentar mais alguma coisa, mas quando dei por mim já era de manhã. O sol entrou pela janela através de uma fresta na cortina. Eu virei o rosto na direção da porta. Satoru não estava mais lá. Ou talvez ele nem esteve ali.
Quando se vive como eu vivia era difícil distinguir a realidade dos sonhos. Talvez tudo tenha sido uma ilusão da minha mente e desejos gravados no meu subconsciente. Desejos esses que eu tinha que conter o máximo que pudesse.
Peguei o celular e olhei as horas e já era quase meio dia. Eu havia dormido mais numa noite do que dormi em dias. Ainda bem que era sábado. Todos os alunos visitavam as famílias com exceção da Maki, do Yuta e do Yuji.
A Maki não se dava bem com a família, aí ela passava os fins de semana com o Yuta que eu tinha uma leve suspeita de que eram um casal. Yuji não tinha família, nem o Megumi. A família da Nobara morava muito longe. Aí eles iam até o centro da cidade, fazer compras, ir ao cinema. Sair um pouco da rotina.
Eu não saía. Não que eu não pudesse, pelo que me disseram, eu não estava presa. Na verdade, nunca perguntei a respeito disso. Talvez eu tenha vergonha de encarar o mundo lá fora. Ou muito medo.
Eu saí do quarto e fui para uma área externa dos alojamentos. Uma escadaria que dava de frente para um jardim zen. Os alojamentos ficavam à direita, a escola ao fundo, os refeitórios à esquerda e ali era um lugar tranquilo onde a gente podia relaxar. Ali era tinha algumas esculturas, onde faziam algumas orações.
Eu sentei na escadaria e abracei os joelhos e fiquei ali com o celular na mão. Eu queria ligar para eles. Queria mesmo, mas eu estava com tanta vergonha. Eu olhei para a tela do celular e busquei o contato da minha mãe. Hesitei por um instante e disquei o número.
Meu estômago doía, talvez fosse melhor ela não atender. Eu já estava pensando em desistir na terceira chamada.
— Alô? — Fiquei imóvel. Minha mãe do outro lado da linha. Senti o choro se formar na garganta. Fazia um bom tempo que eu não ouvia a voz dela. — Filha... é você?
Havia tristeza na voz dela. Isso era o que mais me machucava. Meus lábios tremiam e quando dei por mim estava lá chorando como uma criança. Sozinha.
— Mãe... eu...
— É a Akira? — Ouvi a voz do meu irmão no fundo. — Me dá esse celular.
— Não, deixa que eu resolvo! — Ouvi um chiado no celular.
— Fiquem quietos vocês dois. — Era a voz do meu pai. — Aki?
— Pai. Não sabia que estava em casa.
— É só por um tempo. Escuta, meu anjo. Acho melhor você não ligar para sua mãe por enquanto.
— Mas por quê?
— Aki... não complica mais as coisas tá? Você já falou bastante da última vez.
— Que última vez, pai? — Eu perguntei e pude ouvir ele suspirar. Meu irmão discutia com minha mãe, mas não pude ouvir direito.
— Filha, quando você estiver 100% a gente vai te visitar, tá bom? Fica boa logo. Eu vou estar sempre em contato com a escola.
— Pai? — Eu só ouvi ele desligar.
Não sei se o que doeu mais foram eles não me deixarem falar ou se foi o fato de eles me perguntarem como eu estava. Eu coloquei o celular de lado e deitei a cabeça entre os braços, enquanto abraçava meus joelhos. Eu me perguntei por que viver. Talvez eu devesse ter ficado lá no Reikai para sempre.
Eu havia perdido tudo. Nem minha família me queria por perto. Eu odiava tudo aquilo. Não. Eu me odiava. Odiava muito. Se minha mãe não queria falar comigo, não tinha porque ficar ali naquela escola. Eles haviam me abandonado.
Talvez eu devesse sumir no mundo. Ir embora para nunca mais voltar.
Eu levantei do chão enxugando as lágrimas e segui para os dormitórios. Eu peguei minha mochila e comecei a juntar minhas coisas. Não precisava levar muita coisa. Eu poderia tentar vender o celular, que não valia muita coisa, mas daria para comer por um tempo.
Coloquei a mochila nas costas e abri a porta devagar. Por ser fim de semana, a escola ficava mais quieta. Respirei fundo e saí de fininho olhando atentamente para todo lugar. Saí pelo enorme pátio já avistando uma escadaria enorme adiante.
Eu nem sabia para onde estava indo, mas como havia só árvores para todo lado, provavelmente a saída era ali. Eu apressei o passo já ofegante. Meu condicionamento físico ficou péssimo depois do coma. Quando já estava chegando eu avistei ele. Era incrível como ele estava sempre no meu caminho.
— Vai a algum lugar? — Satoru estava sorrindo. Pensando bem, ele estava sempre sorrindo, algo que deixava ele ainda mais bonito do que ele era.
— Eu vou embora! — Eu disse ofegante sem fazer contato visual com ele.
— Calma, está indo onde?
— Não te interessa! Não tem porque ficar aqui! E nem adianta usar minha mãe ou minha família desta vez! Eles não me querem por perto!
— Tá bom. — Ele disse virando-se de lado e me dando passagem. — Pode ir.
— Eu vou mesmo!
— Tem 19 anos. É praticamente uma adulta. Você toma suas próprias decisões. Embora você aja como uma adolescente de 14 anos com muita frequência.
— Acha que é fácil para mim? Você não faz ideia do que eu tô passando! A minha cabeça tá uma bagunça! A minha vida está uma bagunça!
— É, eu não sei mesmo. Sinto muito.
— Eu devia morrer... — Ele se movimentou rapidamente e tapou a minha boca. De novo.
— Não fale isso. — Ele me encarava por cima dos óculos com seriedade. Ele tirou a mão devagar de cima da minha boca ainda me olhando. — Quer ir embora? Eu acompanho você até a estação, te pago sua passagem para Hokkaido e você vai embora.
— Eu... não quero ir para casa... — Disse cabeça baixa.
— E para onde mais você iria?
— Eles não me querem lá.
— Não diga bobagens. Vem, vamos andando. — Ele disse girando sobre seus calcanhares e andando para a escadaria.
— Para onde vamos?
— Vamos dar uma volta. Vou te levar até Shibuya, na rua Takeshita. Enquanto você decide. Depois você pega um trem de volta para casa se quiser, mando suas coisas depois.
— Vamos a pé? Eu nem sei onde estou exatamente.
— Para de reclamar e vem logo.
Era estranho estar com ele. Ao mesmo tempo que sentia raiva pelo seu jeito enigmático e simplista, onde ele achava que tudo se resolvia com muita facilidade, eu gostava da presença dele. Ele me passava confiança, segurança.
Eu hesitei por um momento, mas ajeitei a mochila e o segui. Acho que naquela hora eu devia ter voltado para a escola, ou recusado a oferta dele. Se tivesse feito isso, nada do que veio depois teria acontecido. Mas eu era ingenua demais naquela epoca.
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