(Aventura em Ação) - Conto 1: A chegada dos Abutres

Boa leitura.

A segunda pena negra que apareceu, carregada pelo vento, trouxe consigo odor de carniça. 

Anikté abaixou o caixote de mantimentos que carregava, e encarou sentido oposto à brisa. 

Franziu pensativa:

"Estão dando a volta na floresta...", deduziu.

— Kiwi! — Gritou uma voz materna, em desaprovação. — Disse para não importunar os Salvaguardas da fronteira! Por que não me chamou para descarregar as caixas?! — A mulher vinha pela estrada de pedra, com a barriga roliça de prole e as bochechas vermelhas. Vestia tecido de algodão e cânhamo (igual a todos os moradores dali), e tinha a melhor receita de 'traças com passas' que Anikté já comeu na vida.

— Bom dia, Tene¹ Jade — cumprimentou, abrindo um sorriso gentil. — Eu me ofereci, juro.

Um rapaz, tão lagarto quanto qualquer outro —magro e comprido—, rolou os olhos e bufou uma risada de canto.

— Ela estava entediada, mãe. Não consegue ficar parada, tu conhece a figura — brincou, esticando a ponta da língua bifurcada para fora. Juntou o caixote à pilha em seus braços sem esforço algum.

— Ora, não seja por isso, tenho muito trigo para debulhar! — Riu Jade.

Anikté retribuiu um sorriso forçado e enrolou uma desculpa esfarrapada, até que os ventos trouxeram mais penas negras, lhe arrancando a atenção às pressas.

E com poucas, vieram inúmeras. Todas cortando o céu da cidade como folhas escuras, amaldiçoadas de morte e podridão. 

Travou a respiração. Uma memória antiga ecoou dentro de sua cabeça:

Itza... Um dia os Abutres chegarão. — A conversa reaparecia, nítida, em todas as noites de insônia. — Trarão consigo a pior das batalhas, e deixarão a pior das perdas. Entende isso?

Quando se comprometeu com Tlatocapili² e a Salvaguarda, escolheu carregar a responsabilidade de poucos. Arcou com treinamentos árduos, invernos severos, e arcaria novamente, com tudo, se precisasse.

Pelo seu povo, arcaria sempre.

Anikté tomou ambas as mãos de Jade e fitou olhos preenchidos de medo. Kiwi, logo atrás, tremia quieto.

— Quando eu voltar — prometeu —, te ajudarei com o trigo.

O sorriso que deu a ambos na despedida, desapareceu assim que se virou. Correu de volta à fronteira da cidade, cortando caminho por cima dos monumentos de pedra gravados com os mais diversos símbolos e histórias. Por onde passava, via pessoas rezando, reconhecendo o presságio — sentia o mesmo peso no peito, ainda que não transparecesse.

Na saída central, um grupo de Salvaguardas já estava reunido.

— Três equipes — escutou Reptalitl organizar —, um mantém o posto aqui. Ah! Anikté apareceu! — Exclamou ao vê-la. — Achei que tinha desaparecido também.

Um arrepio tomou sua espinha ao escutar tais palavras.

Quem desapareceu? — Ela perguntou fechando as mãos em punhos, contando, mentalmente, cada um de seus colegas.

— Ton-Geico estava em patrulha nas redondezas, escutou Eztéli na floresta conversando com alguém que coletava ervas, e de repente ela sumiu. — Suspirou.

— Eu vou — disse, endireitando as costas. Uma vermelhidão tomou conta de seus olhos e as barbatanas tremeram. Quando viu Reptalitl abrir a boca, retrucou. — Esse sinal veio da minha área, não ficarei aqui.

Definido o grupo de quatro, Anikté coordenou a ida enquanto o supervisor manteve a retaguarda — Reptalitl era um lagarto forte. Cor de musgo, capim e mel. Ótimo pescador.

O bosque seguia por trilhas abertas, de pedra e chão batido. Clareiras iluminavam o percurso pela selva. Copas altas, mar de arbustos e rochas repleta das mais diversificadas vidas não bípedes: invertebrados, fungos superiores e minimíferos³ de caça. Frutos comestíveis, medicinais e funcionais, decoravam raízes, troncos e galhos.

À medida que se afastavam da circunvizinhança, mais gelada a floresta ficava. Escurecida, densa, e muito, muito menos segura.

Anikté parou, notando, próximo à raiz de uma pitangueira, cogumelos jogados pelo chão.

Recolheu um: Não cresciam ali, disso tinha certeza.

O bater de asas ressoou dos céus, descendo feito rasante. Pressionou as costas contra o tronco e se agachou em posição de defesa. Dois vultos, de cores opostas, cruzaram sua frente em pleno voo. Checou os colegas escondidos nas folhagens, contou, e então arregalou os olhos.

Reptalitl havia sumido.

Anikté apertou o bastão com força. Suas escleras se tornaram um vermelho intenso. Saiu do esconderijo expondo os dentes numa expressão raivosa.

"Malditos", xingou, escaneando os arredores, enfurecida.

Não distante, encontrou uma pena caída — clara, macia, do tipo que oferecia cócegas à ponta dos dedos.

A amassou sem piedade.

— Plumagem nova? — Perguntou um dos colegas, se aproximando. — Não combina com eles.

— São todos iguais. Essas aves de rapina — rosnou entredentes. A vontade de escalar a pedra mais alta e atacar o primeiro pássaro que visse era forte.

— Ah, que rude! — Uma nova voz chamou sua atenção. Virou-se para trás no mesmo instante.

Pela primeira vez, Anikté conheceu uma ave branca.

Ela tinha olhos azuis, igual céu sem nuvens. Suas asas não eram lisas, nem brilhavam como lâminas na curva da luz. Pareciam mais um punhado de lã fofa, sem bico. Sua aparência causava uma sensação quase indesejada de esmero.

Confusa, e por instinto, Anikté tomou um passo à frente. A ave levantou as asas em redenção.

— Perdão! — Encarou o bastão, assustada. — Sou pacífica, juro! Não sabia que estavam em guerra, eu só vim coletar ervas...

A bolsa lateral, apoiada em seu ombro, carregada de galhos, folhas e frutas, servia bem de álibi. Anikté encarou os cogumelos soltos pelo chão, conectando algumas pontas soltas daquela história.

— Foi você que conversou com Eztéli mais cedo? Viu quem a levou? — Perguntou com seriedade.

Suspirando, a ave abriu uma expressão amargurada.

— Eu sinto muito por isso... foi o mesmo Abutre de agora. O que recém levou seu amigo. Ele vem me perseguindo desde as colinas. — Apontou, hesitante, com uma asa. — Achei que o tivesse despistado na floresta.

Anikté endireitou as costas de modo autoritário.

— Tonratitl — chamou o colega, que prontamente saiu do arbusto onde se escondia —, volte com Elliora para a cidade. — Dito isso, apontou seu bastão para a ave branca. — Nós vamos atrás daquele Abutre.

— O-oh, céus — gaguejou a coruja. — Não é perigoso demais?

— Contanto que Reptalitl ainda esteja vivo, eu não ligo.


[Desenho de minha autoria para melhor ilustrar a personagem secundária deste conto:]

Nota de Rodapé:

Tene¹ = Forma de tratamento destinado a fêmeas que têm função materna dentro da tribo (Não muito diferente de "Senhora", ou "Dona").

Tlatocapili² = Nome dado ao chefe da tribo.

Minimíferos³ = Mamíferos de pequeno porte que não são antropomórficos, como outros dessa história (normalmente servem de alimento àqueles que são).

999 palavras

Concluída em 12/04/2024.


Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top