Revelações

O olhar cético de Matthew me ajuda a entender que ele estava em duvida se eu realmente havia dito tais palavras.

- Para ajudar e evitar que mais pessoas percam a vida, eu preciso saber com o que estou lidando e pelo que estou me arriscando.

- Eu achei que já havia deixado claro que não ia te contar nada. - O olhar frio de Matthew me estremece.

- Você passou dois meses fugindo das minhas perguntas! - Atitude de Matthew me irrita. - Tudo o que eu quero é ajudar você e as pessoas de Angela e mesmo assim você me trata desse jeito? Mesmo quando eu quase morri? - Dou um soco em seu peito, com a maior força de uma mulher que não sabe nem dar um soco direito consegue.

Matthew me fita com um olhar desprezível, mas logo suspira.

- Quer saber? Tudo bem. Eu já estava cogitando a possibilidade de te contar. - Ele parece incerto quanto a sua decisão. - Já vou deixar claro que sendo autóctone, eu não devia te contar nada do que está acontecendo. Essas informações são exclusivas dos moradores de Angela.

- Você quer dizer o mesmo morador que traiu seu próprio povo? - A expressão de incômodo no rosto de Matthew, deixa claro que ele entendeu a quem eu me refiro.

Matthew pigarreia.

- Acredito que você já deva saber o básico sobre a cidade, então vou direto aos mistérios que você conheceu nos últimos meses. - Matthew fala com sacrifício. - A Estátua de Angela é uma história contada na cidade como se fosse uma lenda. Até os dias de hoje, nunca houve alguém que disse ter visto-a. Tal lenda diz que quem encontrar a Estátua, a imagem e semelhança de Angela, será capaz de se comunicar com ela, podendo também descobrir todos os segredos da cidade, incluindo o que aconteceu com os nossos antepassados.

- Como assim? O que aconteceu com os seus ancestrais?

- Isso não vem ao foco da conversa. - A resposta evasiva de Matthew me deixa intrigada. - De qualquer forma, você deve ter entendido o que significa para mim fazer essa descoberta incrível.

- Certamente. Nada é mais importante para você do que Angel’s Land.

- Nada mesmo. - Prontamente Matthew concorda comigo, o que não me surpreende. - Agora vem o que mais me preocupa no momento: o Santíssimo Cálice. Confesso que ao ver o Cálice eu me desesperei, mas eu precisava de outra confirmação se aquele era realmente o cálice certo, e eu tive momentos depois.

Penso por alguns segundos, quando lembro de algo que encontrei na caverna e deixou Matthew abalado.

- Você está falando da Epígrafe?

- Exatamente. O Santíssimo Cálice é um dos tesouros de Angela que foi perdido durante uma conturbação que houve na cidade, porém aparentemente ele estava muito bem guardado no seu devido lugar. Quando algum anjo sucumbia aos pecados, ele era renegado e expulso da cidade. Entretanto, ao se arrepender e receber o perdão de Deus, era permitido que ele tomasse uma gota do sangue de Angela e ser expurgado. Para haver essa transição, era necessário um ritual, onde era usado o Santíssimo Cálice, único recipiente capaz de suportar os poderes do sangue de Angela.

Escuto com atenção cada palavra que sai da boca de Matthew, ficando completamente fascinada por finalmente estar conseguindo respostas, do que anos de pesquisas não foram capaz de me dar.

- Lendo a epígrafe, eu percebi que aquela caverna nada mais é que o local onde o ritual era feito.

- Ou seja, de fato aquele é o Santíssimo Cálice. - Curvo as pernas com o queixo encostado nos meus joelhos, pensativa. - Matthew, por algum momento você pensou que eles podem querer não apenas fama e riqueza?

- Como assim?

- Você acha que existe alguma chance do cálice ainda funcionar? Sei lá, algum descendente conseguir os poderes dos anjos?

- Claro que não. O Santissimo Calice só funciona com anjos legítimos, aqueles que desceram dos céus juntamente com Angela. Além disso é necessário o sangue da própria para ser feito o ritual.

- É, faz sentido. Essa história está seguindo proporções gigantescas.

- É por isso que o Cálice não pode sair de Angel’s Land de forma nenhuma.

- Tem um ponto de toda essa história que esquecemos por mais tempo que eu gostaria: as letras que encontramos no buraco.

- Eu passei esses meses pesquisando sobre elas, mas não consegui algo que fosse realmente útil. Ainda há muito livros na Biblioteca Municipal de Angela que falam sobre sobre anjos e sobre a cidade que eu ainda não li, então talvez nossas respostas possam estar lá.

- Temos que ser bastantes perspicazes para encontrar algo que nem temos noção do que seja.

- Nosso próximo passo será continuar as investigações acerca das letras. Temos que aproveitar a oportunidade deles terem poucas informações a respeito da Estátua de Angela.

- Você tem certeza que eles têm poucas informações? Nós estamos lidando com Judith, a pessoa que tem acesso a documento de alta importância sobre Angela.

- Se eles realmente soubessem sobre o que se trata as letras, pode ter certeza que eles já teriam agido. De qualquer forma, vou amanhã pegar alguns livros emprestados, que nos possam ser úteis. Temos que marcar um lugar onde ninguém nos veja juntos.

- Por que? - Depois de andarmos juntos tantas vezes, agora ele quer que ninguém saiba?

- Todos os livros sobre anjos e sobre a cidade, são de uso exclusivo para os moradores de Angel’s Land. Se alguém ver uma estrangeira lendo tais livros, o resultado não vai ser bom. - Seu olhar perdido e serio me assusta.

- O que você quer dizer com isso?

- Deixa pra lá, não queira saber… - Matthew hesita e desvia seus olhos dos meus por alguns segundos, até voltá-los cheios de preocupação e dor. - De verdade, não faça nada que eu te fale para não fazer. Angela é uma cidade diferentes de qualquer outra e seus habitantes também. 

As palavras misteriosas de Matthew me deixam intrigada. Ao contrário das vezes que Matthew simplesmente era grosso, frio e irritante, dessas vez ele fala sério, deixando-me ainda mais tensa. 

- Vamos fazer o seguinte: vá até minha casa amanhã. - Matthew tira seu caderninho de anotações de sua mochila, rabisca alguma coisa e me entrega. - É onde eu moro. Esteja nesse endereço amanhã, as 11 horas.

- Tudo bem. - Já que não posso ler os livros livremente, não vejo outra alternativa.

- Ah, antes que eu esqueça. - Matthew tira de sua mochila uma chave com um chaveiro do calendário Maia.

- Essa é a chave que encontramos na caverna?

Ele assente.

- Eu andei pensando e acho que não é o melhor momento para investigarmos a quem pertence essa chave.

Tais palavras me deixam conturbada.

- Como assim? Essa chave pode ser um ponto crucial para descobrirmos os próximos passos daqueles cinco, e até conseguir pegar o Santíssimo Cálice de volta.

- Eu sei disso, mas é por hora. Se por acaso eu ver que estamos investindo tempo demais nas pesquisas e não conseguirmos avançar, nosso foco será essa chave.

Fico relutante quanto ao plano de Matthew, porém balanço a cabeça positivamente, concordando com ele.

Seguindo o endereço que Matthew me deu no gps, percebo que estou no lado antigo da cidade, na área residencial. Todas as casas estão seguindo o padrão de arquiteturas antigas, como a românica e a gótica, mas consigo ver a modernidade que os próprios moradores dão as suas casas. Enquanto o design de algumas casas são feitas de pedras, há portas que são feitas com madeira maciça, já outras são frisada. As janelas são feitas com vidro e alumínio ou madeira, em seus variados tamanhos.

Sendo uma área residencial, vejo crianças correndo por todos os lados, brincando de futebol, vôlei e de bonecas, então dirijo com total cautela e em uma velocidade que uma criança correndo possa ultrapassar o carro tranquilamente. As crianças que estão brincando no meio da rua, abrem espaço para o automóvel passar, posteriormente voltando a agitação.

- Crianças! - Chamo um grupo de três crianças, uma menina e dois meninos, que brincam na calçada. Elas se entreolham e todas se aproximam do carro com relutância.

“Eu sou tão assustadora assim?”

- Vocês sabem me dizer onde Matthew mora?

A criança ruivinha que está abraçada com um ursinho de pelúcia, abre um sorriso ao ouvir o nome. 

- Ah, o mano Matthew!

- O herói da nossa cidade! - Os outros dois meninos começam a fazer poses de heróis.

- Tia, ele mora onde tem aquela árvore grande. - Ela aponta para uma casa onde tem uma Noivinha, com belíssimas folhas brancas como a neve, fazendo com que a casa se destaque entre as outras.

- Obrigada, querida. Tchau-tchau. - Dou partida no carro, sentindo uma fisgada no meu tornozelo e gemo levemente de dor, nada que me impeça de dirigir. Paro o automóvel novamente ao chegar à entrada da residência de Matthew. Saio do carro, e agora diante da casa, pego-me completamente admirada pela beleza da moradia. Entre todas as casas que passei, essa é a mais moderna. O único aspecto antigo que se mantém é a estrutura de pedra, que combina perfeitamente com os pilares de madeira, o design das luminárias e as janelas compridas com venezianas. O jardim é completamente deslumbrante, cheia de flores com cores diferentes e decoradas com pequenas pedras brancas que formam um caminho até a porta da frente.

Volto ao foco da minha visita e toco a campainha. Segundos depois, eu escuto passos vindo do outro lado da porta e o tinir de chaves na fechadura.

- E aí, Charlotte? - Vestido apenas com uma calça, com o peito a mostra e com os cabelos desgrenhados, Matthew me recebe.

Minhas bochechas queimam ao ver seu lado desleixado.

- Tudo bem? - Fico preocupada por não o ver 100 por cento disposto e terrivelmente cansado.

Ele coça sua cabeça e solta um bocejo.

- Tudo sim, só fui dormir tarde ontem por conta da faculdade. - Com toda essa agitação acerca de Angela, creio que Matthew não deve estar tendo tempo para estudar. Justo no seu último ano, toda essa confusão acontece, atrasando um de seus sonhos.

- Se você quiser, a gente pode adiar as leituras para amanhã, quando você estiver melhor.

- Claro que não, isso não é nada. - Logo em seguida, ouço o toque de um celular. - Com licença, me dá um minutinho.

- Tudo bem.

- Oi Laylah… Não dá, vou estar ocupado hoje. - Matthew adentra sua casa. Sua voz vai sumindo, conforme os passos vão se distanciando.

- Pronto. - Poucos minutos se passam, quando Matthew retorna, agora vestindo uma camisa preta, com a estampa de um buda dourado, acompanhado com um bracelete de couro e uma corrente de prata no pescoço.

- Só me dá um tempo de ir buscar os livros, eu acabei esquecendo de ir ontem. Enquanto isso você pode me esperar na sala. - Ele me leva a um cômodo com móveis elegantes, a mesa de jantar é de feita de vidro, as cadeiras são de madeira, com assentos aparentemente confortáveis, o sofá e poltronas seguem o mesmo estilo, e há um lindo lustre no teto.

- Não tem problema. - Já que eu não posso ser vista com Matthew enquanto ele pega os livros, não tenho outra opção a não ser esperar.

Escuto a porta batendo, indicando a saída de Matthew.

Alguns minutos se passam quando começo ouvir algo ranger, como se fosse sons de degraus de madeira, logo em seguida passos começam soar pela casa.

“Eu estou sozinha aqui, não estou?” - Finjo não ter ouvido nada, mas sinto meu coração acelerando.

Os passos começam a ficar mais altos, conforme se aproxima, até finalmente aparecer a imagem de uma senhora branca de cabelos grisalhos, com os olhos castanhos claros gentis, mas com uma expressão curiosa no rosto.

Relaxo o corpo brutalmente, ao suspirar aliviada.

- Olá, bom dia, tudo bem? - Ando até a senhora e estico meu braço para cumprimentar-la.- Me chamo Charlotte, sou amiga de Matthew.

Seu olhar curioso muda para simpatia. É claro, afinal ela viu uma pessoa desconhecida dentro de sua casa.

- Ah, ele me avisou que você viria. - Ela aperta a minha mão. - Eu me chamo Anaita, sinta-se a vontade.

- Obrigada. - Anaita retira-se andando calmamente. 

Barulhos de talheres e panelas batendo soam vindo de dentro da casa. Saio seguindo os sons até chegar na segunda porta do corredor e vejo a senhora de costas, cortando alguns legumes.

- Deixe-me ajudar a senhora.

- Não precisa, querida. Eu dou conta de fazer o almoço.

- Eu insisto. - Solto um sorriso gentil.

Ela me entrega uma tábua, uma faca chef e alguns legumes.

- Senhora Anaita, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta. - Ela me olha curiosa. - Poderia me contar mais sobre Matthew? Eu gostaria de conhecer-lo melhor.

Ela olha para baixo, pensando e logo volta-se para mim novamente.

- Seu nome é Charlotte, certo? Me desculpe, mas não posso falar isso. Eu entendo que ele é calado, até mesmo misterioso, mas quem deve lhe falar sobre isso é ele próprio. - Suas palavras soam educadas e gentis, mas ao olhar as feições faciais de Anaita, seu olhar é vago e frio.

- O que você está fazendo na cozinha? - Meu coração vai até a boca e volta, quando escuto a voz repentina de Matthew.

- Meu Senhor que susto, Matthew! - Coloco a mão no peito, respirando fundo.

“Espero que ele não tenha escutado o que perguntei a sua avó.”

- Vó, não é você que não gosta que visita ajude em nada?

- Ela insistiu tanto que não tive outra opção, além disso não estou mais na idade de ficar em pé por muito tempo na cozinha. - Senhora Anaita coloca uma das mãos nas costas, apoiando-se.

- Era só me pedir ajuda. - Matthew suspira.

Com três pessoas na cozinha, rapidamente o almoço fica pronto. Nesse período, consigo fazer uma análise superficial da relação de Matthew com senhora Anaita. Confesso que não vejo o nível de afeto que espero entre uma avó e seu neto, é claro que conhecendo a personalidade do jovem não imaginava muito carinho envolvido, porém a relação deles é mais distante do que isso. As palavras que dizem e as atitudes para com outro são de pessoas que se conhecem a pouco tempo, mesmo que vindo de Matthew, sinto uma espécie de respeito, mas nada além disso.

Após almoçarmos, Matthew me guia até seu quarto que fica no segundo andar da casa. Ao adentrar seu cômodo me surpreendo com a decoração, sendo bem mais simples e mais arrumado do que eu esperava. O único canto que vejo bagunçado é a sua mesa de canto, deixando resquícios de uma noite de estudos. As cores predominantes do ambiente são branco e marrom, deixando o quarto iluminado, totalmente contrario do quarto preto e escuro que eu imaginava. Sua cama de casal é quase encostada a uma parede com uma janela que vai até o chão de correr, possibilitando a passagem para a sacada. Ao pé da cama há um assento largo estufado, onde eu me sento e fico observando o ambiente. O dono do quarto fecha a porta e seu rosto se contorce em uma expressão tensa e pensativa.

- Você está bem? - Pergunto quando Matthew puxa a cadeira de sua mesa de canto, posicionando-a na minha frente e sentando. Seus olhos bordô me fitam fixamente, deixando me encabulada e o silêncio reinando no ambiente. 

- Eu ouvi sua conversa com minha avó. - Matthew finalmente quebra o silêncio.

- Eu sinto muito, Matthew, não foi minha intenção se intrometer na sua vida. - Me arrepio só de pensar na bronca que ele vai me dar, e não vai ser sem razão.

Ele levanta a palma da sua mão, fazendo-me ficar calada novamente.

- Você poderia ter me perguntado pessoalmente, eu não me importo em falar sobre tal assunto. - O defensor de Angela relaxa seu corpo sob a cadeira, inclinando-a para trás. - Bem, por onde eu começo? 

A fala de Matthew me pega completamente de surpresa, mas sinto-me aliviada em  conhecê-lo mais a fundo.

- Eu sou fruto de uma relação extraconjugal. Enquanto se relacionava com o meu pai, minha mãe começou a desenvolver obsessão por ele e o perseguia sempre que possível, porém isso começou a piorar ao saber que estava grávida de mim e convenientemente começou a me usar como desculpa para manter meu pai perto de si. Para meu pai, essa foi a pior notícia que poderia receber, vindo de uma família regrada e cheia de títulos, o escândalo de ter um filho ilegítimo era inconcebível. Por um certo tempo meu pai conseguiu comprar o silêncio de sua amante, que durou dez anos, quando ela faleceu de câncer e levou o segredo dele para o túmulo. Com medo que eu fosse atrás dele, meu pai passou anos de sua vida tentando me matar, mandando seguranças ou sei lá quem mais fosse, mas obviamente ninguém nunca consegiu, era como se algo me protegesse, não sei explicar o que acontecia. - Matthew solta um meio sorriso, tentando mostrar que não se importa, mas eu consigo ver sua dor. - O dia que vi meu pai pela primeira vez, foi também o dia que ele tentou me matar pessoalmente. Por anos mandando gente me eliminar e todas as tentativas sem sucesso, parecia que ele finalmente se cansou e decidiu resolver a situação com suas próprias mãos, mas ele se deparou com o mesmo problema que as outras pessoas, ao descarregar a arma em mim e todas as balas acertarem outros alvos. Além de chegar na cidade em estado de insanidade, ele foi embora pior ainda quando viu tal cena inacreditável. Alguns meses se passaram quando uma mulher se dizendo minha avó, mãe do meu pai, apareceu nessa casa. Quando a vi, ela parecia ser uma mulher sensata e gentil, com tantas palavras doces e de compreensão que falava para mim, mas no fundo ela é uma pessoa igual a seu filho, tentando comprar o meu silêncio e pedindo para nunca aparecer na sociedade como filho de Madden Windsor, dono de empresas de alto prestígio e membro da nobreza da Inglaterra. Ela ofereceu alta quantidade de dinheiro como “pensão”, embora eu não querendo nada vindo deles. Mas a minha avó cuidava de mim sozinha, mesmo não sendo a sua obrigação, então eu aceitei o acordo e interpretei esse dinheiro como uma forma de agradecimento a ela. Alguma pergunta? - Após soltar tal bomba, Matthew pergunta como se ele tivesse explicado uma simples questão de matemática.

- Eu sinto muito… tanto pela sua mãe, quanto pela situação toda. - Falo com dificuldade, por sentir um nó em minha garganta, logo lágrimas de dor e arrependimento escorrem pelo meu rosto. 

- Não se preocupe. Eu não sinto a ausência de alguém que nunca foi presente.





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