Capítulo 1
O FAVOR
Acordei toda coberta de suor e todo o meu corpo tremia. Aquele pesadelo... novamente. Depois de um suspiro profundo e quase doloroso, eu cobri meu rosto com as palmas das mãos. Meu coração estava batendo tão rápido, ainda mais do que na outra vez eu tive esse pesadelo.
Faziam vinte e sete dias que eu não sonhava com isso. Vinte e sete dias que eu estava livre, que pensei que ele jamais voltaria... até agora.
Era sempre a mesma coisa. Uma sala branca, com lençóis brancos, pessoas que eu não conseguia ver os rostos estavam ao meu redor. Eu gritava dentro de mim, presa dentro do meu corpo, tentando me mexer... mas era em vão.
Então depois vinha o fogo, chamas por todo o lado e gritos. Minha irmã me puxando junto com ela, dizendo que eu precisava fugir dali. E assim acabava.
Eu podia sentir como lágrimas quentes começavam a correr pelo meu rosto. Eu não posso. Eu não posso mais. Eu não quero ver isso nunca mais. Eu tive o suficiente dessa dor quase todas as noites. O que fosse que tivesse acontecido comigo já acabou, e mesmo eu não lembrando de nada, doía.
Olhei no relógio e eram cinco e meia da manhã, mas eu sabia que não conseguiria voltar a dormir. Eu nunca conseguia dormir depois desses pesadelos, mas depois de tantos dias sem eles, eu tive esperança que estivesse curada.
Eu virei de um lado para o outro até dar a hora de eu me preparar para o trabalho. Quando estava me encaminhando para a frente dos portões para fazer meu primeiro turno na vigia, Rick me parou e disse que precisava falar comigo.
Nós entramos na sala do conselho, onde havia uma grande mesa de madeira, alguns sofás e cadeiras espalhadas pela sala grande.
— Como você está? — ele perguntou enquanto se servia de um café e eu neguei quando ele me ofereceu um.
Geralmente tínhamos essa conversa uma vez por semana, e eu sempre respondia mesma coisa.
— Ótima.
Ele me perguntaria se eu estava dormindo bem e se minhas conversas com Levi — um dos médicos daqui — estavam me ajudando e eu responderia positivamente para todas as perguntas.
— Está dormindo bem?
— Estou.
Ele se encostou na mesa e bebeu um gole do café. Ele sabia que eu estava mentindo, estava claro que ele queria dizer algo pela maneira como seus lábios silenciosamente formaram o começo de palavras diferentes, mas ele segurou a língua.
— Tudo bem — ele sorriu um pouco, conformado — Eu me preocupo com você, Angela. Por isso faço essas perguntas.
— Como se o médico não te contasse tudo — eu digo. Rick apostou que algum tipo de terapia me ajudaria, e lembro dele implorar para que eu conversasse com o médico uma vez na semana. Eu era grata por ele ter me salvado e aceitei, mesmo odiando cada segundo que passava naquela sala.
Eu não gostava de lembrar de quando cheguei aqui. Mas Rick e as pessoas daqui me estenderam a mão, cuidaram de mim a troco de nada, simplesmente porque era isso que eles faziam. Eu não entendia no começo o porquê de terem me ajudado, eu não tinha nada a oferecer; eu só queria que me deixassem em paz. Queria ter minhas lembranças de volta, saber o que aconteceu comigo.
O médico diz que posso estar com estresse pós-traumático ou que minha perda de memória seja resultado do ferimento na cabeça que sofri quando Rick me encontrou. De qualquer forma, minhas esperanças de encontrar minha irmã se foram. Ela estava morta. Eu balancei minha cabeça para afastar os fantasmas.
— Você está bem? — Rick perguntou, agora perto de mim. Eu sequer o vi se mover.
— Sim... estou bem — eu dei um passo para trás, sem vontade de encontrar seu olhar com esse pensamento me consumindo de dentro para fora. Rick limpou a garganta e começou.
— Como sabe, estamos nos preparando para reconstruir a ponte — ele disse e deixou a xícara sobre a madeira da mesa — Isso vai levar alguns meses, e a maioria das pessoas daqui vão estar no acampamento ajudando.
— Precisa de mim para algo?
— Sim, na verdade, preciso — ele soou como se estivesse pisando em águas perigosas e tinha medo de fazer movimentos bruscos — Temos um prisioneiro aqui, como já sabe. Vou precisar que tome conta dele durante esse tempo.
Ah, não.
— Você não pode pedir para Carl fazer isso? — minha resposta foi automática.
É claro que eu sabia sobre único prisioneiro de Alexandria. Eu tinha ouvido sobre ele, sobre as mortes e a sua brutalidade. Mortes por um bastão envolto em arame farpado; explorar comunidades a dar a ele o que produziam em troca de não serem mortos. Então houve uma guerra e ele finalmente foi derrotado. Mas ao invés de matá-lo, Rick o prendeu. Eu não entendia o porquê de não matá-lo, mas isso não era problema meu.
Não era problema meu. E eu não tinha que cuidar de algo que não era problema meu.
— Ele está indo para Hilltop hoje — Rick disse e houve um constrangimento que me deixou muito desconfortável — Você é a última pessoa que eu queria que tivesse contato com ele, mas você também é a única pessoa que não irá aproveitar a oportunidade para matá-lo. Você não viu o que ele fez e não tem motivos para isso.
Tive um nó no estômago com uma estranha sensação de pressentimento enquanto eu não podia fazer nada além de aceitar. Rick nunca me fez sentir como se eu devesse algo a ele, mas eu sabia que sim. Eu não podia negar um pedido dele depois de tudo.
— Tudo bem — eu concordei e vi seus ombros relaxarem em alívio — Só precisa me dizer o que tenho que fazer.
Rick disse que seria apenas levar as refeições nos horários certos, recolher as roupas para lavar e fazê-lo manter o lugar arrumado. Não parecia nada cansativo e eu ainda teria minhas noites livres já que estava fazendo esse favor a Rick.
— Hoje faz um ano que você está aqui — ele disse, mudando de assunto — E segundo seus registros, hoje é seu aniversário de dezoito anos.
Eu não lembrei do meu aniversário, mas lembrava do médico me perguntando minha data de nascimento quando cheguei aqui. Eu lembrava de que quando tudo isso começou, eu tinha nove anos, e foi Rick quem me disse que eu tinha dezessete anos quando cheguei aqui, já que ele tinha noção de há quanto tempo o mundo havia ruído. Eu passei oito anos lá fora e não lembrava de nem um terço.
— Estou feliz que tenha se adaptado bem — ele estava falando comigo, mas tudo o que eu lembrava era de como cheguei aqui.
FLASHBACK
Um teto branco me encarava quando eu abri os olhos. Eu não conseguia me mexer num primeiros momento, não conseguia fazer minha mente trabalhar para o próximo passo, mas o desespero me atingiu no momento que soube que estava num lugar desconhecido. Minha cabeça doía e meus membros pesavam como chumbo, mas o medo me fez chutar o lençol que me cobria e sentar na cama.
— É melhor você não tentar ficar de pé — disse uma voz distante e eu me virei para encontrar dois homens juntos, um ao lado do outro.
Eu olhei ao redor e não havia nada. Era um quarto estéreo, parecido com uma enfermaria. Só tinha uma cama, uma cômoda e uma cadeira. Não havia nada para que eu usasse para me defender.
— Fiquei calma. Não vamos te machucar — disse um deles, o de cabelos castanhos.
Quem eram essas pessoas? Como eu cheguei aqui?
Minha respiração ficou presa na minha garganta e algo desconhecido subiu pela minha espinha. Eu queria lembrar, mas não conseguia. Foi no escapo da minha mente, na ponta da minha língua... mas eu não conseguia lembrar.
Eu estava correndo em direção a saída agora, fechando a distância entre mim e a porta para sumir dali. Mas isso não aconteceu, eu simplesmente colidi com um dos homens, corpo sólido e quente quando ele caiu para trás comigo em cima dele, agitando.
— Me solta! Não toque em mim!
Ele estava frenética quando ele me empurrou para fora dele, virando-nos, subindo em cima de mim. Era como se ele estivesse com medo de que eu o machucasse.
— Para com isso ou vai se machucar — sua voz era dura desde quando falou comigo pela primeira vez e tão perfurante para os meus sentidos.
— Me solta! — eu não conseguia suportar suas mãos em mim. Pareciam queimar minha pele e arrancar o ar dos meus pulmões — Não! Me solta!
— Rick — o outro homem chamou o homem que me segurava — Os pontos dela vão estourar se ela ficar se debatendo.
O homem me soltou e ficou de pé. Eu me arrastei até o canto da sala, tentando respirar, mas o ar parecia se negar a entrar.
Os homens se afastaram até a porta. O que me segurou segundos antes disse algo para o outro, que saiu da sala depois de concordar com a cabeça uma vez.
Eu me pressionei mais contra a parede fria quando o homem deu a volta na sala e arrastou a cadeira até próximo de mim. Ele sentou com os braços apoiados nas pernas e me olhou com grandes olhos azuis, e eu desviei o olhar.
— Qual seu nome? — ele perguntou. Eu não disse nada nem o olhei uma segunda vez — Eu me chamo Rick — ele disse em seguida.
Eu estava vestindo uma roupa que parecia um pijama e meus pés descalços estavam congelando no piso frio.
— Tudo bem se não quiser falar agora. Mas eu vou te contar como você chegou até aqui.
Ele disse que me encontrou num prédio de apartamentos. Eu tentei correr quando caí das escadas e bati minha cabeça, por isso os pontos.
— Minha irmã? — eu perguntei assim que o pensamento caiu na minha cabeça. Eu o olhei e ele negou — Você está mentindo — eu cuspi. Como ela não estava comigo? — Onde ela está?
— Você estava sozinha. Parecia estar há muito tempo — ele disse e eu balancei minha cabeça que latejava de dor.
O único motivo pra eu te deixar vai ser se eu morrer, Angela.
Não. Ela não podia estar morta.
— Mas havia um corpo com você. Um corpo de uma garota.
Quando ouvi isso, não consegui conter o soluço que rompeu pela minha boca. Ela não podia estar morta. Eu não soube por quanto tempo fiquei ali, enrolada e sufocando com meu próprio sofrimento e lágrimas. Quando consegui me mover, o homem ainda estava ali e colocou uma garrafa de água no chão a minha frente.
— Sinto muito — ele disse. Eu não o olhei. Eu não lembrava como ela tinha morrido.
Será que eu não consegui protegê-la? Será que ela sofreu muito?
— Quero que saiba que ninguém aqui vai te machucar. Você está segura. Tem minha palavra.
Os próximos dias foram como sofrer um ataque de pânico constante, como se estivesse me afogando e ninguém pudesse ver que estava lutando. Meu peito se contraiu com tanta força que cada respiração parecia agulha sobre agulha perfurando meus pulmões, permitindo que eu me afogasse no meu próprio mar de vermelho. Minha visão ficou turva com esse fluxo constante de lágrimas, mas fazendo minha cabeça latejar tão dolorosamente que parecia que eu logo ficaria inconsciente.
Cada passo, cada movimento sentindo como se eu estivesse constantemente cercada por um oceano que só me arrastava mais e mais a cada movimento que eu fazia. Eu acordava querendo morrer, mas não era corajosa o suficiente para fazer eu mesma.
— Você parece melhor — Rick disse. Devia ter se passado mais de uma semana e todo esse tempo eu passei na enfermaria. Era silenciosa e havia somente eu de paciente aqui. Eu preferia ficar sozinha, mesmo esse homem insistindo em falar comigo todos os dias — Pode me acompanhar? Quero tenho algo para te mostrar.
— Me mostrar o que? — minha voz saiu arranhada. Era a primeira vez que eu falava em dias.
— Onde você vai ficar.
Eu evitei seu olhar durante todo o caminho. Nós entramos numa casa muito bonita, de dois andares e decorada com móveis muito bonitos.
— É aqui — ele disse quando paramos na sala — No segundo andar ficam os quartos.
— Qual deles é o meu? — eu perguntei quando toquei uma estátua dourada de gato que ficava no aparador atrás do sofá.
— Todos — ele disse — Sei que não gosta de se envolver muito com as outras pessoas, então... — ele fez um gesto ao redor — Essa casa estava vaga, e é sua se decidir ficar.
— Essa casa inteira só pra mim? — eu olhei em volta.
— Sim.
Pela primeira vez em dias eu não estava mais olhando para longe. Pela primeira vez, no que parecia ser uma eternidade, pude encontrar seu olhar e me sentir sem medo. Não por que ele havia me dado algo, mas por que ele tinha pensado no meu bem estar.
— Meu nome é Angela — eu disse e vi um pequeno sorriso moldar seus lábios.
Eu não sentia mais vontade de viver, e cada vez que pensava nisso, sabia que minha irmã não iria querer me ver assim. Ela diria para que eu aproveitasse a oportunidade de estar segura, assim como lembrava de ouvi-la dizer.
Então eu fiquei.
FIM DO FLASHBACK
— Angela? Tudo bem? — Rick estalou e eu fui trazida de volta. Eu sacudi um pouco a cabeça, todas essas lembranças eram como unhas arranhando a lousa.
— Sim... sim, eu só estava pensando.
Inesperadamente ele colocou a mão debaixo do meu queixo. Meu coração imediatamente saltou para a minha garganta e eu pulei para longe dele como se tivesse sido atingida por um raio.
— Não faça mais isso — eu disse, minha voz tremendo.
Não era que ele não fosse gentil. Eu só não suportava sentir as mãos de ninguém em mim. Eu queria ser diferente, queria ser normal, mas cada vez que eu sentia o toque de alguém, era como se minha pele estivesse queimando até os ossos e tudo o que eu queria era me afastar.
— Desculpe — ele disse imediatamente e eu falei antes que ele tentasse continuar essa conversa.
— Avise quando precisar de mim.
Eu saí dali, e esse seria um ótimo momento para voltar rastejando para minha cama. Mas como eu fazia todos os dias, eu aguentei. Eu andei até o portão da frente e assim que o padre me viu, ele desceu da passarela elevada e me entregou o rifle depois de me dar bom dia. Eu subi e me sentei lá, tendo visão de tudo e deixando o vento bater contra minha pele.
Havia conforto na rotina; ela nos enganava a acreditar que temos controle, como se qualquer milissegundo de vida fosse tudo menos banal. Eu podia aceitar a mentira em que vivia. Podia acreditar no que o doutor Levi dizia, que se eu me permitisse sentir mais, as coisas seriam mais fáceis. O que ele não sabia era que eu sentia demais.
Eu tolerava minha rotina, estava acostumada com ela como uma forma de controle sobre mim mesma, e o pedido de Rick para tomar conta desse homem iria bagunçar tudo. Minhas mãos suaram quando eu pensei que teria que encarar um desconhecido todos os dias, mas também surgiu um interesse de saber o que esse homem tinha de diferente para não ter sido morto depois de todas as coisas ruins que fez.
De qualquer forma, eu estava prestes a descobrir.
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Espero que tenham gostado de conhecer a Angela ❤ Algum palpite sobre como será o desenrolar da história?
Atualizações uma vez por semana.
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