Ⓔ03 Ⓒ05 ✖ ANDRIES
Andries encarava o conteúdo espalhado em cima da mesa de centro de sua sala com o olhar perdido. Seu corpo ainda não havia regularizado depois da descarga de adrenalina que levara ao ser apanhado roubando em flagrante.
Por muito pouco ele não tinha sido preso.
Por muito pouco o destino de seus irmãos iria ficar completamente arruinado!
Ele não conseguia sequer imaginar o que poderia acontecer com Barth e Aletta caso ele fosse preso. Iriam para um Orfanato ou uma Instituição para crianças abandonadas? Iriam ser adotados separadamente? Iria perdê-los para sempre?
A dor no peito de Beckers era grande demais para ele suportar essa possibilidade, contudo ele não conseguia entender a atitude daquela mulher.
"Está tudo bem, Andries. Não precisa se preocupar. Vai ficar tudo bem. Vá alimentar seus irmãos, eles precisam de você."
Porque ela se preocupou? Porque ela se importou? Andries estava perdido, confuso e humilhado.
No que ele tinha se tornado para sobreviver, para não ver seus irmãos sofrerem como ele estava sofrendo?
Andries afundou o rosto em suas mãos e chorou. Ele não sabia mais o que fazer de sua vida. Manter os três empregos não era mais uma opção. Deixar seus irmãos passando fome também não. Roubar...
O rapaz interrompeu sua linha de pensamentos quando escutou seu nome ser chamado por sua irmãzinha.
— O que você está fazendo acordada? — Ele questionou entre fungos, limpando o rosto na tentativa de esconder que estivera chorando.
— Estava esperando você chegar, mas acabei adormecendo. Acordei agora e vim ver se você tinha voltado.
Andries sempre se surpreendia com a inteligência e perspicácia de Aletta. Por vezes parecia que ela era mais velha que ele e que era ela quem cuidava de todos ali em casa. Isso às vezes sabia bem, mas naquele instante ele só queria que ela fosse uma menina de 8 anos.
— Onde você esteve? O que é isso? — Ela questionou entre um bocejo e outro, esfregando os olhinhos cansados.
O irmão mais velho engoliu em seco e sentiu seu coração se apertar quando ponderou na possibilidade de responder a verdade. Se ele o fizesse, perderia a admiração da irmã, se mentisse, se sentiria um lixo por dentro. Resolveu desviar do assunto, se erguendo do sofá e caminhando até a pequena.
— Você quer dormir comigo essa noite? O tempo esfriou e sei que deve estar com frio. Traremos Barth também.
— Sim! Podemos juntar nossos cobertores e assim ficaremos mais quentinhos. — Aletta comemorou correndo imediatamente para o seu quarto e pegando em seus cobertores e nos do irmão gêmeo.
Barth, ainda adormecido, resmungou quando sentiu o frio repentino arrepiar a sua pele, mas o sono era demasiado grande para conseguir abrir os olhos. Andries pegou-o no colo e o levou para o seu quarto, o deitando em sua cama de casal fria, do lado da irmã que já se aconchegara com os cobertores, no meio. Andries os cobriu e só depois entrou na cama. Sua cabeça estava demasiado cheia para conseguir dormir, porém manteve os olhos fechados no intuito de enganar sua irmãzinha.
Assim que escutou a respiração pesada da menina, acusando que ela finalmente havia adormecido, Andries abriu os olhos e olhou para os gêmeos. Não soube identificar por quanto tempo ficou olhando e pensando nos momentos de alegria que passou desde que eles nasceram, mas foi tempo suficiente para os primeiros raios de sol despontarem por entre as frinchas de madeira das comportas da janela.
Também não soube dizer quando adormeceu, mas definitivamente soube o que o acordou.
Um estrondo persistente o acordou em sobressalto. Não sabia dizer que horas eram, mas pouco se importou com isso. De rosto inchado e corpo mole, Andries saiu do quarto tentando andar com pressa até o local do barulho e quando abriu a porta de casa, seu coração ameaçou pular pela boca com o susto, ao se deparar com a polícia.
Seu primeiro pensamento foi que vieram levá-lo por causa do assalto. O temor de que seus irmãos acordassem e o vissem ser levado algemado o atemorizou. Porém ele conseguiu ver a senhora Myrthe, sua inquilina, se escondendo atrás de um dos guardas.
— Senhor Andries Beckers? — Um dos policiais questionou e ele assentiu ainda amedrontado. — Tenho aqui uma ordem de despejo. O senhor terá de sair imediatamente desse apartamento e levar somente os seus pertences.
— O quê? Despejo, mas... senhora Myrthes, o que isso significa? — Ele questionou chocado.
— Meu rapaz, regras são regras. O prazo de pagamento era até ontem e eu já estendi por muito tempo. Eu também preciso ganhar o meu para me sustentar. — A mulher justificou implacável.
— Você sabe que não tem sido fácil. Eu tenho trabalhado muito, mas as taxas, os juros... você tem subido muito o preço do aluguel. — Andries acusou, na tentativa de trazer algum senso de razão à mulher.
— Se conseguir arranjar melhor, a porta da rua é serventia da casa! — Ela apontou para a saída, insensível à causa dos Beckers.
— Por favor, pense nos meus irmãos! — Ele implorou desesperado.
— Eu tenho que pensar por mim, rapaz. Se eu quisesse pensar pelas crianças eu teria filhos. Agora vá embora com esses pirralhos! — A mulher ordenou e em seguida cutucou um dos policiais, para que eles tivessem a palavra de ordem.
— Vamos rapaz. Pegue nas suas coisas e nos seus irmãos e saiam daqui se não quer ter problemas piores. — O homem indicou, mas havia um tom condescendente em sua voz. Aquilo não era uma ordem, por enquanto, era um pedido encarecido.
— E agradeça que eu não te coloco na justiça para cobrar o dinheiro que me deve com juros.
O que se sucedeu em seguida foi rápido demais para Andries conseguir deter alguma informação. Os policiais adentraram a casa com D. Myrthe na intenção de vigiar o que Andries levava de casa. Seu coração perdeu o compasso quando lembrou dos talheres de prata espalhados pela mesa da sala, mas quando correu até lá, viu Aletha e Barth sentados tomando um pão velho e água e a mochila já fechada com todos os pertences dentro.
Andries pegou a mochila e a colocou em suas costas, alegando que continha coisas do trabalho. Foi então até o quarto e pegou nas mochilas dos irmãos e encheu com as coisas da escola e algumas roupas, porém não era suficiente para tudo.
Voltou ao seu quarto e pegou mais duas malas velhas e rotas e colocou suas roupas e as restantes peças dos irmãos dentro. O resto pertencia à casa. Roupas de cama, roupas de banho, louças, mobílias, etc.
Aletha e Barth correram até o quarto pra pegar suas mochilas e mesmo pesadas, eles não reclamaram em carregá-las, pois Andries já tinha muito que levar. Os policiais os escoltaram até o exterior do prédio em silêncio e os irmãos ficaram parados do lado de fora, encarando o edifício velho, quase em ruínas e lamentando seus destinos. Apesar de velho e bolorento, aquele era o único teto que tinham para sobreviver.
Sem rumo, os três irmãos caminharam pelas ruas de Amsterdã no andar mais vagaroso possível. Andries tinha ambas as mãos enlaçadas na dos seus irmãos, os guiando sem destino pelos locais.
Percebeu que já era hora do almoço quando sentiu o cheiro delicioso de comida acabada de fazer vinda do interior dos restaurantes e foi então que se recordou da comida que roubara da mansão. Puxou os irmãos para sentarem num banquinho de frente para um dos diversos canais e retirou de dentro da mochila iogurtes, distribuindo um para cada um. Depois pegou numa caixa com bolo de chocolate e colocou em seu colo. De dentro do conjunto de prata, ele retirou três colheres e pelos conseguintes minutos, os três satisfizeram sua fome com o que eles achavam ser o manjar dos deuses, admiraram a beleza dos canais e conversaram sobre a possibilidade de um dia darem um passeio de barco por toda a cidade.
— O que vamos fazer agora, Andie? — Barth questionou, encarando o irmão com aqueles olhinhos grandes e brilhantes.
— Não importa, Barth, o que importa é que vamos ficar todos juntos. — Aletta respondeu, mas Andries só conseguia pensar na mulher de olhos azuis da mansão.
"Vá alimentar seus irmãos, eles precisam de você. Mas amanhã volte aqui."
Seria uma loucura enorme voltar depois de a ter roubado, mas seus irmãos não podiam passar a noite na rua!
Decidido do que fazer, Andries retornou as colheres à maleta, depois de as lavar em um bebedouro e arrastou seus irmãos pelas ruas, adentrando nos bairros mais ricos e surpreendendo os pequenos com tamanha luxúria. Das bocas deles só conseguia escutar interjeições de espanto e admiração e isso o deixava levemente alegre e distraído do seu destino.
Quando por fim pararam em frente à mansão de Elise Braisser e de Clara — nome que o homem ruivo proferira por algumas vezes na noite anterior — os olhos dos pequenos se arregalaram em maravilhamento e confusão.
Houve alguma hesitação entre bater a porta e esperar ser atendido, principalmente quando fora o mesmo homem da noite anterior, que insistira em chamar a polícia, que o atendeu com uma cara de poucos amigos. Porém quando seu olhar azul baixou em direção aos gêmeos, ele desmontou a pose e encarou Andries com um olhar indecifrável.
— Vim devolver isso. — Andries quebrou o silêncio, entregando a maleta com os talheres de prata que roubara. — Eu não sou um ladrão. Eu só estava desesperado — acrescentou, baixando o olhar envergonhado e humilhado e acariciando as cabeças dos irmãos.
— Você estava falando a verdade. — O detetive comentou num suspiro, olhando para as crianças.
— Eu nunca fiz isso antes, mas eles estavam passando fome e eu me desesperei. E agora está bem pior... Fomos expulsos de casa e não temos para onde ir. Eu não me preocupo em dormir na rua, mas eles... eu não suportaria ver eles sofrendo desse jeito, feito cães sarnentos, então... eu queria pedir, por favor, faço o que for preciso, mas fiquem com eles até eu conseguir arrumar um novo emprego e uma nova casa. Eu posso também trabalhar aqui de graça, para pagar a estadia deles, faço tudo o que precisarem. Só, por favor, não os deixem passar fome. — O seu discurso emocionante, sincero e repleto de lágrimas deixou Kappel sem qualquer reação.
Que homem sem coração seria ele para negar um pedido desses a um jovem desesperado que não quer deixar seus irmãos passarem ainda mais pela miséria em que estavam? Porém não era ele que tomava as decisões ali em casa, então ele fez a única coisa que podia naquele momento.
— Entrem.
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