Encontro Inusitado
"Ninguém pode construir no teu lugar as pontes que precisarás para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu."
Friedrich Nietzsche.
Adriano caminha calmamente por uma tranquila praça no Rio de Janeiro. Está distraído, pensando na vida, e não nota um idoso que cruza o seu caminho, colidindo com ele e derrubando-o acidentalmente.
– Ai, que droga – grita o velho com um gemido – você não olha por onde anda?
– Me perdoe senhor. Eu estava muito distraído – responde, ajudando a erguer o homem que olha para ele com ar abismado.
– Meu Deus, ele disse a verdade!
– Como? – pergunta Adriano. – Desculpe, mas não entendi. Olhe me perdoe novamente.
– Tudo bem, jovem – afirma o velho erguendo-se e dando novo gemido. – Acho que dei um mau jeito.
Adriano observa o senhor, notando um homem com cerca de sessenta anos, malvestido, com a barba branca por fazer e bastante maltratada. Vê que seus olhos são vivos e que, apesar de ser um mendigo, é um homem lúcido e, aparentemente, culto. A sua curiosidade nata entra em ação, mas em primeiro lugar pensa no bem-estar do velho, afirmando:
– Venha, senhor sente-se ali no banco e descanse um pouco. Eu me chamo Adriano.
– Eu também me chamo Adriano. – O velho senta-se com a sua ajuda e Adriano continua:
– O senhor está bem, precisa de alguma ajuda?
– Acho que apenas preciso descansar um, pouco – diz o homônimo. – Então, meu jovem, o que fazia para estar tão distraído a ponto de não me ver? Afinal eu não sou nada pequeno, considerando que tenho um metro e noventa.
– Acho que o senhor vai rir de mim, Adriano – responde o jovem, sorrindo.
– Por que não tenta?
– Já que insiste – afirma com um sorriso amável – eu trabalho como bancário, no Banco do Brasil aqui perto, mas o meu grande sonho é me tornar escritor. Eu sempre passeio por este parque para pensar em uma história e escrever nas minhas horas vagas.
– Que engraçado, jovem – diz o mendigo – quando eu tinha a sua idade nutria um sonho idêntico e também fui bancário.
– Quanta coincidência, senhor. – O jovem sorri. – Chegou a escrever algo?
– Escrevi um livro, mas destruí a minha vida e acabei como um reles velho abandonado, tudo por minha culpa. Sabe, a minha vida daria uma história muito interessante. Quer que lhe conte?
– Se lhe apraz. – Adriano sorri. – Gosto de ouvir histórias e tirar ideias.
– Eu, como disse era bancário, da mesma forma que você. Vivia muito bem, sem poder fazer abusos, mas muito bem. Também gostava de passear num parque e pensar nos meus contos e livros. Chegava em casa e escrevia um pouco, mas era muito difícil, pois tinha filhos pequenos que exigiam muito de mim e da minha esposa. Eu era casado com uma bela mulher, loira, alta, de olhos azuis e com um lindo corpo. Tivemos três lindos filhos e isso foi o começo dos meus problemas. Basicamente, foi o desgaste que os filhos provocaram no nosso relacionamento e a falta de comunicação entre nós dois.
– Engraçado como nós possuímos coisas em comum. Também tenho filhos, mas apenas dois garotos. E também estou passando por algumas dificuldades conjugais. Com os filhos, a minha mulher não tem sido mais a mesma coisa... sabe como é né? Sexo só de vez em quando, sempre rápido e sem aquelas loucuras de antigamente, assim como não tem muito tempo para mim, que acabo sentindo falta.
– É foi exatamente isso que me aconteceu.
– Bem, eu amo muito a minha esposa, mas acabei arrumando uma amante – comenta Adriano. – Tava difícil aguentar aquilo.
– Eu também fiz isso – arremata o velho, olhando nos olhos do homônimo – e garanto-lhe que foi a pior escolha da minha vida. Se quer um conselho, pare enquanto pode.
– Por quê?
– Melhor eu continuar contando a minha história, que daí vai entender – comenta o idoso. – Eu arrumei uma amante mais ou menos quando tinha a sua idade. Era uma linda mulher, colega do trabalho e muito fogosa. Nossa, ela era tudo de bom e fazíamos um sexo bem selvagem e gostoso, mas não durou muito. Quando a garota começou a mostrar sinais de estar apaixonada, eu me afastei na hora, pois amava muito a minha esposa, apesar de tudo. Mas era como disse, uma monotonia enorme, os filhos atrapalhando, enfim; coisas que me fizeram trilhar caminhos errados.
– Engraçado, a minha amante está bem nessas e eu tô pensando seriamente em terminar tudo. Por outro lado, também amo a minha esposa e me sinto mal enganando-a. Todos os dias eu saio para correr por uma ou duas horas, tempo que considero sagrado para a minha saúde, e já notei que ela pensa que eu a engano. Mal sabe ela que nesses momentos eu tiro realmente para mim e corro enquanto penso nos meus livros e sonhos. A última meia hora eu passo aqui, meditando. Outras vezes venho aqui durante a folga do almoço, mas geralmente nessas horas é que saio com a outra.
– Eu fazia algo similar. Quando saia com a amante era no almoço. Bem, eu fiquei uns quatro meses sem amante e sentia muita falta daquela gata fogosa e gostosa, apesar da minha esposa ser muito mais. Um dia eu tava bem afoito para o lado da minha mulher, louco por uma diversão quando as crianças interromperam tudo, um chorando por ter pesadelo, outro querendo mamar. Peguei o maior e levei para o quarto, enquanto ela amamentava o bebê. Quando o pequeno dormiu, eu deitei-me na cama irritado, pois ela adormecera e novamente fiquei na mão. De manhã, a minha esposa acordou e pensei em um chamego bem gostoso, mas ela levantou para ir ao sanitário e já foi vendo as crianças que ainda dormiam. Era um sábado e, chateado, troquei-me e saí para passear sozinho. Curiosamente, acabei neste mesmo parque onde sempre vinha e encontrei uma garota sentada em um banco. Ela lia um livro e ria bastante. Prestei atenção na moça, uma mulher linda, esguia, cabelos negros e olhos escuros, me despertando desejos. Curioso, aproximei-me e sentei ao seu lado. a garota olhou para mim e sorriu. Eu retribuí o sorriso e disse:
– Pelo jeito esse livro parece ser muito bom. Oi, sou Adriano.
– Oi Adriano, sou Luana – respondeu, ainda sorrindo – é um excelente livro. Eu gosto de ler e há muito tempo que não pegava algo tão bom.
– Legal que gosta de ler – disse-lhe. – Eu também sou fã de leitura. Na verdade, gosto muito mais de escrever.
– É mesmo? – Ela fechou o livro e virou-se para mim. – E você já escreveu algum livro?
Eu estava no final do meu segundo livro, e todos os meus conhecidos que leram o primeiro adoraram. Acenei afirmativamente e ela perguntou:
– Já publicou?
– Não, mas se você gosta me deixe seu e-mail que lhe mando um pdf.
– Claro, Adriano. – Acho muito bacana conhecer um escritor.
Começamos a bater papo e fiquei cada vez mais a fim dela, pois era muito bem-feita e bonita. Como disse, Luana tinha os olhos bem escuros e o cabelo preto, liso. Seu corpo era escultural e bronzeado. Tinha olhar inteligente e sabia discutir qualquer assunto. Depois, soube que era formada em Biologia e Filosofia. Terminamos a conversa em um bar, trocando telefones e e-mails. Quando cheguei em casa, mandei-lhe o livro que estava terminado.
– Engraçado eu estou no início de um segundo livro – afirma Adriano – e todos os meus amigos adoraram o primeiro.
– É mesmo? – O velho sorri. – Então talvez a minha vida seja o seu terceiro volume, ou algo muito maior do que possa imaginar. Bem, na segunda-feira, encontrei a garota no mesmo lugar e sentei-me ao seu lado, sorrindo.
– Oi, Luana, tudo bem?
– Tudo. Adriano, eu li o seu livro e fiquei apaixonada. Que história mais linda!
– Que bom que gostou, Luana – respondi, encantado – eu adorei escrever esse livro, mas ainda acho que preciso aprimorá-lo um pouco mais...
– Claro que não, é perfeito...
Conversamos um pouco e convidei-a para bebermos algo. Na terceira cerveja, nós começamos a olhar um para o outro de forma diferente e eu vi que ela estava a fim. Sem pensar, beijei-a nos lábios e ela correspondeu. Afastamo-nos sorrindo e Luana mencionou:
– Você é casado, gato, pois eu vi no site onde publica seu livro. Então acho que não devia rolar.
– Eu sei, mas deu a maior vontade. – Beijei-a de novo e perguntei. – Sem falar que meu casamento está um fiasco. Você não tá a fim?
– E como, mas eu não quero estragar seu casamento.
– Às vezes, eu acho que ele já está bem estragado mesmo.
Peguei sua mão e levei-a para um motel, sentindo que tinha acertado na loteria. Ela era ainda mais fogosa que a primeira, e tão perfeita quanto a minha esposa. Passei quase toda a tarde transando com ela e acho que tirei os quatro meses de atraso em uma única tarde. Quando cheguei em casa, estava feliz. Passei a encontrar Luana quase todos os dias e meio que cheguei a negligenciar os meus livros, mas eu estava feliz e era o que me importava no momento.
– Você deve ter apresentado uma mudança de comportamento. Sua esposa não estranhou?
– É verdade, ela estranhou um pouco e ficou desconfiada. Eu já não insistia tanto para os chamegos e, por incrível que pareça, ela acabou começando a querer, embora nem sempre desse certo.
– Então seu relacionamento começou a melhorar. – Constata Adriano.
– Sim, só que comecei a ficar obcecado pela Luana. Eu estava cada vez mais apaixonado e isso me deixava confuso demais, pois eu amava minha esposa e estava amando outra mulher ao mesmo tempo. Nunca pensei que fosse possível amar duas mulheres. Eu pensei muito a respeito e concluí que o motivo era porque elas se complementavam em personalidade. O que tinha em uma, faltava na outra e vice-versa.
– Que rica confusão!
– Se foi – confirma o idoso. – Eu sentia o relacionamento com ela como uma liberdade total, pois não tínhamos nada de impedimentos, nem filhos, nem problemas, nada, e isso me fazia ficar cada vez mais apaixonado.
– Bem vejo, continue que estou deveras curioso.
"Passamos uns seis ou sete meses como amantes e Luana jamais me cobrou algo, mas eu notava que ela estava muito apaixonada por mim, da mesma forma que eu ia ficando. Um dia, deitados após uma transa supergostosa, ela aninhou-se nos meus braços e deitou a cabeça no meu ombro. Enquanto afagava seu cabelo, eu disse, sem pensar: Amo você, Luana, amo demais."
"Ela ergueu o rosto e me olhou com ar triste, dizendo:"
– Também o amo, Adriano, mas você é casado, então é melhor a gente acabar agora mesmo, antes que piore.
"Meu coração quase parou quando ouvi isso e apertei-a contra mim."
– Tarde demais, Luana, pois só de ouvir isso, já fiquei agoniado.
– Não está certo, Adriano, não está certo. Você tem filhos, responsabilidades. – Levantou-se, colocando a roupa. – Temos que parar agora. Vamos embora que tá na hora de voltar pro trabalho. Melhor pensar no assunto e amanhã conversamos.
"Passei o resto do dia abatido, olhando toda hora para o telefone e pensando em ligar para Luana. Quando cheguei a casa, as crianças estavam na maior algazarra, querendo brincar comigo, e eu acabei cedendo e levando-os para uma praça perto, pois com o horário de verão ainda era dia claro. Sentei num banco, observando os meninos, mas minha mente estava em outro lugar."
– O senhor estava bastante confuso, imagino – comenta Adriano, cada vez mais interessado e fascinado com a história.
– Não – respondeu o ancião. – Eu estava muito apaixonado e prestes a fazer a maior besteira da minha vida.
– Não consigo imaginar como isso o pode ter levado a destruir a sua vida. Sabe, a minha esposa sempre me incentiva com o meu sonho de escrever. Sei que tenho alguns problemas, provavelmente temporários, mas não creio que a fosse deixar pois realmente a amo muito. A minha amante é apenas para suprir o físico e não me envolvo.
– Por incrível que possa parecer, o mesmo ocorreu comigo, mas Luana me cegou completamente. Você não imagina o poder que uma mulher pode ter sobre nós.
– Então continue a sua história que estou deveras curioso.
– Está tarde para mim – afirma o velho. – Passe aqui amanhã e continuo a contá-la, prometo-lhe.
– Como quiser. – Adriano levanta-se e, gentilmente, ajuda o homônimo. – Mas venha mesmo, porque estou curioso. Precisa de alguma coisa? Quer algum dinheiro?
– Obrigado pela gentileza, Adriano, mas não quero.
O jovem escritor fica olhando o velho caminhar lentamente e pensa na história e nas semelhanças entre ambos. Entra no seu carro e segue para casa, relativamente perto, encontrando a família. Está tão fascinado com o velho que não para de pensar nele, o que o leva a pensar em si. À noite e após o jantar, escreve um pouco de anotações para o seu futuro livro, que promete muito, aproveitando que os meninos foram dormir. A esposa abraça-o e pergunta:
– Ideias novas, amor?
– Sim, Karem. Hoje conheci um velho mendigo intrigante e interessante que me contou parte da sua vida.
– Então escreva. – Beija-o suavemente. – Sei que um dia será um cara famoso, mas será sempre o meu Adriano. Vou deitar que estou muito cansada. Amo você.
Dá mais um beijo no marido e retira-se para o quarto, enquanto o jovem para de escrever e pensa muito nem tudo. Ao fim de uns quinze minutos, desliga o computador, troca de roupa e vai para a cama, abraçando a esposa.
– Eu amo você, Karem, e precisamos de conversar...
― ☼ ―
No dia seguinte e após o expediente, Adriano vai para a mesma praça e acredita que não encontrará o velho, mas ele está lá, sentado no mesmo banco. Sorrindo, aproxima-se estendendo um embrulho e afirmando:
– Oi, amigo, trouxe um lanche para nós.
– Obrigado. Estava mesmo com fome. – Enquanto comem, Adriano mais velho observa o amigo, dizendo. – Seu semblante está melhor, mais leve. Vejo felicidade no seu olhar. Aconteceu alguma novidade?
– Sim, eu pensei muito no que me contou e nas semelhanças entre nossas vidas. Conversei com minha esposa e, depois disso, tive uma noite maravilhosa. Claro que não falei sobre a amante, pois não vale a pena fazê-la sofrer, mas hoje terminei com ela. Acho que lhe devo algo muito especial, meu amigo.
– Claro que não me deve – diz o velho, dando um gole no refrigerante. – Isso é bom, um começo... ou recomeço.
– Continue a sua história que estou demasiado interessado. Você disse que estava prestes a cometer o maior erro da sua vida e não consigo imaginar como.
– É isso mesmo. Eu, naquela noite, procurei minha esposa mas ela não estava com vontade. Irritado, disse:
– Não dá mais. Eu quero divórcio.
"Ela sentou-se na cama de um pulo, muito pálida. Chorando, disse que não podia acreditar nisso, mas eu insisti e, de forma egoísta e cruel, disse que tinha uma amante e estava apaixonado. Não sei que curto-circuito se deu na minha cabeça, mas foi bem assim. Levantei, juntei algumas roupas e saí de casa dizendo que mais tarde retornaria para discutirmos o assunto de cabeça fria e para pegar meus pertences. No carro, liguei para Luana e ela atendeu, estranhando a hora."
– Luana, eu acabei de pedir o divórcio e saí de casa. Preciso falar com você. – A linha ficou silenciosa para alguns segundos, provavelmente a surpresa dela. – Alô?
– Venha ao meu apartamento – disse, com a voz tremida.
"Fui encontrá-la na porta, esperando por mim. Seus olhos exprimiam preocupação. Eu abracei-a e beijei-a. Logo depois, ela me puxou para dentro e sentamos na sala."
– Tem certeza que é essa a sua escolha, Adriano?
– Eu quero ficar com você, Luana – afirmei sem rebuços, já bem decidido. – Meu casamento está acabado.
– Também quero você, mas eu me sinto muito mal.
– Fiz a minha escolha, seja ela certa ou errada.
"Conversamos mais um pouco e fomos dormir. No dia seguinte, ao almoço, passei em casa para conversar com minha esposa e seus olhos estavam inchados de tanto chorar. Eu já escolhi esse horário porque as crianças estariam na escola e a bebê dormindo."
– Por quê? – perguntou-me à queima-roupa. – Por quê, Adriano?
– Você não vê o completo estado de desgaste do nosso casamento, Karem? – respondi com outra pergunta. – Você deixou de ser minha esposa há muito tempo para ficar só como mãe!
– Como assim? – Ela exprime espanto com o olhar.
– Você é cega? – questionei. – Você era a minha grande companheira, a mulher que compartilhava minha vida, que participava dela. Desde que o Leo nasceu você só pensa nos filhos e a coisa piorou muito quando a Suzana veio. Por acaso lembra quando foi que fizemos amor bem gostoso, sem ser às pressas. Mesmo esse último jeito, quando foi? Tudo na sua vida é para os filhos, esquecendo completamente de mim, que também preciso de carinho e atenção. Você destruiu nosso casamento!
– Você acha que é fácil cuidar da casa sozinha? – perguntou, quase gritando. – As crianças, a limpeza, cozinhar, tudo... Pensa que chego de noite leve e tranquila?
– E eu? – perguntei. – Fico como, Karem? Também preciso da minha esposa, de atenção, carinho...
– E por que não conversou comigo? – perguntou, irritada e muito magoada. – Eu sempre estive ao seu lado, sempre dei a maior força com esse seu sonho de ser escritor...
– Sim, você sempre me deu apoio, mas ficou por isso, apenas isso. Eu acabei precisando procurar na rua o que não tinha em casa e deu no que deu.
– Você foi egoísta, Adriano, muito egoísta – disse, profundamente acusadora e me dando um certo mal-estar. – Se tivesse conversado comigo eu teria entendido e tentado mudar. Mas não, foi atrás de outra mulher.
– Sinto muito. É possível que tenha razão, mas agora está consumado.
"Nós conversamos mais um pouco e discutimos a separação. Eu, de certa forma, sentia-me mal e realmente admiti a mim mesmo que fui egoísta. Nessa brincadeira, ela ficou com metade do meu salário, a casa e a maior parte das coisas. Fui viver com Luana e sentia-me muito feliz, embora também sentisse uma falta enorme dos meus filhos, que passei a ver só nos fins de semana."
– Engraçado – diz Adriano, aproveitando uma pequena pausa do velho – temos muito mais em comum do que pensa. Minha esposa também chama-se Karem e meu segundo filho Leonardo.
– Temos sim, muito mais que imagina – responde enigmático, continuando a contar a história.
"Casei com Luana três meses depois e vivíamos muito felizes. Nessa época, eu até parei de escrever minhas histórias, mas sentia-me muito bem, embora a saudade dos filhos fosse grande. Após seis meses de casado, começaram os problemas. O banco precisou reduzir pessoal e fui demitido. Apesar da indenização ser bem gorda, demorei a conseguir um novo emprego e, quando consegui, tinha que trabalhar muito, tendo pouco tempo livre. O salário era inferior e eu precisava de sustentar duas casas, trabalhando o dobro, muitas vezes chegando tarde e cansado. Os meus livros acabaram esquecidos e Luana começou a me cobrar mais. Ela tinha ciumes quando eu ia ver meus filhos e pior, cobrava que não lhe dava atenção como antes. Agora, eu notava claramente a inversão dos papéis. Procurei ser mais atencioso com ela, mas o cansaço e a necessidade de trabalhar muito, mais por falta de dinheiro acabaram agravando tudo de forma absurda. Eu sentia Luana cada vez mais distante de mim e, quando ia ver meus filhos, Karem era fria. Não demorou muito até que Luana pediu o divórcio, me deixando em profunda depressão. Por causa disso, parei te trabalhar as horas extras e, muitas vezes chegava tarde ao serviço. Mais um mês e fiquei desempregado."
– Caramba – diz Adriano – que inversão assustadora.
– Terrível e, de alguma forma, eu era profundamente castigado pelo que fiz.
– Como foi depois?
"Tive dificuldade em conseguir um emprego decente. Karem processou-me por falta dos depósitos da pensão e só não fui preso porque meu irmão me ajudou. Ele era muito generoso e deu-me todo dinheiro, sem falar que conseguiu um emprego para mim. Era precário, mal dando para pagar a pensão e sobreviver parcamente, mas foi o que ele conseguiu e não me podia queixar. Eu chegava a casa após o trabalho e não tinha vontade de fazer coisa alguma. Por muitas vezes sentei-me de frente para o meu computador, o único bem que me restou, e ficava olhando a tela, tentando escrever uma linha que fosse. Dei comigo olhando as fotos antigas da Karem e dos meus filhos, sentindo-me um idiota arrependido. Procurei-a mas ela não queria mais saber de mim. Luana sumiu da minha vida tão rápido quanto veio e eu acabei um homem muito solitário e deprimido, me dando conta que esse amor era apenas uma paixão arrebatadora consequência da minha carência e do jeito de ser especial que ela tinha. À medida que me atinava disso, maior era a saudade da minha ex e dos filhos, que nem me queriam ver mais. Então, soube que Karem casou-se de novo, deixando-me arrasado. Por um tempo, comecei a beber e acabei perdendo o emprego, me tornando um morador de rua, pois meu querido irmão falecera um ano antes. Nesse período, eu voltei à realidade, largando a bebida antes que ela me destruísse mais do que já estava e me dando conta que não tinha mais nada, absolutamente nada. Foi nisto que está vendo hoje que eu me tornei ao longo dos anos: um mendigo solitário com um sonho perdido, mais precisamente abandonado por uma pretensa felicidade que jamais ocorreu, apenas uma ilusão."
Adriano para de falar e olha para seu homônimo, que o observa atentamente. Por quase dez minutos ambos ficam calados, sentados naquele banco de praça, sem nem mesmo ouvirem os sons do vento e pássaros à volta. O jovem é o primeiro a romper o silêncio:
– A sua vida deu uma guinada assustadoramente triste, meu amigo, e eu gostaria muito de o ajudar, embora não saiba como.
– Pense, Adriano, que a sua vida pode e vai ficar exatamente assim. Pense. Hoje, você deu o primeiro passo para evitar isso, mas ainda não conseguiu.
Espantado e de queixo caído o jovem pergunta:
– Como assim, a minh...
– Adriano, eu me chamo Adriano, desejava ser escritor e tinha dois livros. Na verdade, na sua idade apenas um, escrevendo o segundo. Era funcionário de um banco, casado com uma mulher chamada Karem e com dois filhos: Mauro e Leonardo. – O jovem fica novamente boquiaberto. – Depois chegou a Suzana. Nessa época, minha amante chamava-se Carla...
– Mas... mas isso sou eu, tirando a menina!
– Exato. Eu e você somos um só, a mesma pessoa. Eu não sei explicar, mas há dois dias, quando entrei neste parque, voltei no tempo e deparei-me com você, o meu eu do passado.
– Isso não é possível...
– No início, pensei a mesma coisa, mas olhe a última coisa que me sobrou. – Adriano tira um livro velho do bolso e dá para o jovem. – O meu livro, o primeiro que escrevi.
Abismado, Adriano olha o livro, pegando-o e notando que é o mesmo volume que possui, embora velho e muito manuseado. De olhos arregalados, observa o velho à sua frente, que continua a falar.
– Hoje, se não me engano, Karem vai dar-lhe a notícia da gravidez e, em poucos meses você vai conhecer Luana. Eu não sei por que motivo tive esta oportunidade de voltar, mas lembre-se: a sua escolha poderá ser o que eu me tornei. Cabe a si pensar e mudar o futuro. – O velho toma o livro de volta. – Lembre-se sempre de mim, ou de como se tornará. Agora preciso ir, pois ele me deu apenas dois dias. Boa sorte.
Sem mais uma palavra, o idoso levanta-se e sai. Adriano permanece bem um par de horas pensando, digerindo o impossível. Quando está para se levantar, aparece um cego caminhando em direção ao seu banco, homem que o jovem conhece há cerca de um ou dois pares de meses.
– Como vai, meu amigo. – Adriano cumprimenta-o, muito dispersivo. – Veio fazer o seu passeio?
– Oi, Adriano. – O cego senta-se. Sinto que está confuso.
– Vocês cegos são mesmo perspicazes. – O jovem ri. – Até parece que enxerga mais que eu!
– Acredito que seja um sexto sentido nosso, meu jovem, mas sim, em algumas coisas, enxergamos mais que os que possuem olhos, especialmente quando os olhos do espírito não se fecham. Posso saber o que o incomoda tanto?
– Eu conheci um senhor idoso que me contou uma história triste, muito triste.
– Conte-me, pois sabe que eu adoro as suas histórias.
Gentil, Adriano conta a história, omitindo a última parte. O cego ouve em silêncio e, quando o jovem termina, pergunta:
– Pretende escrever isso nos seus contos?
– Não sei, mas de uma coisa eu sei: pretendo rever toda a minha vida.
– Posso saber o motivo?
– Porque eu acho que estou enveredando pelo mesmo caminho.
– Isso é bom, meu amigo. Bem, obrigado por mais um conto maravilhoso, mas preciso ir.
– Deixe-me acompanhá-lo até à parada e tome algum dinheiro para si – diz Adriano, que sempre o ajuda.
Lado a lado o jovem conduz o cego e despedem-se. Adriano entra no carro e volta para casa, encontrando a esposa feliz, que lhe conta sobre a gravidez.
– Que bom, minha amada, mas lembre-se do que conversamos, ok?
– Sim, meu amor. Me desculpe por isso. – Sapeca, Karem pergunta. – Você não andou procurando outras nesse meio tempo, né?
Ele faz uma careta meio sem jeito. Ela ri e continua:
– Olhe, amor, se fez isso eu prefiro não saber, mas agora que conversamos, espero que não vá fazer besteira, viu?
– Eu prometo, Karem, pode ter certeza. Amo você e não a quero perder.
Os meses passam e o bebê nasce, uma linda menina cujo nome a mãe escolhe Suzana. Adriano está feliz e o seu relacionamento anda bem e mais firme que nunca. Certo dia, caminhando pela praça e no banco onde costuma sentar a pensar nas suas histórias, encontra uma bela mulher lendo e rindo muito da história. Imediatamente adivinha de quem se trata, sorrindo. A moça ergue os olhos e depara-se com o sorriso dele, retribuindo. Adriano cumprimenta e passa reto, mas a moça levanta-se e chama-o.
– Ei, você não é aquele escritor que publica num site de escritores independentes? – pergunta. – Adriano, não é?
– Sim, sou Adriano. – Curioso, Adriano pensa como o destino pode provocar tantas armadilhas; mas, como dizia um escritor famoso, o futuro está em aberto.
– Eu me chamo Luana e li seus dois livros, Adriano, são maravilhosos.
– Obrigado, Luana. Eu gosto muito de escrever, mas não sei se terei a sorte de ser um escritor profissional.
– Devia tentar – afirma a moça. – Você está ocupado? Podíamos tomar alguma coisa e conversar.
– Desculpe, mas hoje não posso. Preciso ajudar minha esposa com a bebê.
– Tudo bem, mas eu gostaria de o conhecer melhor.
– Claro, tome meu número – diz o jovem pensando que ser amigo dela não teria nada de mal. – Outra hora conversamos melhor. Eu devo fazer um churrasco em casa um fim de semana destes. Se quiser vir, ficaremos felizes.
– Claro que vou gostar. Tome meu número.
Adriano despede-se e caminha para a saída do parque quando se depara com o velho, mas este não é mais a mesma pessoa. Tem ar altivo e feliz, muito bem vestido e sem a barba de mendigo.
– Vejo que conseguiu – diz o Adriano do futuro. – Nossa vida mudou radialmente e seu futuro será maravilhoso, jovem. Parabéns.
– Me diga, como isso é possível?
– Não posso dizer, mas saberá em poucos minutos, pois a pessoa que fez isto lhe dirá pessoalmente. Agora preciso de ir. Adeus e muitas felicidades para nós.
– Adeus e obrigado.
O jovem volta a andar quando se depara com o cego parado ao lado de uma árvore. Aproxima-se dele e cumprimenta-o.
– Olá, amigo. Não o tenho visto nos últimos meses... – Adriano fica mudo ao notar que o cego vira-se para ele e não tem mais nada de um cego. – O senhor está curado!
– Nunca estive doente, meu jovem. Apenas escolhi aparecer como um cego para o testar.
– Como assim?
– Você sempre foi um homem muito bondoso. Sempre se preocupou com os pobres e sempre que pôde ajudou alguém, como a mim. Mesmo depois de todos os erros que teria cometido na sua vida, eu vi que, virado em um mendigo, repartiu um sanduíche com outro companheiro de infortúnio, que salvou um cachorro atropelado cuidando dele e tirando da sua própria boca para o alimentar. Vi muitas coisas e decidi que lhe daria a chance de corrigir o seu passado ou, neste caso, mudar o seu futuro. Assim, decidi vir até ao seu passado como um cego e ver se sempre foi assim, se a sua natureza era realmente essa. Como você se mostrou digno, eu trouxe o seu futuro de encontro ao seu presente e dei-lhe a chance de mudar, mas sem interferir. Parabéns. Fico feliz em ver que meu trabalho não foi em vão.
– Mas quem é o senhor?
– Eu? – O homem sorri. – ninguém importante, apenas alguém cujo destino é esse, salvar almas. Cuide-se, meu jovem.
Ao terminar de dizer aquelas apalavras, o homem desfaz-se em luz, deixando para trás uma pessoa abismada.
Adriano chega a casa e encontra a esposa cansada, ajudando-a com as crianças e esquece de lhe contar tudo. Mas também se esquece que será em breve demitido e, meses depois, recebe a notícia do banco que será afastado por necessidade de redução de pessoal. Preocupado, volta para casa e encontra a esposa rindo à toa. Conta-lhe tudo, mas ela continua rindo. Irritado, diz:
– Que droga, Karem, qual é a graça? – Senta-se na cadeira, muito preocupado. – Acabei de ser demitido!
– E daí, amor. – Ela estende uma carta. – Eu mandei seu livro para uma editora e eles adoraram. Vão publicar, Adriano. Parabéns.
Adriano abraça e beija a esposa.
– Acho que, se não fosse você, eu jamais conseguiria, minha Karem. Amo você.
― FIM ―
Pdf – portable document format – uma forma de converter documentos para transferência por e-mail ou similar. O pdf tem a vantagem de não permitir alterar o original.
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