Amor Celestial
"A consciência de amar e ser amado traz um conforto e riqueza à vida que nada mais consegue trazer."
Oscar Wilde.
Em uma dimensão que jamais algum mortal poderá alcançar e apenas definida por religiosos como o paraíso ou a esfera celestial, dois seres incorpóreos debatem entre si, um deles relativamente alterado.
– Não entendo por que motivo Ele não dá um jeito nos Homens. O seu mundo central está um caos; violento, insensível. Não se vê mais bondade em canto algum!
– Ametista, ainda és jovem e inexperiente. – Afirma Gabriel, apaziguador. – Os Homens são a menina dos olhos do Chefe e ele não é muito dado a críticas desse tipo. Queres ter o mesmo destino do Lúcifer?
– Mas então – questiona novamente – por que Ele permite tanto sofrimento e crueldade? E por que Tem tanto amor por eles, seres cruéis e imperfeitos.
– Os mortais levam mais tempo a aprender e precisam de renascer inúmeras vezes até poderem evoluir o suficiente. Nós somos diferentes, mas nem por isso menos amados por Ele. – Responde Gabriel. – É preciso ter mais paciência com eles.
– Eu vejo tantos horrores na Terra e outros mundos. – Acrescenta, triste. – Por mim, já tinha dado um fim naquilo e feito eles recomeçarem novamente do zero, para ver se aprendem algo útil.
– CHEGA, AMETISTA. – A voz de trovão é tão potente que faz com que a jovem se encolha. Porém, ela perde o medo rapidamente, enquanto uma luz branca, muito intensa, forma-se ao seu redor e ofusca o brilho das estrelas. Como que por encanto, a imagem da Terra, que era observada por ambos, desaparece.
– Senhor – Gabriel aproxima-se – peço clemência por Ametista. Ela é jovem e não entende muitas coisas...
– Justamente por ser jovem – afirma o Criador, visivelmente mais calmo – deveria observar, aprender, e não criticar. Agora cala-te e vai aos teus afazeres que pretendo conversar com Ametista.
– Sim, Divino. – Gabriel retira-se, ainda preocupado com a amiga, pois ela é demasiado impulsiva.
O criador olha para o anjo, estudando-a. Simpatiza muito com ela, na verdade com todos, até mesmo com o opositor, mas são seres incapazes de abranger toda a extensão da Criação e, por isso, cometem tantos erros, os quais Ele faz vista grossa a maioria absoluta das vezes.
– Achas que, destruindo tudo, tu resolverias os problemas dos mortais, Ametista? – Questiona-lhe. Falando de forma professoral, acrescenta. – Eu fiz isso há alguns milhares de anos e prometi aos Homens que não mais o tornaria a fazer. E podes ver que nada adiantou. Nessa época, ainda nem existias.
– Mas, Senhor – replica, exaltada – só vejo crueldade naquele mundo!
– Há muita gente boa, muita mesmo, mas tu apenas notas o lado ruim do ser humano e isso é profundamente errado, Ametista. Queres ser como Lúcifer que só vê o lado negro do Homem? Que o tenta a toda hora? Todos, exceto por mim que sou Uno, são formados de uma dualidade e isso é necessário para que evoluam. Quando conseguirem tornar-se unos através do equilíbrio, tornar-se-ão parte de mim.
– Mostre-me apenas um, Divino, apenas um mortal bondoso e eu mudarei de opinião na mesma hora; pois, no momento, não consigo ver nenhum.
– BASTA. – Ele volta a irar-se. – Serás tu mesma a descobrir uma alma bondosa nesse mundo, pois essa tornar-se-á a tua missão. A partir de agora, condeno-te a ser um anjo caído e passarás a ter um corpo carnal. Vagarás pela Terra até descobrires aquilo que não encontras no Homem, mas que eu vejo com tanta clareza. No dia em que tiveres cumprido a tua missão, ascenderás novamente ao reino superior e voltaremos a conversar. Mas, até lá, viverás e sofrerás como uma mortal, embora não possas ser morta pela mão humana pois assim não o permitirei. Quando encontrares o que procuras e obtiveres equilíbrio, todo sofrimento terreno desaparecerá.
Antes que o anjo possa dizer algo, um raio pega no seu corpo, envolvendo-o. Ela nota que o Criador retirou-se e torna a ver a Terra. Sente-se estranha, pesada, e começa a cair sobre o mundo dos mortais com uma velocidade vertiginosa, sentindo que o seu corpo mudou e não é mais de energia pura.
― ☼ ―
Acorda com a chuva batendo no rosto e sentindo um certo mal-estar. Levanta-se lentamente, notando que está fraca, pesada e lenta. Olha para o seu corpo, ainda desajeitado, vendo que traja umas roupas simples, bastante molhadas, e sente frio pela primeira vez na sua existência.
Assustada, Ametista começa a andar a esmo, com uma sensação dolorosa acima do ventre. Recorrendo aos seus conhecimentos, que são vastos, percebe que sente dor de estomago poque tem muita fome. Não sabe onde está e tão-pouco o que fará. É noite, mas não tem a menor ideia de que horas são. Para todos os efeitos, ela acabara de nascer. Ao dobrar uma esquina, entra numa rua iluminada e pouco movimentada, contudo é frequentada por veículos que se deslocam relativamente rápido. Não encontra pedestres, mas sente um medo terrível do primeiro contato.
Na esquina seguinte, depara-se com uma lixeira e, dentro, vê um jornal parcialmente molhado. Pega neste e tenta obter alguma informação. No topo da página, lê: "Rio de Janeiro, 2 de Novembro de 2222".
Cada vez mais assustada, percebe que está em uma das cidades mais violentas do mundo, começando a andar com muita cautela. Caminha por bastante tempo e acaba passando em uma rua com alguns restaurantes, sentindo o cheiro da comida e a fome apertando cada vez mais.
Para de frente à vitrine de um deles, um que está quase vazio, e fica olhando até que um homem aparece na porta e pergunta:
– O que quer, mulher? – A sua voz não é agradável e ele olha atentamente a jovem, que é muito bela, mas estranha. – Aqui não é lugar para gente como você.
– Estou morrendo de fome – afirma, desesperada – mas não tenho como pagar.
O dono do restaurante observa-a e diz:
– Comer de graça? Você quer comer de graça? – Dá uma risada seca e olha seu corpo. – Bem, pode pagar de outro jeito, com o seu corpo.
– Não sou prostituta, senhor. Apenas tenho fome e estou perdida.
– Então toca daqui que gente como você atrapalha os negócios.
– Sim, senhor, desculpe. – Ametista caminha cabisbaixa. O primeiro contato foi inócuo, mas o homem só estava preocupado com os lucros e em se aproveitar da sua fragilidade, mais uma prova que reforça seu sentimento pelos Homens.
Mal dá três passos, um mendigo para à sua frente e oferece-lhe metade de um sanduíche nauseabundo, que vinha comendo. Em seguida, afirma, gentil:
– Tome, filha, mas afaste-se daqui o mais rápido possível. Nesta zona, gente como você sofre muita violência e pode até ser morta. Infelizmente as autoridades não se importam com o seu tipo de pessoa e até para os cães têm mais atenção. Vá para a região central e cuide-se.
– Obrigada. – Ela, que não esperava tamanha bondade, sente-se grata do fundo do coração. – Como chego lá?
– Não conhece a cidade? – Pergunta, espantado. Aponta em uma direção. – Siga sempre por ali e procure placas que indiquem a Lapa.
– Obrigada.
– Não precisa agradecer – diz o mendigo que recomeça a percorrer o seu caminho – mas fuja daqui o mais rápido possível.
Ametista vira-se para ver o homem, contudo ele não está mais ali, como se tivesse evaporado.
Grata, faz uma prece pelo sujeito e começa a comer, enquanto segue os seus conselhos, caminhando rápido. Quando termina, ainda está com muita fome, embora sinta-se melhor. Caminha cerca de um par de horas até que o cansaço torna-se insuportável. Ao passar em uma praça, vê alguns bancos e senta-se para descansar um pouco, acabando por adormecer.
― ☼ ―
É acordada pelo barulho de risadas altas, mesmo a tempo de ver três homens caminhando e já bem perto.
– Ei, olha só que coisinha mais gostosa que temos ali. – Diz um, aproximando-se e ainda rindo. – Oba, a noite vai terminar bem como eu gosto.
Ametista tenta correr, mas não logra conseguir, pois um dos jovens agarra-a pelo braço, puxando-a. Ainda rindo, apalpa a moça, enquanto comenta:
– Uma gostosura mesmo. – Olha para os amigos. – Vou primeiro, já que eu a vi antes de vocês.
A pobre garota sabe exatamente o que vai acontecer, pois observou isso diversas vezes e está ciente que não tem força para se defender. Mesmo assim, tenta proteger a sua integridade, sem sucesso, enquanto dois a seguram, deitando-a no chão e o terceiro levanta a sua saia, tirando a lingerie. Sem forças, a moça não consegue mais reagir e ele penetra-a, provocando um grito de dor.
– Não acredito que esta coisinha rica é virgem. – Diz, rindo para os amigos e agarrando seu peito por baixo da camiseta. – Que coisa mais deliciosa!
Beija Ametista e esta, numa última tentativa de se livrar, morde-lhe a língua. Imediatamente recebe um soco no rosto e perde a consciência por alguns segundos. Os jovens abusam dela até não poderem mais e vão-se embora, sempre rindo e comentando a aventura.
Deitada e encolhida em posição fetal com as mãos entre as pernas, a infeliz moça chora copiosamente enquanto sente o gosto de sangue no lábio, cortado pelo soco. Não é a dor física que a incomoda, mas sim a total sensação de impotência e incapacidade. Sua maior intimidade foi invadida sem que nada pudesse fazer para se proteger.
A sensação de amargura, decepção, toma conta dela e não a quer abandonar, provocando uma dor atroz na sua alma, deixando-a cada vez mais convencida que não há qualquer tipo de bondade no mundo. Enquanto pensa nisso, lembra-se do mendigo que repartiu a sua parca refeição e o seu pranto cessa. Cogita como pode haver essa tão grande discrepância no mundo dos mortais. Põe as roupas de volta e decide retornar a andar.
Sente dores no corpo, especialmente no sexo, caminhando com alguma dificuldade. Uma hora depois não tem mais nada e apalpa o corpo, vendo-o totalmente regenerado. – "Não poderás ser morta pelas mãos de um Homem, pois assim não o permitirei." – Foram as palavras do seu Mestre e Senhor.
– "Mas a dor, Senhor" – comenta em pensamento – "pode matar a alma."
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Willian Tenessee, um americano que vive no Rio de Janeiro sempre que pode, sente-se particularmente triste e solitário naquela véspera de Natal. Trata-se de um homem dos seus trinta anos, robusto e tranquilo, de olhos muito azuis e cabelos loiros, cujo olhar é profundamente amargo. É noite e caminha pelo submundo da megalópole carioca. Dada a sua condição de cidadão nível A, não teme ser assaltado ou atacado, pois se algo lhe acontecesse, uma patrulha especial apareceria no mesmo ato e a pena para quem fere um A ou B pode ser a morte.
Entra em um bar que sabe ser frequentado por todo o tipo de gente, justamente por ter as mais exóticas prostitutas da Terra, mas não está certo do que quer. Faz algum tempo que anda na abstinência, justamente porque a tristeza e depressão que se manifestam nessa época do ano não o ajudam em nada. Lembra-se da ex-esposa e da filha, que o abandonaram há oito anos sem sequer dizer adeus, abandono esse feito exatamente na véspera do Natal. Por isso, ainda sente muito a separação.
Entra no boteco e percebe logo o cheiro de vários tipos de entorpecentes, alguns deles bem ilegais. O dono, todavia, tem bons relacionamentos com as autoridades e não teme uma batida, sendo um bar muito procurado. Tudo o que precisa de fazer é pagar uma pequena quantia para a polícia todos os meses.
Segue até ao balcão, onde gosta de ficar, e senta-se em um banco, pedindo uma Gim Tônica. O atendente serve a bebida e ele pega no copo, bebericando um pequeno gole. Quando olha para o lado, vê uma garota de beleza transcendental, porém com cabelos de um azul intenso. Fascinado, fica olhando para ela, que também o observa. Ao fim de alguns segundos, diz, constrangido:
– Desculpe a falta de educação, moça, mas jamais vi mulher tão bela e perfeita quanto você. Eu me chamo William Tenessee.
– Vanessa. – Responde com meio sorriso. Ao ver que ele tem um sotaque forte, continua na sua língua. – Pode usar o seu idioma que eu o domino muito bem.
– É verdade, Vanessa. Você fala com perfeição inigualável. Por acaso não tem medo de ser confundida com uma mutante ao usar esses cabelos tingidos de azul?
– Esta é a cor natural dos meus cabelos, William. – Afirma a moça que jamais mente, por mais que lhe custe.
– Isso quer dizer que... bem... que... você...
– Se eu for fará alguma diferença? – Questiona, encolhendo os ombros.
– Desculpe, Vanessa, não quis ser grosseiro
– Tudo bem, já estou acostumada. O que o traz aqui? – Pergunta à queima-roupa. – Procura alguma diversão?
– Confesso que estou sem esse tipo de diversão há algum tempo, mas não foi isso. Acho que é um pouco da solidão. E você, Vanessa, o que faz?
– O que acha que uma mutante pode fazer neste planeta? – Responde com outra pergunta. – Ninguém me dá um emprego e só me sobra proporcionar esse tipo de diversão que disse que não tem.
O americano nota a tristeza nos olhos da moça e fica bastante compadecido, não ouvindo a última parte do diálogo até que ela repete:
– Quer divertir-se, William? – Sorri de forma estudada e ele nota na hora. – Afinal eu preciso de sobreviver e não é qualquer um que se quer divertir com alguém como eu.
– Vamos sentar em uma mesa e conversemos. – Pede William.
Ela segue o novo cliente levando a bebida na mão. Este puxa a cadeira para a moça sentar e nota que ela fica espantada, provavelmente porque não as pessoas normalmente não são educadas com mutantes. Senta-se ao seu lado, sorrindo gentilmente e pergunta:
– Vanessa, quanto você cobra?
– Depende. A hora são cem créditos, a noite inteira dois mil.
– Mas uma noite só tem cerca de oito horas...
– É verdade – a moça interrompe – mas dá para fazer muito mais em uma noite inteira do que em uma hora, dependendo da resistência do cliente, claro. Sem falar que estará possuindo uma virgem.
– Virgem!?
– Sim, perco a virgindade e pouco tempo depois volto a ser virgem. Coisas do organismo, que se regenera muito rápido. Já dormiu com uma virgem?
– Sim, já dormi há uns anos. – Afirma muito triste. – Mas ela me largou.
– Sinto muito, não o queria deixar abatido, William.
– Tudo bem, isso foi há muito, muito tempo. – Responde e sorri para a moça de quem gosta. – Você não tem culpa, Vanessa.
Ela pega na mão do acompanhante e põe entre as suas pernas, fazendo-o sentir o "material" e perguntando:
– O que vai escolher, William? – Sorri e continua. – Eu valho a pena.
– Você vale, Vanessa, e muito, mas sinto que isso a magoa de tal forma que eu jamais seria capaz de a usar. Se lhe desse prazer verdadeiro seria diferente, mas não é isso que os seus olhos me dizem.
– Então, William – a prostituta levanta-se, triste – me perdoe que eu preciso do meu ganha pão.
– Espere, Vanessa – pega sua mão e fá-la sentar novamente – eu lhe dou quatro mil.
– A noite inteira é dois mil, não quatro – afirma.
– Eu lhe dou quatro por dois dias comigo. Pode ser?
– Não faço sexo exótico, William, pois a única diferença que tenho é a cor dos cabelos e o fato de me regenerar...
– Vanessa... eu... eu... desculpe. Eu sou um cara solitário e até vim aqui procurar um consolo nos braços de alguém, mas o que eu mais desejo é uma pessoa que seja uma companhia, alguém que passe o Natal comigo, que converse, ria, brinque, ou apenas me escute. Eu vejo que o que faz não lhe agrada e preciso muito mais de calor humano do que sexo. – Com olhar suplicante, pousa a mão na dela e beija-a no rosto. – Quatro mil por dois dias de companhia, pode ser?
– Pode sim, William, mas isso é muito dinheiro. Não vai ficar em dificuldades? Eu me sinto mal em receber tanto sem cumprir a minha obrigação.
– Obrigação, meu anjo? – Dá um sorriso. – Obrigação é a clausula contratual, mesmo que verbal. E o que estou contratando é uma companhia para estar perto de mim: a sua.
– Eu sou uma mutante, como dizem, William. Está certo que deseja isso, passar dois dias na companhia de uma mutante, o tipo de gente que todos desprezam e espezinham?
– Mais do que nunca, Vanessa, pois eu nada tenho contra os mutantes. Para mim, são seres humanos como quaisquer outros e eu jamais discrimino alguém. – Pega na sua mão e beija-a, sorrindo.
– O que faz da vida para ter tanta grana? – Questiona, muito curiosa.
– Sou engenheiro aeroespacial. Trabalho no espaço, em um cargueiro, e estou de férias por um ano. Além disso, sou escritor e escrevo novelas de ficção espacial que vendem bem pra caramba.
– Por causa de gente como vocês, eu sou o que sou. – Afirma, triste e chateada. – Vocês trouxeram as primeiras mutações para a Terra.
– Isso foi há cem anos, anjo – diz, olhando sério para ela – hoje em dia as espaçonaves têm proteção contra os raios cósmicos. Por favor, não me culpe dessa tragicomédia da humanidade, até porque nada tenho contra os mutantes. Se fosse o contrário, não estaria aqui com você...
– Pelo amor de Deus, não me chame de anjo...
– Por quê, Vanessa? – Espanta-se com ela. – Para mim, você é a face de um anjo. Tome – estende o dinheiro – guarde e não deixe que vejam.
– Falou sério quando disse que só quer companhia? Não quer sexo?
– Sim, quero – responde e ela fica decepcionada – mas desejo sexo espontâneo e não pago, Vanessa. Não quero que durma comigo porque eu paguei por isso, Se fosse qualquer outra, seria diferente, mas você é especial, muito especial.
– William, vejo no seu pulso que você é um cidadão nível A. Qualquer outro que eu vi do mesmo nível me violentou, bateu e até tentou-me matar...
– Calma – põe o dedo nos seus lábios, calando-a – eu sou contra esse preconceito e acho um absurdo tratar os mutantes assim. Eles são vítimas do nosso passado e não demônios. Antigamente, os perseguidos eram os negros ou qualquer outro que não fosse branco. Depois homossexuais e por aí afora. Isso precisa de acabar. Você é a mais bela das mulheres que jamais vi e não é o azul dos seus cabelos que muda isso....
– Não são só os meus cabelos que são azuis. Todos os meus pelos são azuis. É que eu os raspo.
– Lá também? – Pergunta, manhoso.
– Sim, quer ver? – Antes que este responda, levanta a curta saia que nada tem por baixo, deixando-o meio elétrico, e ela nota.
– A sua beleza é angelical, Vanessa – afirma excitado mas muito controlado – e você não merece essa vida tão cruel.
– Não tenho outra forma de ganhar a vida, William.
O astronauta olha para a garota por quem simplesmente se apaixonou desde que a viu a primeira vez naquele balcão. Pede mais duas bebidas e diz, num impulso:
– Eu a sustento, Vanessa, pois não quero que sofra.
– Por quê?
– Porque fiquei completamente apaixonado por você, Vanessa, e não quero que sofra mais. Eu desejo que seja feliz.
O que ele disse foi a pior coisa que podia ter feito, pois ela levanta-se e afirma:
– Sinto muito, William, mas já sofri demais nas mãos de homens que se fizeram de bonzinhos para apenas me usarem. Não me leve a mal, mas vou indo. Tome seu dinheiro de volta.
– Tudo bem, Vanessa, pode ficar com ele que não me faz falta. Eu entendo o que passa e fui sincero do fundo do meu coração, mas você está demasiado magoada e não a culpo. Pensei que o meu sofrimento era grande, mas vejo que é um grão de areia comparado ao seu. Feliz Natal, querida.
Ela sai porta fora e William fica bem dez minutos pensando na moça por quem se apaixonou perdidamente. Triste, dá-se conta que sente um grande vazio na sua vida e que jamais o verá preenchido novamente.
Termina a bebida e paga a conta, saindo do bar. Anda os dez metros que faltam até à esquina para ver Vanessa caída no chão, muito ferida. Preocupado, verifica os sinais vitais e nota que está viva, mas crítica. Como se trata de uma mutante, nenhum hospital lhe dará atendimento imediato, mas ele, por ser astronauta, tem conhecimentos paramédicos completos. Pega na moça ao colo e deita-a no banco de trás do carro, levando-a ao seu apartamento. Tira suas roupas e limpa-lhe o corpo com soro fisiológico, aplicando em seguida um spray antisséptico e tratando dos ferimentos mais graves. Depois, fica de vigília, até que o sono acaba tomando conta. Sem pensar, despe-se e deita-se ao seu lado, adormecendo abraçado a ela e sonhando com a bela dama de cabelos azuis.
― ☼ ―
Na esfera superior, Gabriel questiona seu Mestre.
– Senhor, por que fez isso com ela? – Pergunta-lhe, sentindo-se bastante aflito. – Ametista é demasiado jovem para suportar essa vida. Ela é incapaz de entender o livre arbítrio...
– Gabriel, confia em mim. Eu criei Ametista para ajudar a mudar o mundo mortal. Ela é mais poderosa que todos os meus querubins reunidos, mas não o sabe e seu destino está entre os mortais. Vejo que sentes algo por ela, mas não dês sequência a isso, pois ela não foi feita para ti e sim para os mortais.
– O senhor tudo vê e tudo sabe, Divino, mas realmente sinto algo.
– Aponta os teus olhos para outro lugar ou vais sofrer inutilmente. E nada mais de bancar o mendigo para a ajudar. Tudo tem um propósito, até isso, mas não permitirei mais intervenções.
– Sim, Mestre, perdoe-me.
– Gabriel, já sabias desde o inicio o motivo de eu ter criado Ametista. Não deixes sentimentos mortais tomarem conta de ti.
Cabisbaixo, Gabriel afasta-se. Entretanto, por saber dos planos superiores, acaba resignado.
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Vanessa abre os olhos e nota que está em uma cama muito confortável. Mal a moça se mexe, William, ainda abraçado a ela, acorda e sorri-lhe.
– Vejo que o que você disse é verdade, pois não tem uma única marca dos maus-tratos que recebeu.
– Jamais minto, William, mas você me trouxe para os seus aposentos e se aproveitou de mim. Bem; já que pagou, tinha esse direito. Infelizmente, roubaram-me.
– Juro por tudo o que há de mais sagrado que não me aproveitei de si, Vanessa. Encontrei você muito ferida e trouxe-a para a minha casa...
– Mas você está nu e ao meu lado, sem falar que tirou minhas roupas pois estou tão pelada quanto você. – Olha para o corpo dele e continua. – Alem disso, você tá que tá.
– Qualquer homem saudável acorda assim, anjo, já devia saber disso. Como eu disse antes, só farei amor com você se me desejar espontaneamente e não por pagamento. Eu tirei suas roupas para limpar seus ferimentos e durmo nu por hábito. Como estava muito cansado, despi-me e adormeci.
– Não sabia não – ela acaricia o acompanhante, sentindo o seu calor e virilidade. Ele é um homem especial, como nenhum outro que tenha conhecido. Pela primeira vez percebe realmente a bondade em alguém, até mais do que isso, sente gentileza e uma entrega espontânea, talvez até amor. Nota um calor diferente e descobre que o deseja de verdade, sentindo coisas novas no seu corpo humano.
– Eu quero você, mas vá devagar, por favor. – Sobe sobre ele que a acaricia, gentil. Quando terminam ela abraça-o sorridente e ofegante.
– Nunca tinha sentido algo assim. – Dá uma risada e beija-o nos lábios. – Jamais imaginei que o sexo fosse tão gostoso.
– Se estamos com a pessoa certa, é gostoso demais, Vanessa.
Ficam ambos felizes namorando por um bom tempo até que o americano convida-a a saírem para comerem algo.
– William, ninguém vai permitir que eu entre em qualquer restaurante decente.
– Vai sim, meu anjo, e ai de quem nos impedir. – Beija-a e vão para a rua, caminhando abraçados.
Há muitos anos que William não se sentia tão feliz e aquela mulher foi o melhor presente de natal que poderia ter recebido; mas, quando vão entrar no restaurante, são barrados.
– Nem pense em entrar aqui com uma mutante, homem. – Afirma o proprietário, indignado. – No meu restaurante, não permito mutantes.
– Ela é um ser humano – responde William – e não vou admitir que a trate assim.
– Não me interessa...
– Olhe, eu não vou tolerar esse comportamento. – Pega no pulso do homem, vendo a letra C, e mostra o seu. – Está vendo? Sou nível A o que significa que possuo o código genético completamente perfeito, ao contrario de você. Logo não permitirei que discuta comigo. Saia do caminho que eu e a minha namorada queremos entrar. Já ouviu falar em pintura de cabelos, meu caro?
– Desculpe – afirma, afastando-se – devia ter dito que era apenas pintura de cabelo.
– Para mim isso independe e continua sendo a mesma coisa. Os mutantes são vítimas do nosso passado e não está certo tratá-los mal.
– William – Vanessa fala baixinho, enquanto ele escolhe os pratos – não é bonito mentir.
– Eu não menti, meu amor – ergue os olhos do cardápio e sorri-lhe, beijando-a ternamente – apenas mencionei a existência das tintas e não que você havia pintado.
– Obrigada por me proteger. Até hoje eu jamais havia sido tratada assim e...
– Vanessa – pega a sua mão e beija-a – basta querer e você será tratada assim para o resto da sua vida. Eu não sei o que me fez e jamais acreditei em amor à primeira vista, mas foi o que me aconteceu e estou perdidamente apaixonado por si.
– Você é nível A. – Afirma ela, caindo na realidade. – Jamais permitirão uma união entre nós.
– Por si eu renunciaria ao meu grau, Vanessa. Vai passar os dois dias comigo? Eu dou-lhe outros quatro mil.
– Sim. Obrigada por me proteger, mas preciso de pensar sobre tudo. Até há pouco, eu apenas via crueldade nos homens e tenho que me habituar.
– Tudo bem, anjo.
– Por que me chama de anjo? – Questiona. – Afinal sou muito diferente deles!
– É uma forma carinhosa de falar, porque os anjos são muito especiais, tal como você. – Dá uma risada e acrescenta. – Do jeito que falou, até parece que conhece anjos!
– E se eu fosse realmente um anjo? – Pergunta, dando-lhe um beijo suave.
– Então seria o mais belo e perfeito anjo que jamais vi, mas eu prefiro que seja humana, pois eu a amo. Além disso, não acredito nessa baboseira.
A garota sorri, feliz pela primeira vez em muito tempo. Terminam de comer e vão saindo abraçados quando ele diz para o dono do restaurante:
– Sabe, meu amigo, ela é realmente uma mutante, mas diga uma coisa: por acaso a sua casa sofreu com isso? Ela contaminou alguém? Pense nisso e não trate os mutantes tão mal, pois eles têm qualidades maravilhosas e eu não a trocaria por nenhuma cidadã de nível A.
Ambos saem e deixam um homem boquiaberto, porém pensativo. O casal aproveita para passear em um parque e fazem isso por quase todo o resto do dia.
Vanessa sente-se confusa demais, pensando em como estava errada sobre os seres humanos. Aquele homem despertou-lhe sentimentos e desejos que jamais conheceu, descobrindo que sente um profundo prazer em estar ao seu lado. O toque do corpo contra o dela dá-lhe uma sensação enorme de aconchego e entrega-se de corpo e alma a esse novo sentimento. Feliz, abraça-o mais e encosta a cabeça no seu ombro. Quando começa a anoitecer, ela pede:
– Vamos para a sua casa? – Seu sorriso derrete William, que a olha estasiado e apaixonado. – É que eu desejo você de novo. Mas não esqueça que terá de ir sempre devagar no início, pois a esta hora já voltei a ser virgem.
Quando terminam, Vanessa encosta a cabeça no seu ombro, feliz, enquanto ele a acaricia e diz:
– Amo-a profundamente, Vanessa, e preciso muito de você ao meu lado. – Ela ergue a cabeça, sorrindo, e William olha para seus olhos verdes, continuando muito sério. – Há oito anos, fui abandonado pela minha mulher, justo no Natal, e sofri muito todo este tempo, principalmente a solidão. Você foi a melhor coisa que jamais me aconteceu.
– Também o amo, William...
– Você está brilhando, amor! – Afirma, interrompendo-a. – O que está acontecendo?
– Oh não, tudo menos isso. – Diz, sentando-se e começando a chorar. – Não agora que encontrei você...
– O que está acontecendo, meu amor?
Aos prantos ela diz:
– Eu não sou uma mutante, William, e o meu verdadeiro nome é Ametista. Sou um anjo que sofreu um castigo por achar que todos os Homens eram insensíveis e cruéis. Deus mandou-me com a missão de encontrar alguém puro e somente nesse dia voltaria à minha condição superior. Só que eu amo você e não quero mais voltar...
– Por que não me contou?
– Era impedida disso, da mesma forma que jamais posso mentir. Oh, meu amor, não é justo...
Ametista vai ficando cada vez mais brilhante e seus cabelos passam a um tom dourado, intenso e refulgente. Ainda chorando, ela continua:
– Tarde demais. – Seu braço, agora algo de brilho intenso, toca no William, que sente um formigamento agradável. – Adeus, meu amor, lembre-se sempre de mim, pois jamais o esquecerei.
Como que por encanto, Ametista vira uma bola de luz e desaparece. Com lágrimas nos olhos, William pensa na mulher que amou tão intensamente e em tão pouco tempo.
― ☼ ―
De volta para a sua dimensão, o primeiro ser que encontra é Gabriel, que a abraça, sorrindo.
– Conseguiste retornar, Ametista, cumpriste a tua missão.
– Sim – afirma abatida – mas acho que o preço disso será um fardo muito pesado para mim.
– Vejo que te apaixonaste perdidamente por um mortal.
– Sim, mas ele é algo tão especial que não há palavras que o descrevam.
– Agora descansa um pouco. Acho que devias ir alimentar-te um pouco em um sol, pois estás com o brilho muito apagado. Em breve, Ele dever-te-á chamar.
Ametista sente-se cada vez mais abatida e infeliz. Tudo o que deseja é voltar à forma humana e viver como uma mortal ao lado do homem que conheceu e ama.
Enquanto pensa nisso, uma luz intensa envolve seu corpo luminoso e é transportada perante Deus, que mostra a verdadeira face à sua querubim pela primeira vez.
– Então, Ametista, agora entendeste os homens?
– Sim, meu Senhor, entendi – responde angustiada – embora ainda tenha muito que aprender. Desculpe-me pelos meus atos do passado.
– Que bom que aprendeste, mas o que te faz tão infeliz?
– O Senhor é omnisciente e certamente já sabe de tudo. Então, por que me pergunta?
– Jovem e impulsiva como sempre – afirma Deus, falando meigamente e sorrindo – perguntei porque quero ouvir isso de ti. Tudo o que eu faço, minha linda, tem um propósito muito bem definido, até mesmo o que parece errado ou provoca sofrimento.
– Porque eu conheci um amor puro, verdadeiro, e jamais poderei viver isso estando aqui.
– Aquele homem é destinado a fazer algo muito grandioso, mas está perdido e igualmente triste. Vocês os dois precisavam de aprender algo um com o outro e foi por isso que fiz com que se encontrassem. Ametista, qual foi o maior dom que dei aos mortais, o maior e mais perigoso deles?
– O livre arbítrio, Senhor.
– Exato, mas estaremos cativos das consequências disso. Certa vez, um mortal muito famoso explicou isso em uma única frase: nós somos os nossos atos.
– Entendo, senhor...
– Óbvio que não entendes, criança. Por acaso tu achas que só dei esse dom para os mortais? – Ele sorri, sacudindo a cabeça e piscando um olho. – Vocês também o têm. Esse homem precisará muito de ajuda superior e tu és a pessoa destacada para isso desde que te criei.
– Seria possível fazê-lo estando na forma humana, meu Senhor?
– Claro. Todos os anjos têm o dom de assumir a forma humana ou qualquer outra sempre que desejarem, mas não são humanos e não sentem as coisas como tal. Ele sofreria muito sem te poder ter como uma mortal, Ametista.
– O Senhor disse que ele sofre e eu também. Seria possível viver como mortal e, assim mesmo, cumprir o meu desígnio?
– É esse o teu desejo, Ametista?
– Sim, meu Senhor, mais que qualquer outra coisa.
– Tens a minha benção, querida. Vai e sê feliz, mas jamais te esqueças que tens de o proteger acima de tudo. Serás transformada numa mortal, mas manterei os teus poderes de querubim e, quando ele morrer, retornarás a mim.
― ☼ ―
William está demasiado abatido, pois faz dez dias que ela partiu. Enquanto caminha desolado, vê uma igreja e entra, aproximando-se do altar. Sem jeito, ajoelha-se e olha para a imagem de Cristo, dizendo:
– Senhor, eu nunca fui dado à religião e nem mesmo acreditava em Si. – Uma lágrima corre pelo seu rosto. – Agora, não sei como falar; mas, já que estou na casa de Deus, venho fazer-lhe um pedido muito importante: devolva-ma, pois desejo Ametista de volta à minha vida, já que esta perdeu completamente o significado depois que o meu anjo se foi. Por fa...
– Por que achas que ela não faz parte da tua vida, filho? – Espantado, William olha para uma bola de luz à sua frente, onde aparece a nuance de um rosto, difuso e difícil de ver. – Esta não é a minha casa, jovem. A minha casa é todo o universo, a criação. Não precisavas de entrar aqui para falar comigo e não é a religião que te obrigará a ser melhor, ao contrário do que a maioria pensa. Se isso fosse verdade, apenas os cristãos seriam filhos de Deus. Todavia, todos são meus filhos, independente do que acreditam. Voltando a ela, Ametista foi criada para te proteger, cuidar de ti. Ela é o teu anjo da guarda, mas somente soube disso há pouco. Tu, tal como Cristo, não tiveram um anjo da guarda até atingirem a maturidade, pois eu os criei muito especiais.
– Senhor, eu preciso dela ao meu lado. Jamais senti algo assim em toda a minha vida!
– Ela estará sempre ao teu lado, filho, pois essa é a função de um anjo da guarda e esta é uma promessa que te faço desde que tu cumpras o teu destino, que não será nada fácil.
– Eu queria muito mais do que isso...
– Bem sei, mas cada coisa a seu tempo, meu jovem. Então, contenta-te com o que tens. Agora preciso de ir. Adeus e toma cuidado com o que desejas, pois poderás obter mais rápido que pensas.
– Sim, meu Senhor, adeus. – Abatido, vira-se para sair da igreja e acaba tropeçando em um corpo caído. Quando recupera o equilíbrio, saltando por cima, vira-se e olha para o chão, encontrando Ametista inanimada aos seus pés. Emocionado e feliz, pega-a ao colo e vira-se para o altar, dizendo. – Obrigado, Senhor.
Caminha até à porta, quando Ametista abre os olhos e sorri para o bem-amado, enlaçando seu pescoço. Este pousa-a no chão e beija-a, cheio de ternura. Ela não está mais com os cabelos azuis e sim o dourado que viu por último. Olha para o verde dos seus olhos e faz-lhe um carinho na face tão bela e pura.
– Amo você, Ametista. – Afirma. Depois pergunta-lhe. – Você viveria comigo, casaria comigo?
– Sim, William, foi por isso que voltei, porque preciso de você tanto quanto você de mim. E foi por isso que Ele me permitiu. Eu o amo muito.
Enquanto o par, sempre muito abraçado, caminha para a casa dele, a garota pergunta:
– E agora, o que pretende fazer?
– Vou abandonar a minha profissão de astronauta e apenas escrever, uma vez que tenho tanta fortuna que não preciso mais de trabalhar. Assim, eu não ficarei longe de você e, além disso, estou decidido a acabar com esse preconceito contra os mutantes.
Ela estende os pulsos, onde uma letra A aparece. William pega neles e beija-os, feliz, enquanto ela pergunta:
– Fará isso, mesmo eu não parecendo mais uma mutante?
– Sim, meu anjo, pois sempre desejei acabar com esse preconceito tolo e você me deu a coragem necessária para isso. Entretanto, vou sentir uma certa saudade do azul do seu cabelo anterior.
– Não precisa sentir falta disso. – Ela sorri com seu ar espantado ao vê-la de cabelos azuis. – Deus disse que não me retiraria os meus poderes de querubim para o poder proteger. Posso fazer coisas que nem imagina e uma delas é assumir qualquer forma.
Ela volta a ser loira e ele questiona:
– E qual é a sua forma verdadeira?
– Como anjo, sou feita de energia, uma bola de luz, mas como humana sou assim mesmo.
– Bem, Ametista, vai ser legal você trocar de cor de vez em quando, mas eu quero a sua forma verdadeira para sempre, especialmente seus olhos verdes.
Deitados na cama e ainda ofegantes, ele pede:
– Amo você, Ametista, vamos casar?
– Quando você quiser.
― ☼ ―
O escritor, William Tenessee começa a alterar o foco dos seus livros. Vive muito feliz e casado com o anjo da sua vida há mais de dois anos, que lhe rendeu uma linda filha. Há medida que suas obras vão mudando, onde vários mutantes tornam-se personagens importantes, ele vai sendo cada vez mais criticado pela mídia. Contudo, suas obras sofreram um acréscimo de vendas em mais de duzentos por cento. Por inúmeras vezes, decreta publicamente que a segregação aos mutantes é um erro e um crime, pois são tão humanos quanto ele e também têm sentimentos e qualidades.
O tempo vai passando e William vai-se tornando cada vez mais conhecido e apreciado, ao contrário das expectativas. Decidido a mudar tudo, candidata-se a presidente mundial, tendo, nas estatísticas de votos, a maioria absoluta ao seu lado. Seu lema é simples: governo transparente e igualdade social para todo e qualquer ser humano e os adeptos crescem exponencialmente.
Ele sente que está no caminho certo, sendo sempre acompanhado pela sua querida e amada esposa onde quer que vá. Certo dia, em um comício eleitoral, Ametista pressente o perigo iminente. Num mísero segundo atira-se à frente do marido e recebe o tiro no peito. Ferida de morte, estende a mão para o assassino e a arma usada para matar William incendeia, queimando a mão do criminoso de tal forma que este berra alucinado ao ver seu braço carbonizando sem que se consiga apagar.
Com um grito de angústia, o marido ajoelha-se aos seus pés enquanto ela respira com dificuldade. Desesperado, diz:
– Não me deixe, Ametista. Sem você, prefiro morrer.
– Calma, amor – responde com um sorriso fraco – apesar de ter um corpo mortal, ainda sou uma querubim e não posso ser morta por humanos, mas dói muito e fiquei demasiado fraca.
– Eu te amo, Ametista. – Ergue a esposa com dificuldade e grita para os microfones. – Vocês odeiam os mutantes, mas alguma vez viram um deles fazer isto? Tentar cometer um assassinato? Não são os mutantes os bandidos, e sim os puros, seres tão intolerantes para com a própria espécie que mais cedo ou mais tarde, acabarão sucumbindo por si mesmos.
Com a esposa no colo, sai para casa, encontrando sua mãe e a filha brincando juntas.
Deita Ametista na cama e abraça a filha, agora com seis anos, que lhe diz:
– Enquanto a mamãe estiver com o senhor, papai, jamais será ferido ou morto. Continue lutando pela nossa humanidade.
Espantado com tamanha maturidade naquela simples frase, dá-se conta que a humanidade está em um período de transição.
― FIM ―
Jean-Paul Sartre, filósofo francês.
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