Alma Canina

"Se existe amor à primeira vista, não sei; mas, quando te vi, apaixonei-me."

Autor Desconhecido.


Talvez o melhor seja eu começar do início para que vocês me possam entender melhor. Sou um pequeno ser, quadrúpede e incapaz de falar, mas nem por isso desprovido de sentimentos. Na verdade, nós os cães somos profundamente sensíveis e sentimentais, especialmente quando se trata desses seres tão misteriosos e assustadores, os nossos Deuses, os bípedes que cuidam de nós – exceto por alguns deles – e que nos dão tanto amor.

Eu não nasci feliz, não tive a sorte de ter um Deus bom. Quando ainda era um bebê, fui arrancado da minha mãe e levado para um local estranho. Triste, eu gania muito e logo comecei a apanhar para me calar, mas não entendia isso e gania mais com a dor que os meus Deuses me proporcionavam.

Quando tinha uns três meses, eu acho, comecei a esquecer disso. O engraçado é o fato de me lembrar agora, mas estou lembrando toda a minha vida, toda mesmo!

Mal havia feito seis meses, senti muitas dores e parei de comer. O meu Deus colocou-me naquelas coisa barulhentas, sem falar que algumas deitam cheiros bem desagraváveis. São essas coisas mágicas que os Deuses criaram e conseguem andar sozinhas. Ele me levou para um tal de Deus Veterinário que foi muito gentil e me tratou bem, muito bem mesmo. Tanto que eu o adorei e queria ficar com ele em vez do meu Deus, que me batia muito. Ele me deu um tal de remédio, mas pra mim foi uma picadinha bem desagradável e ardida. Depois, falou coisas na língua dos Deuses que eu não compreendi a não ser algumas palavras, mas entendi que eu tinha algum problema congênito – se alguém souber algo sobre isso, me explique – e que eu não viveria muito a menos que fizesse tratamento constante. Também falou que era dispendioso, mais uma das palavras que eu não entendi.

O meu Deus me colocou de volta no tal de carro, essas criações mágicas que andam sozinhas, e andou por algum tempo. Depois, parou e me pegou ao colo, me deitando no chão em uma esquina. Eu ainda não podia andar, mas já me sentia melhor com o remédio que me deram. Triste, dei-me conta que o meu Deus se afastava, me abandonando na rua. Por um lado, considerando os maus-tratos que recebia, talvez fosse melhor assim; mas, por outro, tinha medo de ficar sozinho, medo de um mundo que não conhecia.

Eu estava melhorando bastante e sentia a fome apertar. Tentei levantar e consegui, começando a andar lentamente, procurando cheiros de comida. Na esquina seguinte, encontrei um pedaço de hambúrguer e comi, me sentindo bem melhor. Continuei a vagar pelas ruas e achei um saco de lixo com restos de comida. Estava anoitecendo e fui para um beco que encontrei, me deitando em um canto escuro e dormindo.

Eu não morri, como o Deus Veterinário disse que ia acontecer, mas passei muita fome e fui muitas vezes bastante maltratado. Sempre que eu via um Deus, principalmente um filhote de Deus, procurava afastar-me.

Passei muito tempo assim, nem sei quanto. Foram dias sem comer, dias frios e chuvosos, mas outros bem agradáveis, até que uma coisa mudou completamente a minha vida: eu estava tentando arranjar alguma comida em uma lixeira e rasguei um saco de lixo, encontrando restos de carne que estavam ótimos. Feliz, comecei a comê-los e me distraí.

Só voltei à realidade quando recebi um terrível chute que me fez voar contra a parede onde bati e fiquei caído, muito atordoado, incapaz de me mexer e com a sensação que não sobrou um único osso inteiro. O Deus bravo avançou sobre mim, preparando-se para me dar outro chute e eu estava incapaz de me levantar para fugir. Apenas olhava para ele, que dizia:

– Malditos cães vadios. – Estava furioso comigo. – Vou mesmo é acabar com a sua raça, desgraçado.

Eu achava que finalmente tinha chegado a minha vez, quando uma freada forte dessas carruagens dos Deuses se fez ouvir. Ela parou bem ao lado do homem e uma Deusa saiu, irada e muito exaltada. Ela tinha longos cabelos e olhos castanhos. Correu e colocou-se entre mim e o Deus bravo, gritando:

– Se você tocar mais uma vez neste pobre animal, eu vou acabar com você.

– Sai da frente moça. Esse desgraçado sempre destrói os sacos de lixo, espalhando tudo pela rua e vou acabar com isso de uma vez.

– É o último aviso!

O Deus mau avançou e eu só vi a Deusa erguer um pé tão rápido que nem deu para entender. Ela acertou o focinho do Deus mau, que caiu duro no meio do chão. A Deusa virou-se para mim e eu comecei a tremer de medo, mas ela se abaixou e me fez um carinho, falando docemente:

– Pobrezinho. Ele machucou você? – Sorriu e me pegou no colo, colocando-me no carro. – Vamos, eu vou tratar de você, pequenino. Como pode haver tanta gente cruel?

Ela era gentil e meiga. Eu jamais tinha sido tratado assim e senti uma coisa especial por aquela Deusa que se chamava Sandra. Ela me levou para outro Deus doutor que cuidou de mim. Depois, Sandra me levou para um lugar onde me deram banho. Eu adorei demais aquela água morna no meu corpo e me senti bem melhor. Finalmente eles cortaram meu pelo. Mais tarde, eu estava de frente para Sandra, que se abaixou para mim e me acariciou. A sensação do toque ela era algo tão especial que eu me aproximei mais e lambi suas patas. Ela riu e me disse:

– Que lindo Scottish Terrier eu fui encontrar. Agora você está bem limpinho e cheiroso, mas tenho que lhe arrumar um nome. Acho que o vou chamar de Bruno. – Ela levantou-se e perguntou para a atendente. – Quanto lhe devo?

– Vejamos – disse, consultando o computador – banho, tosa, um saco de ração, dois pratos, coleira. São cento e doze Reais.

Sandra pagou e pôs a coleira em mim, me levando para o carro. Eu senti felicidade pela primeira vez na minha vida, uma felicidade intensa e um amor enorme por aquela Deusa da Bondade.

– Agora você vai para a sua nova casa, Bruno, e jamais será maltratado ou passará fome novamente. Eu lhe prometo.

Não compreendi tudo o que ela disse, mas entendi o suficiente e segui ao seu lado cada vez mais satisfeito. Chegamos ao apartamento e ela foi logo colocando água em um prato e ração no outro, deixando num canto da cozinha. Eu me aproximei e comi com prazer. Quando terminei, voltei para a sala, procurando Sandra, a minha Deusa, a melhor e mais especial Deusa que alguém pode ter. Com um suspiro, deitei-me ao seu lado e pus a pata sobre seu pé, pousando a cabeça por cima. Ela baixou-se e me fez carinho na cabeça. Eu dormi e sonhei muito, sonhei com ela, que não estava mais perdido nem abandonado. Quando Sandra se levantou para ir dormir, fui imediatamente atrás dela. É a Deusa mais bela que eu já vi. Ela tirou aquilo que chamam de roupas e deitou-se na cama. Feliz, deitei no tapete, ao seu lado.

Passei a viver com ela. De manhã, levava-me a passear e, depois, arrumava-se saindo sozinha para trabalhar e me deixando sempre muito triste. Quando voltava, eu, bem contente, ia novamente passear com ela. Mas havia dois dias em que ela costumava passar junto comigo o dia inteiro, muitas vezes passeando grande parte do tempo, sempre em lugares maravilhosos. Além disso, a cada quinze dias me levava para o mesmo lugar onde me deram banho, para tratarem de mim.

Eu transbordava de felicidade e muitas vezes ficava horas parado, olhando para minha Deusa. Havia ocasiões em que ela dormia e eu pulava na cama, deitando aos seus pés. Ela nunca me bateu ou tratou mal, mas uma que outra vez zangou-se.

Um dia, quando ela passeava comigo, um Deus aproximou-se dela e puxou conversa. Eu não gostei e mostrei para ele os meus dentes. Jamais permitiria que alguém se aproximasse assim da minha Sandra. O Deus sorriu e se abaixou para mim, estendendo a mão. Imediatamente, mordi-o. Ele retirou a mão, sangrando, e Sandra ficou muito zangada.

– Que feio, Bruno. – Me deu um puxão na coleira e uma palmada pequena no lombo. – Hoje não vai dormir na minha cama. Está de castigo.

Ela não me bateu com força, mas aquilo doeu mais que qualquer outra coisa que me aconteceu. Eu baixei a cabeça e senti lágrimas nos olhos. O Deus falou delicadamente.

– Não se zangue, moça, ele apenas queria protegê-la. Eu adoro esta raça e tenho dois. Eles são assim mesmo. – O Deus estendeu a mão e eu me encolhi, mas não ataquei de novo, com medo de outra bronca. Ele aproximou a mão e me deixou cheirar. Senti que era o cheiro de uma pessoa boa e me acalmei. Depois me acariciou e descobri que ele era muito bacana. – Viu?

– Você tem jeito com animais. Como se chama? Sou Sandra.

– Prazer, Sandra, sou Bruno, como seu cachorro. Sabe, amanhã pretendo sair com os meus cães para aqui. Se estiver por cá, adoraria que nos acompanhasse.

Os dois Deuses conversaram por um bom tempo e Bruno acompanhou-nos até à entrada do apartamento. Quando anoiteceu, Sandra trocou de roupa e me beijou.

– Você vai ficar aqui que eu vou jantar fora, está bem? Lá, infelizmente, lá não poderá entrar comigo.

Fiquei triste enquanto ela saía. Deitei no tapete da sala, bem de frente para a porta e esperei. Esperei muito tempo, cada vez mais preocupado e nada dela voltar. Eu tinha fome e sede, mas não saí daquele lugar, aguardando a minha querida Deusa.

Foi com muita alegria que ouvi as chaves dela abrindo a porta. Ergui-me e lati alegre, pulando à sua volta. Enquanto ela tomava banho, fui para a cozinha, comi e bebi, para depois me deitar ao seu lado.

No outro dia, saímos novamente para o parque e aquele Deus apareceu com dois cães iguaizinhos a mim. Eu fiquei feliz em ver dois irmãos e brincamos bastante, enquanto Sandra e Bruno conversavam animados. Foi o melhor dia da minha vida. Quando ficou tarde, nós fomos para casa e, mais tarde, Bruno apareceu para jantar com Sandra.

Eles, às vezes, beijavam-se. Mais tarde ambos foram, sempre se beijando, para o quarto e tiraram as roupas, indo para a cama. Eu fiquei deitado sempre por perto.

Mais tarde, ele saiu, despedindo-se da Sandra. Ela se abaixou e me abraçou, beijando a minha cabeça.

– Sabe, Bruno, por causa de você eu conheci um cara maravilhoso. Você é o melhor cão do mundo. – Não sei bem o que ela disse, mas fiquei feliz com o carinho.

Eu vivi mais dois maravilhosos anos, sempre vendo Sandra e Bruno juntos, até que um dia comecei a passar muito mal. Correndo, Sandra me levou ao Deus Veterinário. Enquanto me observava, ele ia ficando preocupado, falando com Sandra. Eu, infelizmente, não entendia quase nada, mas fiquei apreensivo porque Sandra começou a chorar, enquanto ligava para Bruno que apareceu meia hora depois e beijou-a. Ele me viu deitado na mesa e fez uma carícia, coçando atrás da minha orelha.

– O que foi, amor? – Ele perguntou, muito preocupado.

– O doutor disse que é um problema congênito e que ele ficou tempo demais sem tratamento. – Chorava abraçada ao ombro do Bruno. – Ele diz que as chances de cura são apenas dez por cento e os remédios são caríssimos. Eu não me importo com as despesas, mas estou com medo de o perder.

– Amor. Tudo o que podemos fazer é cuidar dele e esperar que a sorte lhe venha a sorrir.

– Parece que foi ontem que o salvei de ser morto por um brutamontes. – Ela abraçou-me, ainda chorando. – O pobrezinho estava abandonado à sorte, virado em pele e osso, cheio de pulgas e sujeira. Jamais imaginei que o fosse amar tanto.

– Calma, amor. – Bruno abraçou Sandra. – O veterinário já deu alta?

– Estamos esperando um medicamento que ele mandou vir por motoboy.

Mal terminou de falar, o Deus doutor entrou e deu para Sandra uma caixa.

– Aqui está o medicamento, dona Sandra, mas no estado adiantado em que se encontra, talvez a melhor escolha fosse sacrificá-lo.

– Jamais enquanto houver uma chance, doutor. Quanto lhe devo?

O doutor deu o valor e Sandra estendeu aquele pedaço de plástico que sempre usava em certas ocasiões. Depois, ainda chorando muito, me pegou no colo e saiu com Bruno ao lado. Ele apoiou Sandra e disse:

– Você não está em condições de dirigir, amor. Vamos que a levo e mais tarde venho de táxi pegar meu carro.

Bruno ajudou Sandra a entrar no carro e fiquei deitado no seu colo. No apartamento, ela sentou-se ao meu lado, me dando pedaços de carne com a mão e eu consegui comer bem pouquinho.

Bruno também ficou o resto do dia conosco, ajudando a cuidar de mim, mas eu estava ficando cada vez mais fraco. De noite, ele foi embora porque precisava trabalhar no outro dia – o que será isso? – Ele viria nos ver novamente à noite.

Sozinhos, Sandra sentou-se no sofá e me pôs no colo, acariciando minhas orelhas e vendo televisão. Essa tal de televisão era uma coisa muito bacana que eu adorava ver. Ficava horas olhando, mas não entendia como Deuses e animais podiam viver dentro daquela caixa tão pequena e fina. Por muitas vezes rondei aquela coisa, cheirando tudo, mas nada encontrei que mostrasse a existência deles. Todavia, a prova é que existiam e estavam ali, bem à minha frente.

Quando ficou tarde, Sandra me levou para sua cama e me deitou ao seu lado. No meio da noite deu-me o medicamento e voltou a chorar ao ver que eu não tinha melhorado.

De manhã, ela usou aquelas caixinhas de falar e disse que não podia ir trabalhar porque estava passando mal, ficando o dia inteiro ao meu lado, cada vez mais agoniada por ver que eu piorava. Bem que gostaria de a poder confortar, mas não sabia como. Sentia-me cada vez mais fraco e debilitado, pois a dor aumentava um pouco e a respiração estava difícil. Quando anoiteceu, Bruno apareceu e ficou ao nosso lado. Eu estava cada vez com mais dificuldade em respirar e via Sandra chorando sem parar. Queria confortá-la, dizer que voltaria novamente. Quanto mais fraco e moribundo eu ficava, mais claras as coisas se tornavam. Como dizer que eu estava no fim de um estágio, fim esse atingido graças ao seu amor? Da próxima vez, eu nasceria um homem – sim, agora sei que não são Deuses e sim seres humanos, criaturas tão imperfeitas quanto nós – e o meu espírito nasceria filho dela... dela e do homem que se aproximou de nós por minha causa.

Deitei mais um olhar para ela, a minha Sandra; e, com um último suspiro, parti para recomeçar em outro plano, com a minha alma canina pairando no ar, a minha alma fortemente enriquecida com o amor daqueles dois.

Adeus minha dona. Estarei sempre ao seu lado por muitas e muitas vidas, você verá.

― FIM ―

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