Amizade e omelete coloridos


O Antônio tava mesmo precisando conversar. O sábado em questão corria como um trem desgovernado. Mas ainda assim pudemos aproveitar o cinema pra cochichar mais algumas besteiras.

— Porque tu mora sozinho se teus pais moram tão perto?

— Quando eu vim pra Blumenau, tava morando junto com aquela moça. Não foi muito saudável pra nenhum dos dois. Tudo que é demais, se torna nocivo. Tudo era intenso demais. Brigas, sexo e solidão. Eu fiquei com medo das ameaças que ela fez na época, me fechei e não namorei mais ninguém. Preferia só ficar, só uns lances sem compromisso.

— O que ela fazia?

— Uns troço de piercing e tatuagem. Ela tinha tattoo até na...

— Entendi.

— Na xavas...

— Eu disse que já entendi. Cara, que horror usar essa palavra pra se referir a uma vagina... enfim,  nenhuma mulher merece ouvir isso, chega sangrar o ouvido. Se eu fosse mulher e o cara chamasse a pepeca desse nome horrível, eu mandava a merda. 

— É né... coitada, pepeca é mais bonito. 

— Vamos mudar de assunto?  O filme tá chato e nem estamos prestando a atenção.

—Vamo dar uma volta de motoca. 

— Não. Deixa assim. Eu ando com medo de me ralar outra vez. Olha aqui, deu cicatriz nesse ladinho perto do cotovelo.

Antonio chega muito perto. Tão perto que quase encosta os beiços no meu braço, segura com cuidado como se fosse uma fratura exposta, enquanto eu me arrepio todo.

— Tá com frio? — sua voz fica rouca e o olhar mantem-se firme. Quando abro a boca pra dizer que não, ele tira a blusa e me estica.

Na hora eu amei o cheiro da sua colônia. Pra um hétero emprestar um suéter,  ser legal e não se importar com nada é meio, não, é 70 porcento do caminho andado. Só que ainda tinha um detalhe, a Milena. Mesmo com as coisas meio balançadas por culpa do pai da menina, ela ainda era a namorada do Wolf.

— Tua namorada ia ficar cabreira se soubesse....

— Naaa, eu e tu somos amigos. Eu saio com meus amigos nos finais de semana. Nada haver. Tem um deles que é estranho, só fala de gente morta.

Olhando bem de perto. Gente como ele é gato! A proximidade deixa ver muito além da beleza superficial. Dá pra ver as atitudes, ouvir melhor seus dramas e também aquelas coisas engraçadas que a gente esconde de todo mundo, mas um dia acha a pessoa certa pra contar.

Fico feliz em saber que ele quis me contar sua intimidade e seus podres. Ele estava certo que não sofreria nenhum tipo de julgamento ou seria alvo de chacota.

— Ei, qual a maior distância que você já andou de moto? — ele me pede.

— Eu? Ah Antônio eu nem sei. Nunca saí da cidade de moto.

— Vamo cair na estrada um dia desse? Eu já fui até Curitiba de moto só pra ver um show.

— Aí meu Deus. Eu morro de medo.

— Naaa, eu sou bom piloto. Nunca caí. Andar de moto é muito mais legal que de carro. Eu ando devagar pra curtir o passeio, porque se eu acelerar não tem graça.

Olha isso!

— Eu sei que somos colegas e agora fora do trabalho, a gente pode ser amigos. Mas não precisa fazer algo por obrigação, Wolf.

— Não entendi. Eu não faço nada obrigado. Só faço o que gosto na minha vida pessoal.

— Você é muito bagunceiro em casa? 

Já que é pra ser amigo, já vamos saber de tudo.

— Ah... Eu me acho lá. Moro com dois amigos e dividimos tudo em três partes. Só que o Marcos, que trabalhava com a gente, tem a namorada que tá direto lá. O Andrei leva as mulheres com quem saí e os gastos só aumentam. Pior que morar sozinho é muito mais caro.

— Eu nem penso em morar sozinho. Só tenho dezenove anos e estudo, gasto com a mensalidade e o material, livros...

— Achei que tu era cotista.

Pronto, o príncipe virou sapo.

— Acho melhor eu nem te responder. Nem todo negro entra na Universidade por cotas. Vê se aprende a maneirar com essa tua sinceridade a queima a roupa.

Acabou o encontro já peguei ranço na hora. Levantei da mureta onde estava sentado e senti uma coisa gelada e grudenta tipo lagartixa se encostando no meu braço. Era a mão dele que tocava onde eu tinha arregaçado a manga.

— Eu falo sem pensar.

— Verdade. Se coloca no lugar dos outros quando pensar em falar as coisas.

— Mas se você fosse cotista, aí tudo ficaria normal né. A gente ficava normal. Eu nem sabia que isso ofendia uma pessoa. Igual a palavra com V. Quem é v, chama outros v de v, não é verdade? Então porque não posso falar?

— Porque tu não é V.

Ele baixa o olhar constrangido...

— Não tô afim de ir pra casa. Hoje os dois colegas levaram as namoradas e convidaram mais gente pra assar carne. Ei, que ir lá em casa?

— Eu??? Não. Eu não ia me sentir bem com tanta gente estranha

— Fica no meu quarto. — Ah. Ahhh. Que macho é esse? Eu tô me umidificando. — A gente fica jogando Play.

Alguém bate na minha cara. Ele é um moleque. Um garoto.

— Jogando Play?

— Ah, é massa.

Eu não tô ouvindo. Agradeço, mas como passam das nove da noite, aviso que INFELIZMENTE preciso ir embora e que não é bom que minha família o veja porque não quero estragar um dia tão delicioso. Tem bolo que fica melhor sem cereja. Ou seja o dia foi quase perfeito e não falta nadinha.

Sua moto é maior que a do falecido, seu corpo também é mais largo e ocupa mais espaço.

— Pode segurar em mim se ficar com medo.

Eu não quero acordar do sonho. Porque eu devo estar sonhando e mato alguém se descobrir que foi só sonho. Mas não era. Era o Antônio com sua fofura estranha.

O ronco da moto é aquele que dá tesão na gente. Um ronco grosso. Depois é o corpão grande, as costas largas, aqueles cabelinhos ruivos que desaparecem quando coloca o capacete e o fato de não acelerar pra aparecer pra outras pessoas, me derrubaram por terra.

Tô me detestando por não ser mais oferecido. De repente quase esqueço que ele tem uma relação quando ele faz uma curva, dou uma pegada na sua cintura e ele acha que tá indo muito rápido, pois diminui a velocidade. Só faltava pegar na minha mão.

E pra não causar desavenças em casa, já que estamos numa fase de família de comercial de margarina, eu peço pra ele parar um pouco antes. Adivinha o que ele faz?

— Antônio! — ele não me obedece e para exatamente na frente da residência de alvenaria recém pintada cor de camurça. 

Desço, tiro o capacete e entrego a ele, que desliga a moto, retira o próprio capacete e desmonta. Ai, o que será que ele vai fazer? Eu me despeço, ele não responde e me segue. Eu nem tinha entrado ainda e estava prevendo que ia detonar o clima tranquilo das últimas semanas.

Minha mãe e o Rogério assistem alguma coisa, ela adora novelas do SBT. 

Meu colega está quase colado na minha traseira, ih tô lascado. Será que ele pensa que minha casa é uma bagunça feito sua mesa? Que vai dormir aqui? Eu estou tão sem ação que não consigo fazer nada quando ele aparece do meu lado e dá um oi para o casal.

— Opa. Tudo bem? — Antônio se enfia na minha frente e aperta a mão de cada um. — Eu sou colega de trabalho do Vander e a gente foi fazer um lanche. Mas tá aí, entregue. E não aconteceu nada.

Minha mãe tem um ar de riso que eu nunca vi antes e o Rogério o convida pra sentar.

— Já jantaram?

Não respondemos porque só comemos besteira a tarde toda.

— Tem omelete de legumes com queijo na geladeira, só precisa por na frigideira pra fritar. Sobrou arroz e salada, serve o teu colega. — essa criatura provavelmente foi deixada na Terra quando abduziram minha mãe.

— Dona Vânia, tá tranquila?

Ela faz uma expressão de surpresa.

Penso em puxar o Antônio pelo braço, mas ele já tá sentado com o Rogério.

— Pô, eu adoro novela. Lá onde eu moro, os caras só vêm filme e documentário. — ele conversa feito gente grande com meus pais. Misericórdia, eu não ouvi isso, ele gosta de novela. Sério, eu detesto novela e prefiro mil vezes filmes e documentários. 

Bom, deixa eu ir pra cozinha porque num sonho a gente brinca de casinha e ainda sorri. Então fritei os ditos omeletes, hum, minha mãe coloca dentro tudo que encontra, cebolinha, pimentão, queijo, milho, ervilha, tomate, peito de peru, porque não comemos nada que seja derivado de suíno. Esquento o arroz e tá ali, a mesa posta pra dois. Eu e o Wolf.

Isso tá acontecendo mesmo?

Ele realmente tá na minha casa, como amigo, tá sentado comigo, comendo a mesma comida enquanto sorri de canto? Vou me matar com essas covas fundas que ele tem na bochecha. Cara, queria saber se os olhos dele são azuis ou verdes, porque nunca define.

— É verde. Mas quando bate a luz do sol, puxa mais pro azul.

Ainda fico olhando, enquanto ele come. Dá gosto de ver. Eu já falei que amo cozinhar e ele gosta de comer, acho que super combinaria nós dois.

— Sua namorada... você vai ligar depois?

— Não. Os pais dela estão pegando no pé. Vou aceitar o seu conselho e não vou procurar.

— Tadinha. Ela que fica no meio disso, é quem sofre.

— É. — ele responde seco, termina de comer e toma mais suco. — Posso pular a louça?

— Aham... — respondo num estado abobado. Ele levanta, se despede do casal na sala e eu com medo de levar esporro, dou um tchauzinho de longe mesmo. Depois organizo a pia, o fogão e tento passar despercebido pelos dois.

— Rapaz legal. Pelo menos veio se apresentar e não ficou fazendo aquela "pouca vergonha" lá fora.

— Ei, mãe, ele é meu colega. O Antônio trabalha o dia todona mesma sala que eu. Não tem clima e ele tem namorada.

— Ué... é, mas esse pelo menos entrou, se apresentou e não fez nada de vergonhoso.

Internamente, eu reviro os olhos que é pra continuar o clima brando.

— Tá, ele trabalha comigo, é bem gente boa, mas não é nada do que vocês tão pensando. Eu só quero paz em casa.

— Se for com um cara que conversa com a gente e não faz coisas na frente de casa, pra vizinhança ver, dá pra respeitar. 

— É... cada um é como é, dona Vânia. — Rogério bate no joelho dela e sorri. — Diz pro rapaz que pode vir aqui... pra vocês... no final de semana que quiserem... conversar...

Gente, descobri que eu falo um dialeto de guarani paraguaio que ninguém entende. Já falei duas vezes que o boy é só colega de trampo, mas eles compreenderam: namorado. Ou alguma coisa parecida.

Me despeço e sorrindo feito o coringa, vou pro banho e depois camaaaaaa. Ai que dia! Longo e perfeito! Será que aconteceria alguma coisa entre nós? Essa amizade meio colorida tá divertida, tão gostosa que não sei se quero que evolua para um... namoro.

Sei lá... vai que acontece. Deixa eu curtir o meu soninho da beleza e olhar no celular pra ver se ele me mandou uma mensagem. Olha! Tem mesmo.

"Vandeco, obrigado por hoje. Você é o cara. Um dia também vou cozinhar um troço pra você" "Segunda se falemo."  "Ei, conta aquilo lá..."

Eu só faço rir baixinho do jeito dele e envio uma mensagem no mesmo nível de fofura:

"Lobinho, seu afobado. Só conto que adoro quando..."

Meu telefone toca na hora...

— Ei, o que?

— O que o quê?

— Quando o quê?

— ... quando sou mimado. Isso é uma das coisas que mais excita sabia. Depois, vem o mistério, quando o outro deixa a coisa subentendida. Desenrolar um mistério é a coisa mais gostosa que tem.

— Hum. Eu gosto disso.

— Não parece, você é franco demais.

— Adoro mistério. Sou fã do Scoob Doo.

— Aiai, profeta Maomé... — moleque adorável. —  Espera, que barulho é esse? Tem uma rave aí perto?

— É o pessoal que não tem noção. Daqui a pouco a polícia volta e enche o saco. São os caras, a casa tá cheia de gente. Tinha dois casais no meu quarto. Todos pelados.

— Hahaha. Ei, tu deveria arrumar outro canto pra morar sossegado.

— Só se eu achar alguém pra rachar a despesa.

Na hora, eu calo bem a minha matraca porque sacumé, no calor da empolgação só se faz cagada. Mas morro de dó dele.

— Antônio...

— Vander...

— Fala...

— Amanhã, vamo no Moendão? Lá tem rodízio de caldo de cana e pastel frito na hora.

Ele tá precisando sair de dentro de casa e eu tô com moral em casa, respondo um "aham" e apago. (depois de tomar dois copos de suco de maracujá na janta)

Se eu acordar e descobrir que o autor me sacaneou, vou semear discórdia naquela casa, ah vou.

.

Olha, acordei e no mesmo capítulo!

E não foi sonho! Glória!

As mensagens estão aqui no meu celular. Ufa.

"Boa noite, Vandeco. Fiquei falando sozinho um tempão, só parei porque tu começou a roncar super alto e eu saquei que tu tava apagado."

"Tu ronca, heim."

Ai meu Deus... ele não aprende fácil. Sua sinceridadeainda me mata ou no mínimo dá uma diarreia forte.  


*******************

Ih, peguei amor nos personagens, agora já era. Desculpe a sinceridade do senhor sincero. Ele é tipo guri pequeno que fala o que quer. Porque crianção não tem filtro. Mas é gostoso demais. haha. 

Beijos e muito carinho. No findi, posto mais.♥ Obrigado pelo apoio de vocês!!!

>^.^<     aprendi a fazer o gato da Sandrinha_RJ kk

Obrigado ChristianPan por divulgar a história no seu perfil.♥



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