A casa dos "lobos"


Semanas nos separam do dia em que ele fez a prova do concurso e não passou. Foi visível a sua frustração, pois ele estava tão confiante, tão afiado e estudando muito. Eu colaborei o que pude para que ele pudesse se concentrar nos conteúdos, mas não foi daquela vez.

Depois foi a Viviane que teve o Pietro prematuramente, eu não entendo bolhufas de coisas de grávida, mas imagino que um filho assim deve inspirar o triplo de cuidados do que um bebê que nasce no prazo. Rodrigo se afastou de vez e comemoramos internamente. Ele deve ter sentido a necessidade de amadurecer para ser bom pai, creio que foi mais forte que ele.

Acordar nos braços do boy ao som de alguma música que toca na rádio, dá mais que tesão, dá aquela loucura de olhar para cada detalhe do rosto, avaliar seus traços e imaginar como serão seus familiares.

Será que ele se parece com o pai quando jovem? Ou será que tem o nariz de sua mãe? Quem, além do Antônio, é ruivo?

Sofrer por antecipação não é besteira, eu sempre imaginei que não teríamos um mar de rosas quando nos aproximássemos de sua gente. Ainda não sentia-me pronto pra acompanha-lo até sua cidade. Porém, naquela manhã, ele ligou para casa e se abriu com a mulher que era seu coração: dona Marta.

Repentinamente, ficou muito calado quando terminou de conversar com sua mãe e eu não achei certo pressionar, senti um vale entre nós, pois Antônio sempre larga sua sinceridade em todas as direções, bem como seus feitos, novidades e piores cagadas. Ele não me poupa, nem me economiza.

Com medo, eu passei muitos minutos fazendo carinho nos cabelos cor de cobre sempre bagunçados... Ele me devolveu o carinho, passando seu polegar na minha bochecha até eu cochilar uns minutos.

— Que horas são? — tento levantar logo que desperto das minhas fantasias. Eu dormi fora, tô lascado.

— Liguei pra sua mãe e avisei que você tinha dormido e como tava chovendo, ela ficou tranquila... hoje é sábado. — ele está triste, vejo em cada uma das linhas do rosto que tanto adoro.

— Quando a gente acha que tá começando a dar tudo certo... vem a paulada.

— Quer dividir comigo? Sou forte.

— Prefiro te poupar. — ele fala, se afasta e minha garganta dói na hora. Depois de tomar dois copos de água, olha pela única janela da quitinete.

Será que sua mãe também foi contra nós?

Dela ele esperava apoio e talvez lhe tenha dito algo pesado. O pesar no rosto do Antônio chega a me machucar. Eu me sinto num retorno àquele passado no qual não era assumido pelo ex, que me fodia às escondidas. Não queria ser apenas o parceiro de foda novamente. Sei que poderia fazer muito mais pela relação e por isso, deixei o Wolf digerir o que quer que tenha ouvido.

— Vander... — meu coração quase para — minha mãe está com câncer.

— Ai... — eu começo a chorar e isso que não a conheço. Ele me abraça.

— Ela quer te conhecer.

Eu fico mudo, a dor dentro do meu coração é por ele. Por ela, a quem ele tanto ama. Antônio é o mais novo, o mais grudado, o mais neném da mãe e pelo jeito o mais parecido com ela.

— Ela me contou e ainda conseguiu rir. Talvez o estágio não esteja tão avançado. É no estômago. Vamos hoje mesmo, ela vai esperar.

Lavo a cara e peço a ele que me dê uns minutos para eu digerir também. Eu estava apavorado com a ideia de conhecer aquela gente, medo do irmão grosso, medo do pai casca grossa e a mana evangélica.

Antônio estava indo para ver sua família num momento delicado e eu fazia a maior questão de ficar firme ao seu lado. Talvez ele não falasse abertamente aos outros sobre nós, mas eles com certeza o questionariam.

Quem é gay já tomou tanto "tapa na cara" e piadinha, que com o tempo se torna mais duro, ignora mais da metade das merdas que ouve e aprende a se defender. Antônio era um espírito livre que fazia só o que tinha vontade e eu era sua escolha, o parceiro do mesmo sexo por quem ele sentiu afinidade desde aquela época.

Já estávamos perto do final de julho, o sábado estava chuvoso, frio, triste e íamos nos aventurar até sua cidade natal, Brusque, há mais ou menos 40 quilômetros de Blumenau.

Tão diferente do nosso primeiro passeio juntos, foi esse. Mesmo assim ele se esforçou para pararmos, conversou sobre coisas positivas e sobre o que sua mãe sempre fala sobre nossa alma, que diferente de nós evangélicos, ela crê que temos a oportunidade da reencarnação. Que reencarnar significa uma chance de cumprir mais uma parte de nossa jornada que nos leva cada vez mais próximos do Criador. O que explica o porque de haver pessoas tão terríveis com almas atormentadas e cruas na contrapartida de haver pessoas que irradiam luz, amor e alegria.

— Ela com certeza é uma alma evoluída. — ele se gaba de dona Marta. — Não chora Vander. Se você tivesse ouvido a maneira tranquila dela falar da doença...

Ele mesmo luta com a dor. Quando me olha sorrindo fazendo aquelas covas nas bochechas, não resisto e pergunto:

— Ela tem covinhas?

— Só de um lado da cara. Minha mãe quando jovem era uma miss de tão bonita. Tinha o cabelo preto, agora é grisalho e ela não pinta.

— E seu pai é ruivo?

— É loiro, ele é descendente de alemão. Minha mãe é da Silva, bem brasileira e por isso nem toda a família dele fazia muito gosto de ver os dois juntos. Mesmo assim eles casaram e ele era bem louco pelo que ela conta, ele cagava para o mundo.

— Você é assim.

— Ih, nem metade do que ele era. Acredita que meu primo Muriel que é via... gay, foi morar um tempo lá em casa? Meu pai defendeu ele na época que rolou uns barracos de família entre os Wolf. Mas acho que vai tomar um choque comigo.

— Quer falar disso com ele?

— Hoje eu sou o jovem Avelino Wolf e você é dona Marta da Silva e vou na sua frente, gosto de você pra caramba e ninguém vai me deixar pra baixo. Minha mãe disse que quer te conhecer e por isso que estamos indo pra lá. — Seco mais uma lágrima ao ouvi-lo — Chora não, Vander.

— Acho melhor eu ir na frente. Você sempre é meu escudo.

— Sempre. — Ele fala antes de continuar a comer.

Imaginei que a vida de sua família era simples, como ele já comentou comigo, que todos moravam numa casa simples e pequena, mas encontro outro padrão. Sendo detalhista, já reparei que a casa tinha três andares, muita porta de vidro, muitos telhados com queda pra cá, pra lá e acolá, um jardim que só na Casa Claudia pra achar comparação e dois carros (que pra mim só em sonho) na frente do caminho de paver que saía da garagem aberta.

Eu não sou acostumado com luxo e ele não me falou sobre esse aspecto de sua vida, então fiquei todo sem graça de entrar naquele universo.

— Vem. — sorrindo ele me puxa pela mão, entramos onde presumi ser a entrada da sala, mas era a cozinha e lá estavam os dois, o pai e a mãe, sem nada pra amaciar o encontro. Foi um novo choque.

A mulher amassa o filho com tanta vontade que fico com ciúmes. Depois sou eu quem ganha além do abraço, um beijo dela, que como eu imaginava, tem o nariz igualzinho ao do filho. O pai do Antônio é um velho bem conservado que parece ser mais novo que sua esposa, mas não tem vestígios de traços bonitos como os ela. O homem não me dá conversa. Pra compensar, dona Marta me bajula o dia todo.

No horário do almoço, eu estranho o fato de ninguém estar na cozinha, pois na minha casa e na maioria das outras, é assim. Casa de rico se come na sala, comida que alguém trouxe, pois ela não quis cozinhar para nos dar mais atenção. E o sogro?

— Saiu. Eu falei pra ele de vocês. Daí o Avelino fez um drama, falou um monte de coisa feia. — outra pessoa direta na minha vida, socorro, Jesus, ela não enrola nenhum pouco. — Eu fiz uma tomografia, descobri que meu tumor tomou conta do estômago, pâncreas, fígado... e não adianta fazer quimioterapia. É só ir pro "buraco da morte" e esperar, vocês já viram isso no desenho Madagascar?

— Hahaha. — ela nos pega de surpresa com a referência.

— Vida não é o que acontece aqui. Isso é passagem, Antônio e Vander. Isso aqui dentro é o que levamos pra eternidade. — ela aponta para seu peito. — Vem que eu vou te mostrar a casa, Vander.

Estou tão acostumado a lavar a louça, que me sinto todo errado quando levanto da mesa pra acompanhar a mulher pela mansão.

— Achei que seu marido era o guardinha da agência bancária... foi o Antônio que falou.

— Ah esse cabeção — ela brinca de uma maneira que não condiz com a idade — Temos uma empresa vigilância patrimonial. Mas não fala em dinheiro que me dá nojo. Tem gente na família que quanto mais tem, mais besta fica. Meu filho mais velho, eu tenho vontade e ainda vou pegar ele pelos cabelos um dia desses.

Como Antônio disse: ela é o maior astral mesmo. Com disposição na medida do que lhe é possível, ela mostra a casa toda (um luxo que o Antônio omitiu)... me fala que costurou pra fora por muitos anos, que adora flores e bichos, ama as pessoas, que somos essências e por isso que seu filho mais novo se apaixonou por um rapaz, porque nossas almas se atraíram.

— Dona Marta, seu marido com certeza ficou muito decepcionado com o Antônio.

— Ficou.

Meu Deus, o filho tem pra quem puxar.

— Eu imaginei. Os pais nunca aceitam bem e nós gays precisamos nos justificar como se fossemos um erro.

— Então, vocês gays precisam pôr na cabeça que cada ser humano é mais do que esse pedaço de carne designado como macho ou fêmea. Somos essência. Assim como eu que não sou gay, como o pai do Antônio, o presidente Obama... é tudo a mesma coisa. Somos lindas fontes de luz, receptáculos de sentimentos e... tem gente que é bem bosta também.

— Ai... — só rindo.

— Muita gente acha que sou meio louca. Minha filha disse que só quem aceitar Jesus como salvador é quem vai pro céu. Eu digo pra ela que o correto é absorver o que há de bom na bíblia, que não é muita coisa e que Jesus é um exemplo de ser iluminado.

Falo pra ela sobre minha educação dentro de uma religião que prega sobre o evangelho e que entendo sua filha.

—Vão dormir aqui né? Amanhã eu mesma cozinho pra vocês.

— E o pai?

— Deve ter ido pra casa do Marcelo. Daqui a pouco, seu irmão aparece aqui com pedras nas mãos.

Eu me retraio, mas o Antônio fica vermelho. Sua cara é de furioso como nunca vi antes. Não ouço nenhuma ameaça e nenhuma precipitação da parte dele. Antes do anoitecer, chuvoso e pesado, eles aparecem. Preciso falar que não ganhei um aperto de mão do cara?

O tal do Marcelo certamente passava dos quarenta, charmoso demais, fazia-me lembrar do ator George Clooney com uns quinze anos a menos. Eu fui ignorado completamente, me encolhi na cadeira onde tava sentado e Antônio se levantou quando seu irmão parou na sua frente.

Não fosse o clima tenso como na Faixa de Gaza, eu estaria apreciando o charme dos dois lobos.

— Veio ver a mãe? — Marcelo nem cumprimenta o irmão — Tu não se cansa de trazer novidade pra dentro de casa? Outra vez foi a tatuada que roubou...

Antônio num gesto que me assusta, espalma as mãos no peito do irmão e o empurra pra traz.

— Tu nunca mais chama a Eliziane de ladra. Foi teu filho que levou o troço e depois de uns anos tu confessou que encontrou aquela bomba de chimarrão de prata na gaveta da sua cozinha. Não tenho medo de você. Não te devo satisfação nunca. Essa é a casa do pai e da mãe e se eu quisesse te ver, ia lá na sua.

— Tu baixa a bola comigo.

— Nunca. E se eu souber que tratou mal a mãe, eu vou no fórum ou na casa do caralho e te dou uma surra.

Cadê meu lobinho zen? Cadê meu aquariano de boas, como o sapo na lagoa? Onde ele foi?

Que bafo! Isso foi tenso?

O irmão dele fez o que? Se acalmou e saiu porta fora, mas não foi embora. Eu fiquei sentindo culpa por estar ali até que o Antônio me olha e fala:

— Vamos ficar no meu quarto e não absorve nada do que ouviu aqui. Eu preferia te poupar disso. Eu tento viver em uma realidade paralela às vezes pra não lembrar do assunto família Wolf. — o pai dele senta perto da sala e conversa alguma coisa com o Marcelo que tá na porta — A mãe tem um câncer, tá espalhando no corpo, mas o assunto mais relevante é meu namorado. Só nessa casa mesmo.

— Eu tô completamente sem graça, não tô a vontade. — eu só queria sumir.

— A casa é minha também, — sua mãe defende — Se forem embora, eu vou ficar muito magoada. E se o Marcelo alterar a voz de novo aqui dentro, eu expulso ele. E teu pai que fique bem calado.

— Eu tô dentro da minha casa ─ o velho grita e levanta — o Antônio sabe o que aprontou.

— Eu quero ir embora — não nasci pra ficar no meio de uma confusão dessas. Estava quase chorando e me sentindo péssimo naquele ambiente.

— Ninguém vai sair. Marcelo, faz o favor de vir aqui agora.

Mas o Marcelo desobedece e vai embora. E é só acontecer isso que seu Avelino se acalma. Para eu ficar mais calmo também, aceito ficar no quarto do Wolf, que tenta voltar ao modo doce, mas está muito transtornado pra isso.

— Desculpa — ele pede sorrindo — sua família é bacana comigo e aqui só minha mãe e talvez a Cida que são mais tranquilas. Lembra que eu te falei que família, somos nós que escolhemos?

— Sim... — luto pra não chorar.

— Quando ela fizer a passagem... — ele baixa o olhar — não vou precisar vir mais pra essa cidade.

— Não diz isso... te contei a história da minha mãe com a Alessandra, acredito muito na reconciliação.

— Pra isso, elas precisaram de tempo. Aqui nós precisamos de uma eternidade. Deixa eu te abraçar pra sentir coisas boas. — ele me aperta quando deitamos na sua cama grande. Naquela casa, em qualquer centímetro quadrado, não me sinto nada a vontade e não quero dormir por ali. Sei que sua mãe vai ficar triste, seu pai e seu irmão vão se sentir vitoriosos, mas eu só sinto um gosto amargo na boca.

Nos braços dele, sinto proteção, carinho e calor. Apago por uns bons minutos e acordamos com dona Marta sacudindo o filho.

— Vem jantar. O pai tá calmo, eu falei um monte de coisas pra ele.

Não consigo engolir a comida, logo camarão que adoro e só comi daqueles miudinhos até então. Ali tem cada camarão imenso, fora os acompanhamentos. Eu estava com muita fome, mas quando olhava a mão do pai do Antônio ou ouvia a voz grossa do velho, a comida parava na garganta. Só que ele estava manso, mas tão manso que me alcançou uma salada de frutas que acompanhava a janta.

— Aqui é assim, dona Marta da Silva Wolf é quem manda. — Antônio larga a frase e eu sinto vontade de tacar um garfo nas suas costas. O clima tava mais ameno e ele larga as pérolas.

— Os Wolf são tudo uns pau mandados — o pai dele comenta e ameaça rir com o filho, enquanto dona Marta o olha de canto. Eu acalmo um pouco o meu coração. Lembro que o Antônio disse que seu pai e irmão eram grosseiros com ela e que a defendia quando vinha para a sua cidade, mas ela demonstrou que não precisava disso não.

— O mais cordeiro é o Marcelo, canta de galo quando a Jaqueline não tá perto. Só veio gritar aqui dentro porque ela tá operada e de cama. — Eu sequer tenho coragem de perguntar o que ela teve. — Ela fez uma lipoescultura e está se recuperando. Se tivesse vindo junto, tinha pego o Marcelo pelas orelhas.

Eu queria muito dar uma risada, mas ainda considerava o clima tenso. Comemos em silêncio então, até que dona Marta completa:

— Só o Antônio que tem um companheiro... assim, não é mandado feito o pai e o irmão.

Antônio tosse e diz que foi a pimenta na comida. Estranho que nem tinha, então ela compreendeu que ele não era a exceção.

O fim de semana mais longo que passei, pois só fomos embora quando escureceu no domingo. Pelo menos na despedida, seu Avelino me estendeu a mão e apertou a minha. Não falou sequer uma palavra, nem mesmo ao seu filho. Dona Marta que aparentemente estava bem, foi exatamente o oposto, maravilhosa.

Então, sinto em dar essa notícia, mas naquela semana ela passou muito mal e foi internada, só piorando com os passar dos dias...

Mas...

Não avançaremos tanto assim no tempo... Apenas poucos meses até que eu completasse meus 20, meus verdes vinte anos, em setembro de 2014. Ano tão rico em memórias para eu.

Meu presente do Wolf foi um dia inteiro no Beto Carrero, andando na montanha russa, castelo do terror, vendo os shows de carros e tirando fotos, várias e várias fotos, bem casal, umas para o face e outras para deixar no notebook e olhar quando bate a saudade.

Aquela altura do campeonato tinham mais pessoas que suspeitavam de nós no trabalho, mas ninguém abordava diretamente.

— A Giovana perguntou se eu e você somos namorados? — ele me conta.

— E?

— Eu disse que ela era bem esperta.

Tava respondido afinal. E se quisesse espalhar, que fosse o que Deus quisesse.



**********


Oi pessoal, saudade♥ Segue mais um capítulo, cada vez mais pertinho dos finalmente...

Beijão♥♥♥

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top