Capítulo Único
Ao contrário dos outros deuses, que passam a maior parte de seus dias no Monte Olimpo, os filhos de Afrodite preferem despender seu tempo sobrevoando o reino dos mortais. Eles sentem enorme prazer em observar as pequenas interações humanas e realizam seu dever com grande satisfação.
Num primeiro olhar, sua tarefa pode parecer simples: observar, apontar e atirar. Mas levando em conta a natureza humana e tudo que pode acontecer após a flecha acertar seu alvo, a complexidade escala de forma inimaginável. Por esta razão, o ofício foi concedido a um deus. Um com uma característica em particular: ele é um e muitos ao mesmo tempo. No passado foi chamado de Eros, mas ficou conhecido por outro nome após a invasão dos romanos: Cupido, o aríete do amor.
Durante sua contemplação da humanidade, um Cupido precisar manter seus olhos e ouvidos sempre muito atentos. Eles têm que prestar atenção aos sinais quase imperceptíveis, entender as sutilezas de cada situação e avaliar o contexto de forma clara e sensível. Pois se não o fizerem, a chama da paixão acesa queimará da forma incorreta e trará apenas dor e sofrimento.
Ao contrário do que muitos pensam, a observação é a parte mais importante. O que vem depois é mera burocracia. O nome da pessoa amada é escrito na ponta da flecha. Uma flecha para cada coração. A mira deve ser perfeita. Bang! Os pombinhos percebem que estão completamente apaixonados um pelo outro.
Alguns erros acontecem, é verdade, mas nunca são propositais. Não há maldade nos cupidos — esse é um atributo reservado aos deuses maiores. Há sim cupidos desajeitados, que erram a pontaria e causam lágrimas por amores não correspondidos. E há também os inocentes, que não compreendem com clareza a essência do homem e envolvem três ou mais pessoas num complexo círculo amoroso. Na cabeça do deus, quanto mais amor melhor. Mas na prática, essas situações quase sempre acabam em caos.
Mas a história deste Cupido em especial, não foi um caso de pontaria desastrada, muito menos de inocência. Para ser justo, ele era muito bom de mira e tinha ampla compreensão dos relacionamentos humanos. Seu infortúnio foi ocasionado apenas pela sorte — ou a falta dela.
Tudo começou quando Hermes, mensageiro dos deuses, o abordou com uma carta da própria deusa do amor. O Cupido ficou muito feliz ao descobrir que era um pedido especial da mãe. Mais feliz ainda por ter sido ele o escolhido para cumpri-lo. Na ocasião ele ainda não sabia, mas acabara de ser envolvido em um dos cruéis jogos dos deuses.
O nome dela era Sarah e ela deveria se apaixonar até o fim da próxima lua cheia. No início, o Cupido achou que seria uma tarefa fácil. A mulher estava muito acima dos padrões de beleza dos humanos daquela época. Tinha o cabelo vermelho como o fogo e os olhos verde esmeralda. O corpo sinuoso emanava beleza e sensualidade na medida exata. Além disso, ela parecia ser uma boa pessoa. Ligava com frequência para os pais. Gostava de ler e de filmes antigos. Fazia doações para ajudar animais em extinção. E tinha um gato ranzinza chamado Sr. Biruta. Mas após alguns dias de observação, o deus percebeu que atender ao pedido da mãe seria mais difícil do que ele tinha previsto.
Sarah havia se mudado para a cidade fazia pouco tempo. Seus amigos e familiares estavam em sua terra natal, muito longe dali. Ela passava a maior parte do dia no notebook trabalhando e raramente saia de casa. As compras eram feitas pelo celular e entregues na portaria. Até os exercícios eram realizados no chão da sala — sua treinadora morava do outro lado do país e dava instruções pela tela do tablet. Como se não bastasse, ela preferia passar os finais de semana com seus hobbies individuais a sair para conhecer gente nova.
A situação parecia incomum, mas bastaram alguns dias para que o Cupido entendesse a causa do comportamento. A mulher havia deixado alguém muito importante para trás durante a mudança. Ela queria ir para a cidade e ele queria cuidar dos negócios da família. Ela estava disposta a tentar o relacionamento a distância, mas ele não. O fim do namoro de quase uma década foi no mínimo traumático. Dois corações partidos e muitas mágoas veladas. Sarah estava com as portas fechadas para o mundo e a chave para abri-la não seria fácil de encontrar.
Os filhos de Afrodite têm muita liberdade para agir, mas devem respeitar os limites estabelecidos: observar, apontar e atirar. Eles podem interferir antes, mas nunca após a flecha ser disparada. Isso é nítido ao vermos a paixão de duas pessoas morrer após alguns anos de relacionamento. Depois que os corações são alvejados, o destino do casal fica em suas próprias mãos. Para garantir que seja assim, a deusa do amor criou duas leis absolutas que devem ser respeitadas a todo custo e uma delas é nunca atirar duas vezes.
Se a paixão estiver se extinguindo, um Cupido jamais poderá reacendê-la com uma segunda flecha. Se isso ocorrer, o efeito será o contrário e a pessoa alvejada irá odiar a outra com todas as forças. O Cupido, por sua vez, receberá uma das piores punições dadas a um deus, algo que se assemelha à morte: sua essência será dissolvida e retornará ao todo que é um.
É claro que a paixão pode renascer entre duas pessoas, mas isso depende totalmente delas. E como este é um feito raro, os Cupidos preferem lidar com essas situações encontrando um novo amor para o coração desolado. Sarah deveria se apaixonar por alguém novo. Mas para isso, ela precisava conhecer alguém novo. Se isso não ocorresse, o Cupido estaria de mãos atadas. Com o passar dos dias, ele começou a ficar preocupado. Quando o prazo foi se aproximando do fim, a preocupação se tronou desespero. E o desespero deu ao Cupido uma ideia ousada.
Na manhã seguinte o prédio de Sarah ganhou um novo inquilino. Seu nome era Oliver e não por acaso a energia de seu apartamento ainda não estava funcionando, seu telefone estava sem bateria e ele precisava fazer uma ligação.
Toc toc.
— Desculpe incomodar, eu sei que parece loucura, mas... será que posso usar sua tomada?
— O quê? — Sarah levantara da cama a pouco tempo e ainda não estava totalmente desperta.
— Meu nome é Oliver e eu sou o novo morador do 34. Preciso ligar para a companhia de energia, mas a bateria do meu celular morreu.
Sarah coçou os olhos com a manga do moletom e olhou com mais atenção para homem à sua porta. Para a sorte do Cupido, os olhos de Oliver eram como lagos num dia de verão cujas cores faziam inveja ao próprio céu. Ao ver aqueles olhos, algo dentro de Sarah disse para ela mergulhar. Alguns Cupidos gostam de aproveitar esta primeira troca de olhares para atirar as duas flechas de uma vez — a isso os mortais chamam de "amor à primeira vista". Mas o Cupido desta história não era apressado. Além do mais, seria muito arriscado uma abordagem dessas com um coração recém-partido.
— Ahh... pode entrar — ela disse. — Tem uma tomada ali.
Mais tarde naquele dia Sarah pensaria em como fora descuidada ao deixar um completo estranho entrar em sua casa. Ela tinha que se lembrar de que estava na cidade grande e as coisas não eram como em sua terra natal. Mas naquele momento, fosse pelo fato de ainda estar meio dormindo ou pela beleza estonteante do visitante, ela simplesmente o deixou entrar.
Oliver se sentou no chão ao lado da tomada e ligou o celular ao carregador. Enquanto aguardava o aparelho reiniciar, o gato de Sarah se aproximou e pulou em cima dele.
— Cuidado, ele não gosta muito de... — Sarah ficou sem palavras ao ver o Sr. Biruta se aconchegando no colo do homem.
— Que lindo que você é — disse Oliver acariciando o animal. — Como ele se chama?
— Sr. Biruta — Sarah respondeu, ainda perplexa pelo comportamento do bicho, que rosnava para qualquer ser humano que não fosse ela. — Vo... você quer café?
Oliver sorriu e fez que sim com a cabeça.
A ligação para a companhia de energia durou muito mais tempo que o normal. Cada atendente desviava a chamada para outro atendente e coisa toda parecia andar em círculos. O único consolo de Oliver nas duas horas que se passaram foi poder conversar com Sarah. Os novos vizinhos aproveitaram para se conhecer melhor. Descobriram que ambos vinham de longe e não tinham ninguém conhecido na cidade. Sarah falou um pouco sobre o bairro, mas confessou que não era muito de sair. Falaram sobre o que cada um fazia no trabalho, sobre livros, música e até sobre suas estações do ano preferidas — que foi um assunto estranho para uma primeira conversa. Quando a situação de Oliver foi finalmente resolvida, ele agradeceu a Sarah e voltou a seu apartamento. Eles passaram o resto do dia ligeiramente mais alegres, mas não sabiam dizer o porquê.
No dia seguinte o gato de Sarah sumiu. Ele costumava se esconder atrás do sofá, mas não era do tipo que gostava de sair para a rua. A mulher ficou preocupada e ligou para a portaria perguntando sobre o animal. O porteiro afirmou que não o tinha visto, mas disse que conversaria com os outros moradores e avisaria se soubesse de qualquer novidade. Alguns minutos depois, a campainha de seu apartamento tocou. Era Oliver, que segurava Sr. Biruta nos braços.
— Eu juro que não sei como ele foi para lá — ele disse.
— Seu danadinho, — Sarah disse em tom de falsa repreensão enquanto apontava o dedo para o gato. — Você quase me matou de preocupação.
Oliver entregou o animal à mulher.
— Obrigado — ela disse um pouco sem graça. — Ele nunca fez isso antes.
— Não tem problemas. — Ele deu um meio sorriso. — Por acaso... você já fez almoço?
Sarah foi surpreendida pela pergunta e abriu a boca, mas as palavras não saíram.
— É que você disse ontem que não conhecia o bairro direito, então pensei que a gente podia conhecê-lo juntos. — Oliver encolheu os ombros e franziu as sobrancelhas de forma insegura. — Eu vi um restaurante legal no quarteirão de trás. Acho que o nome é...
— Di Andrade.
— Então você o conhece?
— Na verdade não — Sarah respondeu. — Mas já passei em frente. Parece um lugar legal.
Oliver abriu os braços como se esperasse uma resposta para o convite. Sarah respirou fundo. No dia anterior ela deixara o desconhecido entrar em seu apartamento e agora ele a chamara para almoçar. Aquele tipo de coisa não acontecia no lugar de onde ela viera. Mas ela não estava mais lá, então...
— Ok — ela disse. — Mas eu costumo almoço tarde.
— Combinado. — Oliver sorriu.
E naquele dia eles almoçaram juntos e se conheceram um pouco melhor. O Cupido sabia que havia passado um pouco dos limites levando o Sr. Biruta ao apartamento de Oliver. Mas ele justificou as intervenções para si mesmo dizendo que eram necessárias para cumprir o pedido de Afrodite. Não fosse por ele, afinal, o próprio Oliver não teria ido morar naquele prédio.
O terceiro dia foi planejado para ser uma pequena pausa. Era uma tática conhecida dos Cupidos, após um ou dois encontros deixar o futuro casal sem se falar. Era o tempo necessário para que eles percebessem que estavam sentindo falta um do outro, mesmo que mal se conhecessem. Era apenas um dia, mas para os dois, parecia uma semana. A estratégia, no entanto, estava cada vez mais difícil de ser usada já que era comum que as pessoas trocassem os números de telefone antes mesmo de falarem seus nomes. Mas o Cupido em questão era esperto e deu seu jeito para que os dois não fizessem isso.
No quarto dia Sarah desceu à portaria para pegar as coisas que comprara pela internet. Ao chegar no local descobriu que o mercado havia mandado uma caixa a mais. Uma caixa enorme. Era quase o dobro das suas compras da semana.
— O motoqueiro deixou aí e foi embora — disse o porteiro, — falou que já tava pago.
E já estava mesmo, mas o mercado claramente havia errado na quantidade. Sarah ligou para eles avisando, mas recebeu a resposta de que não voltariam para pegar. Estavam sem motoqueiros disponíveis e ela podia ficar com os itens sobressalentes. Ela olhou por um momento para os volumes no chão e pensou como faria para subir com tanta coisa, teria que fazer duas viagens.
— Não sabia que o Sr. Biruta comia tanto. — Não por coincidência, Oliver estava entrando no prédio.
O comentário pegou a mulher de surpresa. Ela não conseguiu esconder o sorriso ao ver o vizinho.
— Ele faz Crossfit, por isso não aparenta comer tanto.
Os dois riram.
— Dá aqui, deixa que eu te ajudo. — Oliver pegou a caixa mais pesada antes mesmo que Sarah pudesse protestar.
Eles subiram juntos no elevador e aproveitaram para finalmente trocar os números de celular. Essa pequena intervenção fora um pouco custosa ao Cupido, mas com certeza valeria a pena. Se o plano desse certo, a partir daquele momento eles passariam boa parte de seus dias conversando.
Os tempos modernos trouxeram muitas adversidades ao amor, mas a troca de mensagens via internet não foi uma delas. O diálogo a distância tem um grande apelo ao flerte. É algo que vem desde os tempos antigos onde cartas de amor eram trocadas. Um prazer único é gerado pelo desejo impossível de estar ao lado da outra pessoa e os Cupidos sabem disso.
Um "Bom dia!" enviado pela manhã. Uma brincadeira feita na hora do almoço. Uma foto do lanche da tarde. E a incrível sensação de se deitar para dormir e ficar trocando mensagens com a outra pessoa até se dar conta de que são 3 da manhã e você tem que acordar dali a poucas horas. Sim, isso foi um grande avanço para o amor trazido pela modernidade e foi exatamente assim que aconteceu com Sarah e Oliver nos dias que se seguiram.
"Sabe toda aquela comida extra que o mercado mandou?" Sarah enviou a mensagem para Oliver depois de alguns dias e alguma coragem. "O que acha de fazermos um jantar aqui em casa?" A resposta veio segundos depois: "Eu topo, mas achei que era tudo do Sr. Biruta." Um sorriso se desenhou no rosto da mulher ao ler a resposta. "Acho que ele não vai se importar se pegarmos um pouco =)". E o jantar estava marcado.
A noite foi repleta de risadas e olhares e acabou bem tarde apenas porque um dos vizinhos interfonou reclamando do barulho. Oliver voltou para seu apartamento e os dois sonharam um com o outro durante o sono. O Cupido sabia que estava quase lá. Ele poderia até tentar acertar a flecha na manhã seguinte, afinal só tinha mais dois dias restantes. Mas queria ter certeza. Não arriscaria desapontar a mãe. Então ele planejou seu movimento final. Uma intervenção muito maior do que era de costume, mas que seria tão derradeira que não deixaria brechas para falha.
Na tarde seguinte, pouco antes do pôr do sol, o síndico informou a Sarah que seria necessário fazer uma reforma de emergência no encanamento do prédio. O apartamento da mulher ficaria interditado por 12 horas. Ela esperneou e argumentou de todas as formas possíveis, mas no final foi tudo em vão, a obra teria que ser feita naquela madrugada. Sem ninguém conhecido na cidade Sarah procurou por um hotel na internet, mas magicamente todos os hotéis num raio de vinte quilômetros estavam sem vagas. Ela demorou a acreditar no que estava prestes a fazer.
Toc toc.
— Desculpe incomodar, eu sei que parece loucura, mas... será que posso usar sua tomada?
Oliver sorriu ao ver a imagem da mulher a sua porta com uma mochila nas costas e um gato nos braços. Sarah explicou o ocorrido e com as bochechas em brasas de vergonha perguntou se poderia dormir na sala vizinho naquela noite. Ele concordou, é claro.
— Só não ligue para a bagunça — ele disse quando ela entrou.
O apartamento de Oliver era limpo, mas tinha a desorganização típica de quem mora sozinho. Sarah sentiu certo prazer por estar ali pela primeira vez. Eles pediram pizza e abriram uma garrafa de vinho que estava guardada no armário do banheiro.
— Muito bonita, sua adega — ela brincou.
— Eu chamo de estilo pós-pós-moderno — ele respondeu sorrindo. — Muito à frente do nosso tempo.
Durante o jantar, O Sr. Biruta pulou na taça de Oliver derrubando vinho sobre sua camisa. Foi uma ação direta do Cupido, é claro. Algo que um escritor moderno chamaria de clichê. Mas a tática já existia mesmo antes das próprias palavras serem inventadas. Algo que funcionava mil anos atrás e com certeza funcionaria ali.
— Sr. Biruta! — Sarah repreendeu o animal. — Me desculpe, Oliver.
O homem havia se levantado com o susto e a mulher o seguiu tentando ajudá-lo. Ela pegou um guardanapo e passou pela camisa numa tentativa inútil de secar o líquido derramado.
— Droga, isso mancha — ela disse. — É melhor já lavar agora.
Oliver concordou e tirou a camisa num movimento rápido que pegou a mulher de surpresa. Ela observou o corpo do vizinho e as bochechas começaram a esquentar. Sarah pegou a camisa das mãos de Oliver e se virou para esfregá-la na pia. Esperava que ele não tivesse notado seu rubor.
— Tenho certeza de que foi vingança por comermos a comida dele — o homem disse em tom de brincadeira.
Sara concordou ainda envergonhada e pouco depois sugeriu que fossem dormir alegando que ainda estava cansada da noite anterior. Oliver ofereceu sua cama para a mulher — ele ficaria no sofá. Ela recusou num primeiro momento, mas acabou aceitando o gesto depois do homem insistir. Os dois ficaram um bom tempo imersos nos pensamentos antes de pegar no sono.
Na manhã seguinte o síndico ligou avisando que o apartamento de Sarah estava liberado. Ela preferiu não tomar café com Oliver, mentiu dizendo que tinha uma reunião logo cedo. A verdade é que estava confusa com os próprios sentimentos e queria ficar sozinha para pensar. O Cupido soube que aquele era o momento. Enquanto Sarah preparava os ovos do café da manhã em sua cozinha, o deus retirou uma flecha de sua aljava, escreveu o nome na ponta, mirou no coração da mulher e disparou.
Não há hora certa para o ato. Pode ser num momento de reflexão, durante uma conversa ou enquanto a pessoa realiza uma tarefa mundana do dia a dia. Mas observar o instante exato em que o coração é alvejado é um dos maiores prazeres de um Cupido. A mudança no olhar, a falta de ar, o choque ao admitir para si mesma que está apaixonada e o sorriso que se segue no rosto. Tudo isso gera um pequeno êxtase celestial ao deus. Mesmo Sarah estando sozinha e sem dizer uma palavra, o Cupido teve certeza de que sua missão fora concluída com sucesso.
Tudo ocorreu em pouco tempo, algo digno de uma comédia romântica. Mas como dito antes, este Cupido em especial tinha amplo conhecimento dos relacionamentos humanos, e desempenhou seu papel com maestria. Ele chamou Hermes e enviou uma mensagem para a mãe. Segundos depois, Afrodite apareceu diante do Cupido.
— Mã... mãe?
— Meu filho — a deusa respondeu estendendo sua mão direita.
O Cupido se ajoelhou e beijou a mão da deusa do amor num gesto de respeito.
— Você recebeu minha mensagem? — ele perguntou.
Afrodite assentiu com a cabeça, mas sua expressão não demonstrava felicidade.
— Um mês atrás Tânatos e eu conversávamos em uma das festas de Dionísio — a deusa começou a falar sem contextualizar o filho. — Discutíamos sobre o amor e coisas do gênero. Eu defendia que qualquer um poderia amar e ser amado. Ele discordava, então fizemos uma aposta: ele escolheria um mortal e eu teria que fazê-lo se apaixonar dentro de um mês.
Afrodite fez uma pequena pausa e desviou o olhar para o horizonte. O Cupido então começou a compreender a razão do pedido da mãe, mas ficou apreensivo, afinal, nada de bom poderia vir do deus da morte.
— Imagino que você tenha entendido que Sarah foi a escolhida — ela continuou. — E deve saber o motivo.
— O coração partido — disse o Cupido em voz baixa.
— Exato. Uma tarefa quase impossível em tão pouco tempo e por isso eu escolhi você. — A deusa voltou o olhar ao filho e respirou profundamente antes de continuar. — Como qualquer aposta entre deuses, haveria consequências, é claro. Se eu ganhasse, ele me daria algo que não vem ao caso agora. Mas se perdesse, Tânatos levaria a alma do mortal ao submundo no fim do prazo estabelecido.
As pernas do Cupido tremeram.
— Ganhamos por pouco, então. Sarah se apaixonou no último dia — ele disse com a voz vacilante. — Por isso veio aqui, para me gratular?
Afrodite assumiu um semblante de fúria digna dos deuses maiores.
— Não me faça de tola, criança! Eu sou o amor. — A voz de Afrodite retumbou no deus alado, que ainda mantinha os joelhos no chão. — Você quebrou uma regra e precisa pagar por isso.
Agora todo o corpo do Cupido tremia, inclusive seu coração.
— Como favor por ter atendido meu pedido, te darei até amanhã para fazer o que achar melhor. — Afrodite disse em tom mais calmo. O Cupido não encontrou palavras e apenas concordou com a cabeça. — Aja com sabedoria.
Afrodite desapareceu, deixando o deus sozinho com seus pensamentos.
Mais tarde naquele dia Sarah convidou Oliver novamente para jantar em sua casa. Ela havia decidido abrir o jogo e sabia que seu sentimento seria correspondido. Oliver aceitou o convite. Eles jantaram, conversaram, deram o primeiro beijo e se amaram pela primeira vez. Adormeceram enquanto trocavam carícias deitados na cama.
O Cupido se sentou na poltrona do quarto de Sarah e observou a pele da mulher sendo banhada pela luz da lua — a última lua cheia do ciclo. Admirou a forma elegante como seu corpo se mesclava ao lençol enquanto pensava em tudo que havia feito. Tentava lembrar o momento exato de seu erro, mas não encontrou a resposta. O problema não foram as intervenções, nem mesmo o fato de ter assumido a forma humana. Se passar por Oliver e fazer Sarah se apaixonar por ele poderia ter sido um golpe sujo, mas não chegava perto dos artifícios usados pelos outros deuses para ganhar suas apostas. O erro pelo qual seria punido foi outro: o de se apaixonar por uma mortal e assim quebrar a segunda lei absoluta criada por Afrodite.
As punições, no entanto, eram diferentes. Enquanto a quebra da primeira lei levava ao fim a essência do Cupido, a quebra desta era punida com a morte da pessoa amada. Ao Cupido infrator caberia viver com a memória da paixão perdida e o coração despedaçado.
No tempo que observou Sarah, o Cupido passou a admirá-la. Ao assumir a forma de Oliver e conviver com mulher, passou a amá-la. Este foi seu crime e por isso seria obrigado a tomar uma dolorosa decisão. Ele esperou que o dia terminasse para garantir que a aposta feita pela mãe fosse ganha. Desta maneira Tânatos não levaria a alma de Sarah. Tirou uma flecha de sua aljava e escreveu novamente o próprio nome na ponta. Apontou para o coração de Sara, olhou uma última vez para a mulher amada e atirou.
Sarah viveria. Na manhã seguinte ela acordaria odiando Oliver com todas as suas foças. Mas já não importaria mais, já que ao atirar a segunda flecha a essência do Cupido seria dissolvida e retornaria ao todo que é um. "Adeus, Sarah," foi o último pensamento do deus.
***
3914 Palavras
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