ㅡ Sou mestrada em psicologia. Atendo em um centro filantrópico na capital, mas tenho minha clínica particular. O meu diferencial, como puderam notar, é que também atendo à domicilio. No começo acho mais confortável assim, já que estar em um ambiente familiar facilita na hora da anamnese.

ㅡ "Ana" quem? ㅡ interrompo, entortando a cabeça.

ㅡ Anamnese. ㅡ repite com um sorriso acolhedor. ㅡ Quer dizer entrevista.

ㅡ Ah...

ㅡ Não interrompa com perguntas tolas, Taehyung.ㅡ repreende o papai. ㅡ Por favor, prossiga, Doutora Lívia.

ㅡ Não, tudo bem. Peço perdão por usar palavras difíceis. Mas me chamem de Lívia, sem o "doutora", por favor. ㅡ sorri, desfazendo a pequena confusão. ㅡ Agradeço a formalidade, porém só posso receber esse título quando terminar o doutorado daqui há alguns anos.

ㅡ E como se chama alguém que fez o mestrado? ㅡ Taehyung quis saber.

ㅡ Mestre. ㅡ responde, logo emendo: ㅡ "Mestre Livia" ficaria muito estranho, como se eu fosse professora de karatê ou outra arte marcial, prefiro só Lívia mesmo.

ㅡ Já iria falar isso. ㅡ digo genuinamente fascinado. ㅡ Você também lê mentes?

ㅡ Quem me dera... Digamos que não é a primeira vez que isso acontece. ㅡ Todos na sala parecem mais confortáveis, assim como eu, então ela continua a explicar qual o seu principal propósito aqui. ㅡ Como estava dizendo, sou uma especialista em relacionamentos com pessoas autistas. Quando crianças, elas recebem muita atenção para desenvolverem suas habilidades motoras, interações sociais com os colegas da escola, etc, porém, quando chegam na idade adulta, e estão realmente procurando relacionamento íntimo, não recebem muito apoio.

ㅡ Então começamos da forma correta? ㅡ mamãe pergunta.

ㅡ Com certeza. ㅡ confirma a profissional, inclinando seu corpo para frente no sofá espaçoso. ㅡ Alguns vão a sites de relacionamentos e aí falam que estão dentro do espectro, o que é bem complexo para pessoas leigas. Por isso acabam tendo um grande número de rejeições, mexendo com sua autoestima.

ㅡ Nunca tive uma parceira antes. Sempre tive dificuldade tentando encontrar alguém. As garotas com quem consigo me aproximar, so querem minha amizade.

ㅡ Por que acha que isso acontece, Taehyung?

Dou de ombros.

ㅡ Não sei se faço o padrão delas. Sou meio esquisito.

ㅡ Tem dificuldade em entender a linguagem corporal?

ㅡ Na verdade, não. ㅡ respondo, olhando diretamente em seus olhos. ㅡ Expressões revelam muitas coisas.

ㅡ Isso é ótimo! Que bom que diz isso, porque muitos no espectro tem dificuldade nesse ponto.

Me empolgo em falar nisso e doutora percebe.

ㅡ Sou observador e um pouco sensitivo. Quando estou com alguém, se ela está tenta omitir algo, eu digo: "Pode fingir, mas sei que está mentindo!".

ㅡ Sim, ele é bom nisso. ㅡ concorda mamãe. ㅡ Até mesmo com pessoas que acabou de conhecer.

ㅡ Eu estudo o comportamento humano há anos e continuo fazendo isso até hoje.

ㅡ Isso é excelente! ㅡ exclama, com um sorriso de orelha a orelha.

ㅡ Principalmente com mulheres, por isso sei que as minhas amigas nunca se interessaram por mim como homem. Eu sei antes mesmo delas dizerem com todas as letras que não sentem atração por mim. ㅡ faço um bico, desgostoso. ㅡ Não sei o porquê de gostar de pesquisar sobre as emoções alheias, deve ser outra esquisitice para juntar a minha coleção.

ㅡ Não é estranho, Taehyung. Ao contrário, você é muito sábio por fazer isso. Desenvolver uma habilidade e agora realiza com plenitude a linguagem corporal. É algo extremamente importante que vai levar para a vida inteira. Deve se orgulhar disso, okay?

Aceno ao passo que minhas bochechas ganham esquentam.

ㅡ Me disseram que ele nunca entenderia sinais não verbais, que eu nunca escutaria um "eu te amo", que ele não teria empatia pelos outros... Foram as maiores bobagens que já escutei. Taehyung é o garoto mais amável que já conheci! ㅡ minha mãe desabafa.

ㅡ Eles sempre podem nos surpreender. Pessoas autistas podem ser carinhosas e afetivas, sim. Depende de quanto amor e atenção damos a eles, é uma troca.

ㅡ Verdade. ㅡ murmura papai.

ㅡ Eles querem muito se conectarem. ㅡ completa a doutora.

ㅡ Quando falam com o Tae, à primeiro vista podem achá-lo excêntrico. Entretanto, nós o ensinamos desde sempre a ele ter confiança em si mesmo, independente da opinião dos outros.

ㅡ Está mais que nítido que vocês fixaram um trabalho fantástico. ㅡ elogia a ruiva.

ㅡ Sim, eles me deram tudo. Quer dizer, não tudo... Devo lembrar do PS5? Mas fora issobme deram o bastante. ㅡ comento coçando o queixo. ㅡ O que ainda é adequado.

Dizem que sou a sinceridade em pessoa. Talvez eu seja.
Mamãe gargalha escondendo o rosto no peitoral do papai.

ㅡ "O que ainda é adequado". ㅡ repete Lívia puxando o ar para não rir muito. Notei que parou abruptamente, na certa temendo que desse a entender que não estava me levando à sério. ㅡ Para você, qual a diferença entre amiga e namorada?

ㅡ Namorar é algo sério, íntimo. ㅡ explico, levantando levemente o ombro esquerdo. É involuntário, como um ticket nervoso. ㅡ Não tem restrição para encostar.

ㅡ Só um segundo, por favor... ㅡ a doutora pede, abrindo um caderno em seu colo para anotar o que falo. ㅡ Pode me explicar melhor?

ㅡ Certo. ㅡ meus pais continuam passeando os olhos curiosos da doutora para mim. Talvez esperando que  a resposta seja, no mínimo, uma pérola. ㅡ Quanto eu digo "algo sério" é quando os dois tomam a decisão de se beijarem ou algo mais.

ㅡ Hum... Não quer falar sobre beijo na frente dos seus pais, não é? ㅡ diz, percebendo que estamos tentando em um ponto onde precisamos de mais privacidade.

ㅡ Acho que não... ㅡ murmuro. ㅡ Até porque eu nunca pensei nesse ponto, nunca tive reais interesses em relações sexuais. Nem mesmo comigo, acho que masturbação é algo muito solitário e um tanto sujo...

ㅡ Okay, esta é a deixa para nós retiramos, querido.

ㅡ Talvez seja a hora certa.  ㅡ Lívia da uma piscadinha marota, fazendo os meus pais levantarem enquanto eu contínua explicando meu ponto de vista.

Estou super focado agora.

ㅡ Você fala muito em "ela isso", "ela aquilo". Então você se diz hétero.

ㅡ O que me tornaria "menos hétero"?

ㅡ Achar homens atraentes.

ㅡ Gosto de kpop. Sou fã de várias boy bands. Isso me torna gay?

ㅡ Bom... Se você sentir desejo em beijá-los.

ㅡ Hum... Posso experimentar os dois? Agora fiquei confuso, Mestre Lívia.

ㅡ Oh, meu bem. Estou aqui para abrir possibilidades. Te ajudar no que for preciso.

ㅡ Na verdade a minha filosofia de vida é não me apaixonar apenas porque ela é gostosa... Ou ele.

ㅡ Acho que é uma ótima filosofia.

ㅡ Eu que inventei ㅡ respondo orgulhoso. Isso parece fazer os olhos da ruiva brilharem. ㅡ Não se apaixone por mim, Mestre Lívia. Devo avisar que não quero um romance com mulheres mais velhas. Mamãe quer ter netinhos... Se bem que dois homens não podem copular e gerar um feto.

ㅡ Pra isso existe a barriga de aluguel ou mesmo a adoção.

ㅡ É uma possibilidade. ㅡ mordo o lábio me desligando por um momento. ㅡ Sabe qual o lado bom em namorar um homem?

ㅡ Qual?

ㅡ Ele não insistiria pra eu ir ao shopping ou me faria comprar absorventes na farmácia. Nem ficaria chateado se não reparasse que cortou o cabelo, muito menos reclamaria da minha barba por fazer. Porque ele também teria uma... E a tampa do vaso sempre, sempre estaria levantada.

ㅡ Só vejo vantagens. Mas vamos ver isso com calma, okay?

Outra vez a mulher sorri pra mim. Acho que já está apaixonada e não sabe.

Tadinha.

ㅡ Saiba que é um privilégio conhecer pessoas tão puras de coração como você, Taehyung. Não é à toa que vocês são chamados de anjos.

ㅡ Eu sei.

.
.
.
💙

Fico por aqui afirmando que o privilégio de amar é sim para todos. Eu assisti duas temporadas com o Michael. Infelizmente ele não encontrou seu par. Existe a barreira da comunicação, mas como mãe de autista, tento encorajar meu pequeno, mostrando que ele é capaz de tudo.
Também quero ser
avó um dia! 🤭💙